A história do sistema de camadas para trekking

Praticar qualquer atividade de excursionismo (trekking, hiking, trilha, trail running, etc) básico, em teoria, não existe muito segredo. Basca colocar-se em progressão. Para atividades mais complexas, aí já é necessário adquirir hábitos e conhecimentos que torne a atividade mais prazerosa (além de menos perigosa).

Cada modalidade específica dentro do excursionismo exige uma indumentária e técnica de progressão diferente. Embora para o leigo, ou para quem sofre do efeito de Dunning-Kruger, as atividades de trekking, hiking, trail running, entre outras similares, possuem diferenças definidas. Diferenças estas que ditam as normas e padrões da indústria.

Foto: Lukasz Warzecha (lwimages.co.uk)

Ou seja, seu equipamento destinado a um hiking (uma atividade de caminhada que dura um dia sem necessidade de pernoite) possui uma maneira de ser concebido e construído do que um determinado para um trekking (atividade de caminhada que dura mais de um dia e exige pernoite em refúgios ou camping).

Esta é a convenção que a própria indústria de equipamentos outdoor definiu como guia para que todos possuem, ao menos em teoria, a mesma qualidade. Em outras palavras, estes termos é o norte que orienta designers e lojistas a prover o melhor e mais adequado equipamento possível.

Há quem bata o pé de forma infantil e “discorde” do termo adotado amplamente pela indústria. Mas esta é uma atitude pueril e até mesmo inútil, visto que são estes mesmos termos que orientam os negócios em todo o mundo.

Mas e as roupas?

O desenvolvimento da indumentária para atividades outdoor evoluiu muito nos últimos 25 anos. Por conta desta convenção da indústria, diversas peças de roupa, como fleece, jaquetas, calças e meias, passaram por evoluções e transformações.

Para tornar cada peça mais barata ao consumidor, potencializando a sua qualidade e conforto ao usuário, elas começaram a ser incentivadas a serem usadas em conjunto de outras. Não faz muito tempo, especialmente há 25 anos, não havia tanta informação a respeito de combinação de peças de roupa outdoor.

Esta combinação deu origem ao que é amplamente conhecido como “sistema de camadas”. O sistema de camadas (geralmente utilizando apenas 3) é a base para se vestir corretamente nas montanhas: liberamos a umidade, evitando que ela chegue ao nosso corpo e mantemos o calor a nós mesmos.

Roupas em camadas são particularmente relevantes em climas frios, onde as roupas devem, ao mesmo tempo, transferir umidade, fornecer calor e proteger do vento e da chuva.

Mas antes que alguém pense que este sistema é uma invenção moderna do século XXI, vamos recordar de onde vem este tipo de conceitos de usar camadas de roupas para atingir um determinado objetivo.

Roupas em camadas

Usar uma roupa por cima da outra vem de longa data. Não é nenhuma novidade. A origem de quem criou o sistema de camadas para trekking é reivindicada por duas marcas: Patagonia e a marca norueguesa Helly Hansen.

Em suas memórias de 2005 no livro “Let my people go surfing” (pobremente traduzido como “Lições de um empresário rebelde” em português), Yvon Chouinard, o fundador da Patagonia, afirmou que sua empresa, fundada em 1973, foi a primeira a levar o conceito de camadas à comunidade de atividades outdoor no início dos anos 1980.

Por outro lado, em 1986, a marca norueguesa Helly Hansen também propôs esta combinação como ideal para alpinistas e montanhistas.

Dois fatores-chave no nascimento do sistema de camadas foram:

  • O desenvolvimento em anos anteriores das primeiras camisetas de fibras sintéticas (poliéster)
  • O desenvolvimento dos primeiros fleeces
  • E a criação dos primeiros casacos com membrana impermeável e respirável

Até então, as jaquetas impermeáveis ​​não transpiravam, por isso seu uso era um verdadeiro inferno para quem as usava em situações de exercícios físicos, como é o caso dos praticantes de esportes de montanha. Também era comum que a camada externa tivesse acolchoamento, o que atrapalhava a respiração e evaporação.

Mas a ideia de usar camadas é mais antiga do que as duas marcas reivindicam. A compreensão de quase todos sobre camadas vem dos militares norte-americanos de meados do século XX.

A jaqueta M-43

No ano de 1943, o Quartermaster Corps (braço do Exército dos EUA encarregado de adquirir uniformes) introduziu um novo kit de uniformes, que chamou de M-43. O conjunto incluía uma camiseta de lã, uma camisa de flanela de mangas compridas e uma jaqueta tipo parka.

A estrela deste kit era uma jaqueta, que era (de forma um tanto confusa) também chamada de M-43 e consistia em uma peça de algodão grosso e denso com 250 gramas, cor verde-oliva monótono (estamos falando do exército), com grandes bolsos no peito e na parte inferior da lateral do quadril.

A jaqueta M-43 não era apenas um estilo, mas também ensinou uma ideia a milhões de pessoas. Assim como o jipe ​​militar trouxe a noção de tração nas quatro rodas, a jaqueta M-43 fez do uso de camadas um ‘hábito’ civil.

Os designers do exército pretendiam que a jaqueta fosse usada como camada externa em diferentes climas ao redor do mundo, um conceito ligado à guerra fria, pois um exército teria de ter “roupas globais para a guerra global”. No frio extremo, um soldado iria usar a M-43 com várias camadas finas por baixo. Já em climas mais quentes, o soldado podia manter a camada externa, mas remover as outras camadas.

Mas não foram os militares preocupados com a guerra fria que inventaram o uso de camadas. No século XIX, economistas domésticos publicaram pesquisas sobre o controle da temperatura corporal, que por sua vez dependia de entendimentos sobre roupas que datavam de séculos antes.

Pesquisando conceitos a respeito da ciência do vestuário, Charlotte M Gibbs argumentou em seu livro “Household textiles” em 1912 que “várias camadas de material leve são melhores do que uma camada de material espesso”.

Porém, o verdadeiro criador do sistema de camadas tem nome. Um ex- professor da Harvard Business School, Georges F. Doriot, foi quem assumiu o comando das unidades de pesquisa do Harvard Fatigue Lab (o mais influente e eficaz na promoção de pesquisas científicas e colaborativas em fisiologia do exercício) que foram modeladas a partir do estudo do corpo no trabalho.

Apesar de sua breve história (1927-1947), nenhum laboratório de fisiologia nos EUA é mais reverenciado do que o Harvard Fatigue Laboratory, que foi um centro de pesquisa projetado para investigar os impactos fisiológicos, sociológicos e psicológicos da fadiga causados ​​por atividades físicas diárias e nas condições que os trabalhadores da indústria enfrentavam na época.

Doriot considerou que as camadas do uniforme M-43 são tão importantes quanto as armas e táticas de batalha para o sucesso militar dos EUA. “O maior inimigo, além do que normalmente chamamos de inimigo, é a natureza” , explicou durante uma audiência de 1946 no Congresso norte-americano.

Como foram os testes da M-43

Relatórios das pesquisas militares, os quais estão os de Georges F. Doriot na Biblioteca do Congresso norte-americano, confirmaram que a jaqueta e suas camadas acompanhantes mantinham os soldados aquecidos em climas com temperaturas negativas. Os relatórios também sugeriram que o sistema de jaqueta funcionava bem na chuva.

Além disso, a trama de tecido de algodão impedia a entrada de rajadas de ar frio em dias de vento.

Os militares testaram o novo conjunto de roupas que enfrentaria esse inimigo natural (a natureza) em uma série de instalações de pesquisas especializadas. Nestas instalações havia uma Câmara Fria, que consistia em sala refrigerada de 5 x 10 metros com uma esteira para duas pessoas e uma máquina de neve.

Cientistas militares ajustaram as temperaturas, a velocidade do vento e a velocidade da esteira para avaliar seus efeitos nos voluntários. Um dia, os soldados podiam vestir casacos de lã pesados, enquanto os cientistas olhavam através de uma janela de vidro.

No outro teste, os voluntários podiam vestir apenas com roupas íntimas no frio. A temperatura da pele dos soldados, medida por sensores conectados a várias partes de seus corpos, ajudou os cientistas a avaliar a eficácia das roupas.

Havia também uma câmara que simulava o deserto e uma outra que simulava a selva. Nestas câmaras usaram técnicas semelhantes (esteira e simulações de clima) para medir o desempenho de roupas e corpos em condições de calor e umidade extremos. A equipe de Georges F. Doriot também testou novas ideias sobre uniformes com um manequim metálico de tamanho de um ser humano que chamou de ” Homem de Cobre “.

Assim como os voluntários na esteira da Câmara Fria, o manequim foi vestido com várias camadas. O manequim tinha elementos de aquecimento internamente para que sua “pele” imitasse a de um ser humano. Como ele não podia falar por si mesmo, os sensores transmitiam dados sobre as mudanças na temperatura de sua “pele” à medida que suas roupas mudavam.

Todas essas pesquisas ajudaram a equipe de Georges F. Doriot a entender como as camadas funcionavam para prender o ar e evitar a perda de calor corporal. Foram essas ideias que basearam as descobertas do projeto do M-43.

Mas convencer outros oficiais militares e soldados de seus benefícios exigiu um esforço conjunto. Para que o sistema de camadas M-43 funcionasse, os soldados precisavam saber como usá-lo.

Assim, os especialistas militares desenvolveram uma cartilha sobre o uso de camadas, que mostra como o M-43 se tornou um estilo popular e um modelo para se vestir de acordo com os princípios científicos. Durante uma aula de doutrinação de 90 minutos, os soldados ouviam uma palestra sobre como permanecer vivo no frio e assistiram a uma demonstração de como usar e ajustar cada item na montagem do uniforme M-43.

Nada se cria, tudo se copia

Os sistemas de camadas eram familiares aos entusiastas de atividades outdoor, muito antes de Yvon Chouinard e Patagonia aparecerem nos anos 1970. Na verdade, os primeiros profissionais da indústria outdoor desempenharam um papel importante na proliferação do princípio de uso de camadas.

Pessoas como Leon Leonwood Bean (LL Bean), Eddie Bauer e Harold Hirsch (White Stag) estavam entre as que trabalharam como consultores de equipamentos em tempos de guerra e design de roupas. Estes nomes parecem soar familiar porque estas mesmas pessoas fundaram marcas com o seu próprio nome.

Antes que alguém possa reclamar, até os dias de hoje a marcas de equipamentos outdoor são fornecedores do exército e desenvolvem tecnologia em conjunto com os militares. A Outdoor Research é uma delas. A canadense Arc’teryx também.

Após a guerra, estas pessoas citadas criaram suas marcas com o próprio nome e trouxeram inovações de design e conceitos da ciência do vestuário da pesquisa militar às linhas de produtos em suas empresas. As campanhas publicitárias da White Stag, por exemplo, apontavam com orgulho para as origens militares de seus estilos civis.

A jaqueta “Off-Duty” da marca White Stag de 1943, com bolsos grandes como o M-43 , anunciada como “jaqueta de lazer que se tornou militar” não apenas capitalizou o prestígio da associação com um exército vitorioso, mas também continuou a espalhar as lições do exército sobre a ciência do vestuário para a vida cotidiana.

A chegada de materiais sintéticos, como o náilon, melhorou ainda mais a função das camadas de roupas em condições de frio e umidade. O Gore-Tex, chegou ao mercado consumidor em 1976, oferecendo o que alguns consideravam a melhor alternativa ao algodão grosso das jaquetas. Novos tecidos e fibras apenas atualizam os materiais e os princípios de uso de camadas popularizado pela ciência militar.

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