Sabor amargo: Os enormes equívocos do ‘formato combinado’ nos Jogos Olímpicos

Todo e qualquer esporte passa por um período de amadurecimento até a sua consolidação como esporte olímpico. É assim com todas as modalidades, desde as que já deixaram de ser modalidades olímpicas no início do século XX, como tiro aos pombos, cabo de guerra e duelo de pistolas, assim como voleibol e esgrima.

Observando a insistência da Federação Internacional de Escalada Esportiva (IFSC) comandada por Marco Maria Scolaris no formato combinado, que teve como desculpa o interesse da TV e atratividade do público, é naturalmente entendível que agora que acabou os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, mudanças e reflexões são necessárias para a longevidade do esporte como modalidade Olímpica. A ausência de reflexão, que deve ter a participação de todos os envolvidos, fará a escalada esportiva parte do ‘clube’ dos esportes que não mais fazem parte das olimpíadas.

IFSC está jogando contra o esporte?

Marco Maria Scolaris deveria fazer uma breve pesquisa na história das olimpíadas para entender os motivos de tantas críticas de seu fracasso de ‘formato combinado’. O cabo de guerra, que fazia parte do atletismo entre Paris 1900 e Antuérpia 1920, é um bom exemplo do que pode se tornar a escalada esportiva.

Eram poucos os que se dedicavam com frequência à prática desse esporte. Nas Olimpíadas de 1908, por exemplo, três diferentes corporações militares da Inglaterra ocuparam o pódio da competição.

A modalidade, que é de origem grega (portanto, mais antiga que a própria escalada), tem federação, a Tug of War International Federation (TWIF), e faz parte dos Jogos Mundiais, que é patrocinado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Mesmo assim, não há sequer uma tentativa de novamente fazer parte dos jogos olímpicos.

O ‘formato combinado’, fez exatamente? Nivelou por baixo o esporte, elevando uma categoria, a escalada de velocidade, ao mesmo nível de dificuldade que bouldering e vias guiadas. Antes que aconteçam protestos por esse tipo de declaração, é importante também atermos aos fatos.

Há, indiscutivelmente, na temporada de escalada, uma atenção muito maior às provas de bouldering e vias guiadas, até pela própria IFSC. Há ainda, um número de praticantes dessas mesmas disciplinas esmagadoramente maior que a escalada de velocidade. Basta olhar os números de competidores em cada etapa da Copa do Mundo.

Engana-se quem acredita que o ‘formato combinado’ está morto. Ele vai ser repetido na Olimpíada de Paris 2024, pois Scolaris promoveu a escalada de velocidade a modalidade individual, relevando bouldering e vias guiadas em uma reciclagem de ‘formato combinado’.

A maioria dos telespectadores, leigos ou não, tinha que apenas esperar pelo que a tela ditava, como algum tipo de ‘guru caprichoso’ ou ‘sorteio’. Ter uma calculadora era obrigatória e manter seus olhos em vários concorrentes ao mesmo tempo também.

Foto: Dimitris Tosidis/IFSC

Se os números de audiência não forem revelados, principalmente para a escalada de velocidade que, mesmo no público presente, foi bem pequena, o IFSC ficará devendo um mínimo de transparência.

O problema está aí desde o início: o IFSC aceitou o aparelhamento da escalada velocidade para o COI bancar a modalidade e, sem comprovação com os números da audiência para que as TVs fiquem felizes.

O que dizem os atletas

Adam Ondra era considerado o favorito, junto de Alex Megos, Jakob Schubert e Tomoa Narasaki. Todos escaladores de destaque nas disciplinas que, como dito acima, são consideradas mais ‘importantes’ pelo IFSC na temporada. Todos os veículos de imprensa, especializados ou não em esportes como a escalada, os colocaram como franco favoritos.

O vencedor da medalha de ouro, entretanto, foi Alberto Ginés Lopez que permanecia impassível na tela da televisão, parecendo nem acreditar no seu rendimento. Lembrando que a ausência de Bassa Mawen e o escorregão de Tomoa Narsaki, foram os fatos que o fizeram ganhar a primeira medalha olímpica.

Caso fosse ignorado seus resultados na escalada de velocidade, Ginés Lopez sequer estaria no pódio. O próprio atleta espanhol reconheceu posteriormente que não estava claro se o resultado que aparecia nas telas ainda era definitivo ou se não havia mais cálculo a acrescentar à equação.

Adam Ondra | Foto: Dimitris Tosidis/IFSC

Alex Megos, de 27 anos, queria ‘jogar o jogo’ em Tóquio, mas foi embora sem sequer se classificar para as finais. Nas fotos da prova de velocidade que postou no Instagram, Alex Megos escreveu que foi a última vez que escalou uma parede de velocidade.

Megos passou, como os outros, os últimos dois anos se preparando para os Jogos Olímpicos, e foi dos primeiros a integrar a lista de classificados para escalada nas Olimpíadas. Também o fez Adam Ondra, de 28 anos, o qual é considerado o melhor escalador da atualidade, ‘inventor’ do 9c francês (13a brasileiro), capaz de escalar o bigwall mais difícil do planeta (Dawn Wall), mas também vencedor de múltiplas etapas da copas do mundo de escalada.

Ondra estabeleceu para si mesmo o objetivo de trazer de volta a primeira medalha de ouro da escalada e, acompanhado pelo presidente tcheco no aeroporto, voltou para casa de mãos vazias e classificado em sexto lugar. Mesmo parabenizando os atletas e os organizadores, publicou um post que fez muita polêmica:

“Não há dúvida de que há vencedores, que por direito merecem seu prêmio, e outros que não tiveram tanta sorte. Esperamos que não seja um erro dizer que tudo se desenrolou de maneira diferente do que muitos de nós pensamos.

Mas você não pode ser mais inteligente do que matemática e, no final, é apenas um esporte. Sempre haverá alguém mais forte e, sim, sem nem mesmo degradar o desempenho de ninguém, apenas tendo um pouco mais de sorte ao seu lado

Nos vemos na falésia”.

O que incomoda o Ondra é o pecado original deste formato e o método escolhido para multiplicar os pontos. Conforme apontado pelo jornalista John Burgman no site climbing.com, alguém que ganhar uma das três disciplinas, teria uma excelente chance de conseguir uma medalha, mesmo com resultados pífios no bouldering e vias guiadas.

A medalha do espanhol Ginés Lopez e o quarto lugar da polonesa Aleksandra Miroslaw (que ficou em último no bouldering e vias guiadas na classificatória e nas finais) é prova inconteste disso. Em resumo, era melhor um (a) atleta vencer em uma disciplina e ser o (a) último (a) das outras duas.

Nesse mesmo método de cálculo, a adição teria mudado tudo, conforme demonstrado em reportagem na Revista Blog de Escalada em 2020. Não resta dúvida de que o principal erro do IFSC foi concluir que a multiplicação dos resultados de cada disciplina teria o mesmo impacto que a soma deles.

No masculino, caso houvesse a soma, seria o seguinte resultado:

  1. Tomoa Narasaki (Japão): (2 + 3 + 6) 11 pontos
  2. Alberto Ginés (Espanha): (1 + 7 + 4) 12 pontos
  3. Adam Ondra (República Tcheca): (4 + 6 + 2) 12 pontos
  4. Nathaniel Coleman (EUA): (6 + 1 + 5) 12 pontos
  5. Colin Duffy (EUA): (5 + 4 + 3) 12 pontos
  6. Jakob Schubert (Áustria): (7 + 5 + 1) 13 pontos
  7. Mickäel Mawem (França): (3 + 2 + 7) 13 pontos
  8. Bassa Mawem (França): DNS

Por que esse método de multiplicação foi escolhido? Simplesmente para garantir que um especialista em velocidade possa ganhar uma medalha tanto quanto escaladores “clássicos”, que geralmente têm um desempenho tão bom em bouldering quanto em vias guiadas.

Sem refazer todo o percurso do (a) atleta de vias guiadas da final, a atuação de um único atleta, o austríaco Jakob Schubert, o único a ultrapassar Ondra (2º na via guiada), fez com que Ondra fosse sacado do pódio e rebaixado na classificação geral para o sexto lugar, o que mostra que o sistema era tendencioso e ilegível para quem não tinha uma calculadora nas mãos.

Além disso, no feminino, duas das melhores escaladoras da atualidade foram preteridas: a francesa Julia Chanourdie e a italiana Laura Rogora.

Chegou a hora resgatar a essência do esporte

Que a escalada seja representada nas Olimpíadas é, sem dúvida, um sucesso para as federações nacionais que o desejaram. Mas é evidente que a combinação das disciplinas com a escalada de velocidade representou um erro.

Por quê ? Porque escalar não significa correr em uma parede ou rocha, mesmo que um certo Dan Osman tenha feito vídeos disso. Porque ninguém que é reconhecido como candidato a títulos relevantes na escalada só faz escalada de velocidade.

O espanhol Alberto Lopez que conquistou a medalha de ouro não foi indigno: ganhou o ouro nos Jogos Olímpicos graças ao 4º lugar em vias guiadas. Mas, se voltarmos ao passado, descobriremos que o próprio Alberto reclamou da falta de estrutura de treinamento para velocidade na Espanha (da mesma maneira que acontece no Brasil e América Latina).

O presidente do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de 2024, Tony Estanguet, confirmou que em Paris acontecerão duas provas de escalada: uma de velocidade e outra de combinação de bouldering e vias guiadas. Há quem aposta na hipótese de uma terceira medalha em 2028, com as três disciplinas são separadas e representadas.

Mas para isso, a essência do esporte precisa ser respeitada ou sequer irá fazer parte e se tornará o ‘cabo de guerra do século XXI’. Além disso, é necessário respeitar os atletas, e isso não foi feito em Tóquio.

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