Escalada na Olimpíada: Por que a IFSC fez o esporte ficar tão injusto?

A escalada esportiva em todo o mundo é administrada pela International Federation of Sport Climbing (IFSC). Foi dela que partiu a iniciativa de oferecer ao Comitê Olímpico Internacional (COI) o que atualmente conhecemos como “formato combinado”. Para este formato, a IFSC inventou um sistema de pontuação e um calendário de torneios classificatórios para a Olimpíada. Mas a falta de sensibilidade do IFSC criou um sistema injusto que atrapalha o próprio esporte.

Qualquer pessoa adulta já deve saber que o mundo é um lugar injusto. Especialmente se observarmos no dia a dia as leis invisíveis e as realidades que parecem sair de nossos piores pesadelos. Entretanto, caberia ao IFSC fazer o volume de injustiças menor, ao menos para os escaladores. Especialmente para aqueles que ambicionam participar da Olimpíada de Tóquio 2020.

Se alguém acredita no ditado que afirma que “o inferno está cheio de boas intenções”, é exatamente isso que o IFSC está fazendo. Em nome das “boas intenções” os “cartolas” do IFSC promovem injustiças, distorções e desinteresse do esporte. A cada nova “invenção” da entidade, há várias injustiças e distorções da realidade. O último Torneio de Classificação Olímpico da entidade foi a prova cabal. Veja a análise abaixo.

Injustiça 1: O formato combinado

Foto: Lukas Schulze

Já foi muito falado o tema do formato “combinado” e em como ele é absurdo. Uma ideia ruim que foi colocada em prática e que, aos olhos de muitos atletas, nivela a competição por baixo. Somente na cabeça dos dirigentes do IFSC é razoável apostar em uma disciplina que pune os melhores atletas, causa distorções nos resultados e, principalmente, é constantemente ignorada pela grande maioria do público e mídia.

Há o argumento que é o “formato de show para a televisão”. Analisando os números de audiência do streaming, e do público presente dos Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires 2018, a conclusão é completamente contrária a deste argumento. Comparando ainda a audiência entre as três modalidades, a escalada de velocidade perde por muitos dígitos das outras disciplinas.

Junto a este desinteresse geral a respeito da escalada de velocidade, está a ausência significativa de muros para esta disciplina no mundo inteiro. Além disso, há um detalhe cruel e elitista: para estabelecer recordes, é necessário um muro homologado pela IFSC. Mas são pouquíssimas estruturas homologadas disponíveis no mundo.

Para que se tenha uma ideia da visão eurocêntrica do IFSC, somente na América do Sul, há três, sendo que dois são oficiais e um “pirateado”. Portanto, é muito difícil fomentar competições da disciplina e obter recordes homologados.

Não bastasse esta discrepância de realidades entre Europa e o resto do mundo, obrigar atletas do nível de Adam Ondra, Alex Megos, Janja Garnbret, Miho Nonaka, Akiyo Noguchi, entre tantos outros, a competir em velocidade, é o equivalente a colocar um piloto de fórmula 1 para manobrar carros em um estacionamento. Assistir a um atleta de elite, como os citados, competindo em escalada de velocidade é tão constrangedor quanto ver jogadores de futebol profissionais sendo obrigados a disputar provas de freestyle para pontuar em uma copa do mundo.

Exemplos não faltam. Sem dúvida, enfiar a escalada de velocidade goela abaixo de atletas e público é uma ideia ruim. Uma ideia que vem sendo imposta sistematicamente. Sempre por causa do capricho particular da IFSC, que a cada dia parece megalomaníaca, eurocêntrica, egoísta e injusta.

Fosse somente o argumento de que a disciplina fosse “bizarra”, poderíamos entender que era questão de gosto. Mas com o decorrer das eliminatórias, ficou evidente que o estilo combinado gera distorções grotescas no resultado. Distorções estas vistas em todos, sem exceção, dos eventos”combinados” realizados para seleção de atletas para as Olimpíadas.

Injustiça 2: As vagas continentais

Foto: Eddie Fowke / IFSC

A visão deturpada e eurocêntrica do IFSC não fica somente na insistência do formato de velocidade. A maneira com a qual distribuiu as vagas olímpicas dos torneios “continentais” também é injusta. Segundo a visão da entidade máxima da escalada esportiva, o continente americano, africano e asiático possuem o mesmo tamanho e importância que a Europa.

A limitação de vagas por país é, sem dúvida, acertada. Porém, sequer se preocupar em realizar eventos em todos estes continentes de maneira distribuída deixa a entender o desprezo que possui com o resto do mundo em relação à Europa, China e Japão. Se são 10 etapas da copa do mundo, que sejam, ao menos, distribuídas da maneira mais equilibrada em todos os continentes. Se quer popularizar o esporte, tem de ao menos ir onde ele não é conhecido.

Para disputar as vagas continentais na Europa, atletas europeus ficariam no máximo 5 horas em um avião ou trem. No continente Africano e Americano, até 12 horas. Somente por este número, demonstra-se a miopia do IFSC com relação à população de escaladores que possui cada continente.

Injustiça 3: Covardia diante do Japão

Foto: IFSC/Eddie Fowke

Existe uma frase muito antiga no mundo corporativo que prega que “quem tenta agradar todos ao mesmo tempo, acaba desagradando todo mundo”. Foi exatamente isso que o IFSC fez ao se acovardar diante do protesto do Japão em levar atletas para o Torneio Classificatório Olímpico de Toulouse.

O Japão já tinha classificado um atleta de cada gênero no primeiro Torneio Classificatório Olímpico, que foi o Mundial realizado no Japão, em agosto deste ano. O país tem direito a 2 vagas para atletas por ser o país sede. Mas ficou “indignado” quando seus atletas, que sequer se classificariam para Olimpíadas em Toulouse, qualquer que fosse o resultado, não seriam incluídos no evento. Um capricho digno de uma criança mimada.

Pela “indignação”, a federação japonesa entrou com um recurso na corte arbitral do esporte. Demonstrando uma injustificada covardia, o IFSC se apequenou diante do recurso do Japão e permitiu que atletas nipônicos fossem para o evento de Toulouse. Vários deles chegaram à final e ao pódio, mas não se classificaram para as Olimpíadas. Sim, em um evento classificatório, quem chegou no topo do pódio não se classificou.

Há vários exemplos de atletas prejudicados. Uma deles foi Fanny Gibert, que ficou de fora da final e perdeu a oportunidade de disputar a vaga. Caso as japonesas não estivessem no evento, vários atletas poderiam, ao menos, terem disputado a final e, eventualmente, tido uma chance a mais de classificar. A mesma distorção aconteceu na categoria masculina, fazendo como vítima o atleta norte-americano Sean Bailey.

A covardia da IFSC causou uma injustiça com aqueles que ela deveria reapresentar. Uma coisa é perder por circunstâncias do esporte, outra é por culpa da desorganização do IFSC.

Injustiça 3: O sistema de pontuação do “combinado”

Foto: IFSC/Eddie Fowke

Não contente em criar um sistema que desagrade a todos, batizando com um nome igualmente ruim (“combinado”), o IFSC também apostou em um sistema de pontuação confuso, injusto e que foi criticado desde o primeiro momento. O sistema de pontuação do IFSC possui um claro favorecimento aos atletas de escalada de velocidade e apresenta uma distorção da realidade de um atleta.

Se a IFSC precisava de uma demonstração de como pode ser injusta, a matemática de sua pontuação é uma prova disso. Para que fique claro, abaixo vai uma explicação de como o sistema proposto pela entidade é ruim.

Em resumo, o principal erro do IFSC foi concluir que a multiplicação dos resultados de cada disciplina teria o mesmo impacto que a soma deles. No Torneio Classificatório Olímpico de Toulouse, França, os resultados demonstraram muito bem que a realidade não é bem assim.

Caso tivessem utilizado uma simples uma planilha eletrônica no momento de elaborar os critérios de avaliação, os dirigentes do IFSC poderiam ter feitas várias simulações e verificarem qual sistema avaliaria o melhor o rendimento médio do atleta: multiplicação, soma ou mesmo uma média ponderada.

Evidentemente, pelo tipo de escolha feita, ficou evidente que o IFSC quer “bombar” os atletas da escalada de velocidade. As estrelas do boulder e vias guiadas, que são os que sentem mais dificuldades na disciplina de velocidade, foram os mais prejudicados. Ao que parece a dificuldade em diferenciar uma soma de uma multiplicação, sem ao menos fazer uma simulação, pode ser facilmente demonstrada abaixo.

No Torneio Classificatório Olímpico de Toulouse aconteceu a seguinte situação:

  • A eslovena Mia Krampl teve um começo ruim, terminando em 7º em velocidade ​​e boulder. Sua compatriota Lucka Rakovec, que disputava com Krampl a última vaga da cota da Eslovênia, ficou em 6º e 3º em velocidade ​​e boulder.
    • Isso significava que a única chance de Mia Krampl se classificar para a Olimpíada era vencer na via guiada e que Lucka ficasse no máximo em terceiro.
    • Vale lembrar que Mia Krampl perdeu nas quatro últimas competições para Lucka Rakovec em vias guiadas.
    • Em Toulouse, Mia Krampl conseguiu apenas 3/4 da via.
    • Lucka conseguiu chegar a uma agarra antes de Mia, o que significava que o único milagre era que outra escaladora igualasse a pontuação de Lucka, mas com um tempo de escalada menor.
    • Então a francesa Julia Chanouride fez exatamente isso: escalou o mesmo que Lucka Rakovec mas o fez mais rápido
    • Como as quatro escaladoras restantes não passaram pelo ponto alto de Mia Krampl a eslovena de 19 anos ganhou a vaga olímpico restante da Eslovênia.

Ok, mas e daí? Primeiro observe como é feita a pontuação do formato combinado do IFSC. É feita a multiplicação de cada colocação em cada disciplina (colocação em velocidade x colocação em boulder x colocação em vias guiadas) e o menor valor define o vencedor.

  1. Futaba Ito (Japão) 4 x 1 x 7 = 28 (resultado que não serviu de nada para a competição)
  2. Julia Chanourdie (França) = 3 x 5 x 2 = 30
  3. Mia Krampl (Eslovênia) = 7 x 7 x 1 = 49
  4. Lucka Rakovec (Eslovênia) = 6 x 3 x 3 = 54
  5. Ai Mori (Japão) = 8 x 2 x 4 = 64 (resultado que não serviu de nada para a competição)
  6. Iuliia Kaplina (Rússia) = 1 x 8 x 8 = 64
  7. Kyra Kondie (EUA) = 2 x 6 x 6 = 72
  8. Laura Rogora (Itália) = 5 x 4 x 5 = 100

Além disso, se as regras normais aplicadas na Copa do Mundo de escalada, que leva em conta a resultados passados da etapa anterior, tivessem sido usadas, Julia Canourdie passaria do 2º para o 7º e Ai Mori avançaria do 5º para o 2º. O IFSC não aplica esta regra para o formato combinado.

Mas como sairia o resultado se fosse uma SOMA? (colocação em velocidade + colocação em boulder + colocação em vias guiadas)

  1. Julia Chanourdie (França) = 3 + 5 + 2 = 10
  2. Futaba Ito (Japão) 4 + 1 + 7 = 12 (resultado que não serviu de nada para a competição)
  3. Lucka Rakovec (Eslovênia) = 6 + 3 + 3 = 12
  4. Ai Mori (Japão) = 8 + 2 + 4 = 14 (resultado que não serviu de nada para a competição)
  5. Kyra Kondie (EUA) = 2 + 6 + 6 = 14
  6. Laura Rogora (Itália) = 5 + 4 + 5 = 14
  7. Mia Krampl (Eslovênia) = 7 + 7 + 1 = 15
  8. Iuliia Kaplina (Rússia) = 1+ 8 + 8 = 17

Usando a soma, o resultado faria com que Lucka Rakovec se classificasse. Além disso, também permitira que na fase de classificação outras atletas passassem à final e que a escalada de velocidade não tivesse tanto peso. Caso o sistema de pontuação fosse a soma, poderia simplesmente premiar o atleta que tivesse resultados mais próximos do topo e não apenas um atleta especialista.

Este tipo de distorção da realidade também atrapalha a expectativa de resultado. Isso porque todos já sabem que quem vencer a escalada de velocidade ​​em Tóquio, avançará para a final. Matematicamente falando, obter 1 x 8 x 8 (64) provavelmente significará o 4º, 5º ou 6º no geral. Basta olhar o resultado de Toulouse para verificar esta realidade.

No mundial de Hachioji, foram necessários 432 pontos para os homens e 420 para as mulheres, para configurar no Top-8 (passar à final). Na final, o resultado de 1 x 7 x 7 (49) provavelmente significaria um bronze. O que, em outras palavras, seira punir um atleta que teria ficado em 5 x 4 x 3 (60) e privilegiaria um atleta especialista em alguma disciplina.

Além disso, a preferência do IFSC pela velocidade fica evidente quando comparamos o resultado que teve Iuliia Kaplina 1 x 8 x 8 = 64, que é o equivalente a um 4 x 4 x 4 (64). Portanto, um atleta especialista em qualquer modalidade, mas que teve rendimento péssimo nas outras provas, pode até mesmo chegar ao pódio. O mesmo não ocorre com um outro atleta que ficou próximo dos primeiros lugares em todas disciplinas.

There are 3 comments

Comente agora direto conosco

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.