Crítica do filme “The Game Changers”

The Game Changers

The Game Changers

Com a proliferação de plataformas de streaming, um gênero cinematográfico que acabou ficando mais popular entre a população em geral foram os documentários. Há, claro, pessoas que confundem reality show com documentário, mas a diferenciação quanto a estes dois tipos de produção audiovisual não será discutida agora.

A Netflix é a plataforma de streaming mais popular, com mais de 137 milhões de assinantes em todo o mundo. Somente no Brasil, 27 milhões de usuários em território brasileiro. Não é um número desprezível em termos de audiência. O montante é consideravelmente maior do que grande parte dos canais de televisão, aberta ou por assinatura, em todo o país. Ou seja, os documentários atualmente possuem uma audiência cada vez maior e possuem muito mais influência. Não à toa que a Netflix já abocanhou premiações no Oscar com o gênero de documentário, com o excelente “Ícaro”.

Alguns outros documentários exibidos na plataforma ficaram populares e causaram grande impacto, provocando grande burburinho no público. Infelizmente há entre as produções que ficaram populares, algumas obras ruins e de baixo conteúdo intelectual como “Cownspiracy” e “Bike versus Carros“. Agora estas obras ganharam a companhia de “The Game Changers”, um documentário sobre alimentação e preparação física, que teve intenso marketing em sua divulgação.

Dirigido por Louie Psihoyos, com produção executiva de nomes famosos como James Cameron, Arnold Schwarzenegger, Pamela Anderson, Jackie Chan e Lewis Hamilton, o filme tenta prioritariamente, e a todo custo, destruir todos os aspectos positivos da produção de alimentos de origem animal. Desde o início, com argumentos contundentes, salpicando algumas “provas” científicas, “The Game Changers” possui um claro posicionamento tendencioso a respeito da comida à base de plantas.

A comunidade de veganos de todo o mundo abraçou o filme fortemente, o considerando como uma verdadeira fonte incontestável de “verdades”. Entretanto, durante toda a exibição da produção, os produtores não usam a palavra “vegano”, mas o termo “dieta à base de plantas”. O termo, o qual é vago e genérico, pode ser encarado, sob um olhar mais cético, como uma dieta balanceada com bastante salada. Portanto, à luz da razão em uma análise mais criteriosa, a produção não é necessariamente sobre veganismo.

The Game Changers

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Por este motivo que “The Game Changers” consegue somente polarizar ainda mais as eternas brigas entre vegetarianos, veganos e onívoros. A preocupação primordial é apenas atacar um lado, sem ao menos fazer uma comparação isenta de opinião particular. Com exemplos risíveis e fatos científicos contados pela metade, o filme acaba mais desinformando do que realmente provocar uma reflexão racional e madura sobre o tema. Inegavelmente sobrou passionalidade e, infelizmente, faltou racionalidade em todos os argumentos.

Se o objetivo do documentário era estabelecer que um atleta de alto rendimento pode render bem com uma dieta vegana, a produção falha grosseiramente. São mostrados apenas atletas com resultados pontuais, sem qualquer análise da carreira a partir do momento que decidiu migrar para uma “dieta baseada em plantas”. Consequentemente, o motivo principal deste fracasso é a tentativa de demonizar grosseiramente os produtos animais e deixar a entender que a dieta vegana é ótima a todos (sem exceção).

Aliás, como explicado no início do texto, o veganismo sequer é citado no filme. O que há na produção é de uma propaganda de uma “dietas baseadas em plantas”. Um tipo de retórica que faz com que o expectador, seja ele onívoro ou vegano, chegar a conclusões distintas e completamente antagônicas. Basta fazer uma rápida pesquisa por literaturas de nutrição para perceber que “dietas baseadas em plantas” é uma definição tão genérica e abstrata que poderia variar de 51% a 100% de plantas.

Importante lembrar que formato de documentários que optam por radicalismos, passionalidade, meias verdades e, principalmente, mostrar apenas um lado, foi inventado há quase de 100 anos. Quem consolidou este tipo de formato foi Leni Riefenstahl, cineasta alemã, representante dos ideais da estética nazista. Riefenstahl inventou novas formas de olhar pela câmera, revolucionando as imagens de um jeito que até hoje assistimos na televisão ou no fotojornalismo esportivo.

The Game Changers

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Em “The Game Changers” há argumentos tão pouco embasados cientificamente, os quais são colocados de uma maneira tão pueril e tendenciosa, que chegam a ser absurdos. Os diretores chegam até a sugerir que qualquer um produto animal, em qualquer quantidade, faz mal à saúde. Em todo o tempo de exibição, distorce a realidade à sua própria conveniência para que se encaixe às suas teorias.

Fosse possível listar as teorias de James Wilks, que é o protagonista de “The Game Changers”, ela começa com um estudo científico de que gladiadores da Roma antiga possuíam uma “dieta baseada em plantas”. Ao verificar o estudo, ele realmente aborda o fato de que os gladiadores tinham dieta ricas em legumes e cereais, e relativamente baixas em proteína animal (ou mais baixas comparadas com o resto da população da época).

Porém, mais detalhes deste estudo científico (leia o estudo aqui) foi omitido pelos produtores. No estudo, concluiu-se que os gladiadores tinham esta dieta para acumular gordura corporal e aguentar os golpes dos adversários. Além disso, o estudo mostra também que os todos gladiadores consumiam, em quantidades variadas, produtos animais. A conclusão científica foi tomada após observar as variações nos ossos analisados.

The Game Changers

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Entretanto James Wilks questiona no filme (incluindo o trailer) de que “como gladiadores podiam estar tão fortes consumindo SOMENTE vegetais”, sendo que no estudo não possui nenhuma menção à exclusividade de consumirem somente vegetais. Este é um exemplo, mas equívocos de interpretação do protagonista acorre de maneira recorrente em todo o documentário.

Este não é o único erro grosseiro do roteiro de “The Game Changers”. Há um desfile de conclusões equivocadas de estudos científicos que renderia, inclusive, um outro documentário. Importante citar que este erro intencional visto no filme é conhecido como evidência suprimida (“cherry picking” em inglês), a qual consiste em citar casos ou dados individuais que parecem confirmar uma determinada posição, ao mesmo tempo em que se ignora uma porção significativa de outros casos ou dados relacionados que possam contradizer aquela posição.

O exemplo mais cristalino do estilo “cherry picking” de “The Game Changers” é da luta de Conon McGregor e Nate Diaz. A luta foi vencida por Diaz, que era adepto de uma “dieta baseada em plantas”, enquanto Conon McGregor foi mostrado comento grandes quantidades de carne. Porém, o diretor e protagonista omitem o fato de que a categoria era 11,8 kg acima da que Conor competia.

Portanto, para vencer a diferença de peso ele estava consumindo carne em uma dieta especial para ganhar peso em pouco tempo, que o fez competir também com agilidade reduzida. O filme também omite que Conon McGregor e Nate Diaz voltaram a competir meses depois e, na revanche, Diaz foi derrotado. Nate Diaz também foi derrotado posteriormente por outros onívoros, o que tampouco é abordado pelo filme.

The Game Changers

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James Wilks também enfatiza diversas vezes que a energia é obtida das proteínas. Este tipo de afirmação é totalmente errada, pois basta a perguntar a qualquer nutricionista, vegano ou não, que irá afirmar que ela vem dos carboidratos e das gorduras. Mas se fosse somente a omissão de evidências o único pecado do filme, seria até razoável de entender. Políticos, ideologistas e ativistas já recorrem a esta técnica de omitir evidências.

Na produção há ainda frases e questionamentos que são verdadeiros disparates à inteligência do expectador, seja ele vegano ou onívoro. Há passagens, por exemplo, de que afirmam categoricamente que os estudos existentes concluindo algo contrário ao que querem provar, são conspirações globais de todos os pesquisadores e a indústria alimentícia. Os produtores afirmam que são estudos inválidos por causa de um alegado “conflito de interesses”.

Ironicamente, o que os produtores acreditam que seja “conflito de interesses” é o fato de que foram financiados pela indústria de alimentos. Argumento este que, caso seja verdade, também se aplicaria ao próprio filme, o qual é financiado por instituições de fomento ao vegetarianismo, pois James Cameron é fundador do Vergian Foods, produtora de comidas vegetais.

É pontuado também afirmações de impacto, no melhor estilo “good TV, bad science”, com diversas liberdades artísticas que não são aceitas em documentários. A mais sem fundamento de todas é a de Patrik Baboumian, um atleta de competições do tipo “homem mais forte do mundo”, que afirmou que uma vez lhe perguntaram “como conseguia ficar forte como um boi sem comer carne”.

A resposta de Baboumian foi “você já viu alguma vez um boi comer carne?”. O próprio diretor parece ter esquecido que também poderíamos utilizar uma resposta semelhante de qualquer defensor da dieta carnívora, que “para ficar forte como um leão, deveria comer como um”. Seguindo a mesma linha de raciocínio, basta dizer que para escalar como uma aranha, ou um lagarto, não é necessário comer como um, pois a anatomia do ser humano e do animal é diferente. Fato que, provavelmente, os produtores e o próprio Patrik Baboumian desconhecem.

“The Game Changers” desperdiça um tema interessante para a sociedade discutir de maneira serena, desenvolvendo falsas dicotomias, todas baseadas no espírito de “nós conta eles”, sugerindo uma risível conspiração da industria da comida, demonizando as dietas onívoras e fazendo comparações estapafúrdias e absurdas, como comparar comer carne com o hábito de fumar.

Ao final da produção, fica evidente que o diretor ficou mais preocupado em “pregar para convertidos” do que propriamente debater o assunto, abordar o tema com estudos científicos e despertar o interesse em quem tem resistência ao veganismo ou vegetarianismo.

Nota Revista Blog de Escalada:


Para fazer esta crítica foram consultados os seguintes artigos científicos citados no filme “The Game Changers”:

There are 5 comments

  1. Ariane

    Kkķkkkk concordo! Começando pelo fato de que quando eles apontam a alimentação dos gladiadores ele fala claramente que eles se alimentavam mais de vegetais do que carne (podendo a mesma ser ingerida em pequena quantidade já que na época não era vendida em mercado)! Estou até agora tentando entender o grande motivo deles terem feito isso com proposta tendenciosa, agora Arnold é dono de Hortifruti?! Wtf

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