Durante a temporada nos Andes peruanos, de maio a setembro, milhares e milhares de montanhistas, entre caminhantes e escaladores, visitam a Cordilheira Blanca, situada ao norte de Lima. Nesse período é praticamente impossível encontrar-se sozinho nas trilhas, vales, quebradas e montanhas dessa famosa cordilheira.
Mas no sul do Peru, mais precisamente a sudeste da cidade de Cusco, existe uma cadeia de montanhas tão bela, imponente e de características similares à Cordilheira Blanca, porém pouquíssimo visitada: a Cordilheira Vilcanota. Formada por inúmeras montanhas acima de 5 mil metros, e com vários cumes com mais de 6 mil metros, a Cordilheira Vilcanota tem, aproximadamente, 100 km de extensão, possuindo a segunda maior concentração de glaciares do Peru, que ocupam uma área estimada em 539 km2.
Com uma topografia marcadamente alpina, traz infinitas possibilidades para a abertura de novas rotas de alto grau de dificuldade. Suas montanhas possuem muitas paredes ainda não escaladas e, provavelmente, cumes virgens. E a Vilcanota ostenta o privilégio de possuir aquele que, para muitos caminhantes, é o roteiro de trekking mais bonito dos Andes, o Circuito Ausangate, um percurso circular em torno do mítico Nevado Ausangate (6372 m), a montanha mais alta de toda a região de Cusco.
O isolamento da região talvez explique o fato da Cordilheira Vilcanota continuar sendo uma “ilustre desconhecida” para muitos montanhistas. Apesar da vila de Tinqui, a principal porta de entrada para suas montanhas, estar a apenas 150 km da cidade de Cusco, o acesso até pouco tempo atrás era dificultado pelas péssimas condições da estrada que passava pela Vilcanota e ligava a região andina a Puerto Maldonado, já na Amazônia peruana. Porém, com a inauguração da Estrada do Pacífico, também conhecida como Transoceânica, que liga Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC), no Brasil, ao oceano Pacífico, essa realidade mudou. A estrada está toda asfaltada e, principalmente no lado peruano, em boas condições de conservação, fazendo com que de Cusco a Tinqui se gaste menos de 3 horas de carro. Ou seja, já não há mais desculpas para não se visitar a região.

Vale onde se encontra a Transoceânica, a estrada que liga o Brasil ao Pacífico através da Amazônia e dos Andes | Foto: Marcelo Delvaux
A Cordilheira Vilcanota segue uma orientação aproximada noroeste-sudeste, com vários maciços no sentido norte-sul. Em suas montanhas nascem importantes rios, que definem os limites da cordilheira, como o rio Madre de Dios, ao norte, e os rios Vilcanota e Paucartambo, a oeste. No norte da Vilcanota encontra-se o Nudo de Ayacachi (também conhecido como Cordilheira Paucartambo), a noroeste das vilas de Paucartambo e Marcapata. Em sua porção meridional está o Nudo de Vilcanota e, ao sul da vila de La Raya, a Cordilheira de La Raya. Já a leste seus limites estão próximos ao passo de Chimboya.
Na Cordilheira Vilcanota encontram-se 6 das 7 montanhas acima de seis mil metros da região de Cusco:
- Ausangate (6384 m)
- Callangate (6110 m)
- Jatunriti ou Chumpe (6106 m)
- Colquecruz ou Alcamarinayoc (6102 m)
- Jatunhuma (6093 m)
- Yayamari (6049 m)
São pouquíssimo visitadas e não contam com muitas ascensões, mesmo o Nevado Ausangate, a mais alta e mais famosa. Cada uma dessas montanhas conforma, por si só, maciços com muitos cumes independentes acima de 5 mil metros e vários cumes secundarios que superam os 6 mil metros. Existe uma grande confusão a respeito do nome e localização das montanhas da Vilcanota, confusão que é agravada pela nomenclatura inadequada que consta na única carta topográfica da região, um mapa na escala 1:100.000 disponibilizado pelo IGN do Peru. Para os que desejam explorar a região, recomenda-se uma consulta aos relatos das expedições publicados em diversos números do American Alpine Journal, alguns com mapas e croquis esclarecedores.
O Ausangate é uma montanha gigantesca e o Circuito Ausangate, roteiro de trekking circular em torno dessa montanha tem, aproximadamente, 70 km, o que da uma ideia de sua grandeza. Para se realizar essa caminhada, que está ganhando fama por ter sido considerada como um dos mais belos, senão o mais bonito, trekking dos Andes, é preciso superar 2 passos de montanha de quase 5000 m, o Paso Arapa (4757 m) e o Paso Apacheta (4850 m), e outros 2 passos acima de 5000 m, o Paso Palomani (5165 m) e o Paso Campa (5068 m). Essa é a principal característica das trilhas da região: a altitude extrema e os passos de montanha que superam os 5 mil metros.

Paso Campa a mais de 5 mil metros de altitude, com as típicas apachetas para afastar os maus espíritos | Foto: Marcelo Delvaux
As primeiras expedições na Cordilheira Vilcanota datam de pouco mais de meio século. O primeiro montanhista a explorar a região foi o italiano Piero Ghiglione, que realizou cinco incursões na região nos anos 1950, além de uma tentativa de escalar o Nevado Ausangate. A primeira ascensão do Ausangate foi obra do grande montanhista alemão Heinrich Harrer, junto com Heinz Steinmetz e Jűrgen Wellenkamp. Heinrich Harrer, dentre inúmeras escaladas importantes e de alto nível, foi o responsável pela primeira ascensão da temida face norte do Eiger, nos Alpes, e ficou famoso entre o público em geral por seu livro Sete anos no Tibete (e mais tarde pelo filme homônimo), que conta suas peripécias durante a Segunda Guerra Mundial, fugindo de um campo de prisioneiros inglês na Índia e caminhando até o Tibete, um reino fechado ao ocidente nessa época, onde entrou clandestinamente.
Várias expedições de distintas nacionalidades percorreram a zona de Vilcanota nas duas décadas seguintes, desbravando suas quebradas e realizando primeiras ascensões: americanos (1956), alemães (1957), japoneses (1959), novamente os alemães (1966 e 1969), membros da British Commonwealth – australianos, neozelandeses e canadenses (1974), franceses (1976) e espanhóis (1977). A expedição alemã de 1957, liderada por Gűnther Hauser foi particularmente importante, tendo conquistado dois “seis mil” ainda virgens: o Jatunhuma e o Yayamari.
Além de sua impressionante geografia, a região de Vilcanota também é bastante rica do ponto de vista cultural. Diversas comunidades de língua quéchua vivem no entorno do Nevado Ausangate e demais montanhas da cordilheira, preservando um estilo de vida que se mantém inalterado há séculos devido ao seu isolamento. E é na Vilcanota onde acontece uma das manifestações religiosas mais antigas dos Andes, cujas origens remontam à época pré-colombiana, a festividade do Señor de Qoyllorit’i. A festa foi incorporada ao calendario e ao simbolismo católico, após a conquista espanhola, e atualmente mistura elementos cristãos com a religiosidade originária das comunidades quéchuas.
É uma espécie de peregrinação, que recebe visitantes de várias partes dos Andes peruanos e tem como ponto culminante a escalada do glaciar do Nevado Colque Punku (5471 m) pelos devotos, para extrair blocos de gelo que teriam propriedades milagrosas. A UNESCO reconheceu em 2011 a importância da festa do Señor de Qoyllorit’i, declarando-a Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
O cenário da Cordilheira Vilcanota também teve um papel fundamental no imaginário religioso inca e em sua geografia sagrada. O Nevado Ausangate era considerado uma importante e poderosa deidade, ou Apu, e, junto com o Nevado Salcantay (6271 m), foram as montanhas mais veneradas na região de Cusco. O rio Vilcanota ou Urubamba, que nasce nas ladeiras do Ausangate, também era considerado sagrado. No solstício de dezembro o sol, visto de Machu Picchu, parece nascer diretamente do cânion do rio Vilcanota.
Observado desde Cusco, o nascer do sol no solstício de dezembro acontece, justamente, atrás do Apu Ausangate, a principal fonte deste rio. Vilcanota significa “a casa do sol” ou “a casa onde nasceu o sol” e o curso do rio Vilcanota também corresponde, aproximadamente, ao curso do sol no solstício de dezembro. Tais detalhes foram observados pelos incas, contribuindo para reforçar o caráter sagrado do Nevado Ausangate e do rio Vilcanota, que continuam venerados até os dias atuais.
As atrações da Vilcanota são inúmeras e diversificadas, com particularidades que a tornam única: montanhas multicoloridas, inúmeras lagoas, como a imensa Laguna Sibinacocha, e um campo de gelo chamado Ritipampa de Quelccaya, situado na porção sudeste da cordilheira, entre o passo de Chimboya e a vila de Macusani. Tal campo de gelo apresenta características similares às das zonas glaciares planas das regiões polares e é algo raro nos Andes tropicais. Estende-se por 15 a 20 km no sentido nordeste-sudoeste a uma altitude média de 5300 m, encontrando-se sua altura máxima a 5775 m.
Todas essas atrações estão à espera dos adeptos do montanhismo de exploração, para a abertura de novos roteiros de trekking, que certamente terão que cruzar passos acima de 5 mil metros, ou novas rotas de escalada. No extremo sul da Vilcanota, por exemplo, próxima da vila de Lampa, encontra-se uma cadeia de montanhas conhecida como Minapunta ou Cordilheira de Palca, onde, provavelmente, existe uma boa quantidade de cumes virgens. Por sua beleza e inúmeras possibilidades, a Cordilheira Vilcanota é uma de minhas favoritas e um segredo que agora compartilho com todos.
Laguna Uchuy Pucacocha, uma das inúmeras lagoas da região da Vilcanota
Guia profissional de montanha, com título de “Guía Superior de Montaña” obtido na EPGAMT. Guia de montanha associado à AAGM e à AAGPM. Guia de montanha credenciado no Parque Provincial Aconcagua. Sócio da empresa SummIT – Gestão de Projetos e Desenvolvimento Humano. Além de liderar expedições de escalada e trekking em alta montanha, trabalha com treinamento e consultoria nas áreas de gestão, liderança, motivação e inovação.
Pratica escalada em rocha desde a década de 1990 e alta montanha desde o início dos anos 2000, tendo realizado mais de 80 ascensões nos Andes e no Himalaia