Rota Rongai: um Kilimanjaro acessível a todos

Se pelo menos três pessoas tiveram sucesso, eu também posso ter!

Se até eu posso, qualquer um pode!

Orlandinho Barros

O Kilimanjaro é a montanha mais alta do continente Africano, com 5.895 metros, localizado no norte da Tanzânia, próximo à fronteira com o Quênia. É um dos almejados 7 cumes, as 6 montanhas mais altas de cada continente mais o Denali (6.190 m) que é a montanha mais alta da América do Norte. Para chegar ao seu cume é necessária a aclimatação e um trekking que varia de 5 a 8 dias, dependendo da condição do montanhista e da rota escolhida.

Existem sete rotas para acesso ao cume, cada uma com sua estratégia de subida. Geralmente usa-se uma rota para subida e outra para descida. Estive na Tanzânia no final de setembro de 2019, cheguei em Moshi, cidade mais próxima do Kilimanjaro, dia 27, já com agência local contratada.

Moshi é uma típica cidade Tanzaniana, bastante movimentada, muitos muçulmanos, barulhenta e poluída. É segura e seus habitantes são solícitos. Existem umas algumas boas lojas que alugam e vendem equipamentos de alta montanha

Aluguei bastões, calça para neve e um fleece na loja PJM, comprei também luvas impermeáveis.

O primeiro dia

No dia 28 pela manhã, meu guia me pegou no hotel em van comum. Nós tínhamos combinado que eu não precisaria de staff completo porque podia carregar minha mochila e dormir em barraca, mesmo assim, foram quarto pessoas: dois guias, um cozinheiro e um carregador.

Nosso plano era subir suavemente pela rota Rongai até o segundo acampamento na Second Cave, lá avaliaríamos minha aclimatação para definir se seguiríamos para a Third Cave, concluindo em 6 dias, ou se iríamos ao Mawenzi Camp para aclimatar mais um dia e concluir em 7.

A Rongai é a única rota que usa a face norte da montanha, perto da fronteira com o Quênia. Embora tenha se tornando mais popular entre os montanhistas devido à suave inclinação, a Rongai ainda apresenta um baixo tráfego de visitantes.

Utilizando a Rongai, as chances de alcançar a borda da cratera são de 80 a 90%. Para completar o percurso até o pico Uhuru de 70 a 80% e se a pessoa tem experiência, a taxa de sucesso salta para 90%.

Seguimos todos na Van com mais outros passageiros, demos a volta no Parque Nacional do Kilimanjaro até o Rongai Gate, 2.364 metros, que fica bem próximo da fronteira com o Quênia. Lá havia várias vans com vários grupos de montanhistas se preparando para iniciar a subida. Me serviram farto almoço já dentro do parque e às 13:30 iniciamos a trilha para o Simba Camp, eu e o guia principal. Fazia frio, mas não a ponto de usar anorak, eu carregava apenas a mochila de ataque bem leve, não usei os bastões porque a trilha era fácil sem pedras. No começo era por dentro de uma mata tropical, depois passamos por vegetação mais baixa até o destino final. Seguíamos muito lentamente para facilitar a aclimatação, o percurso era curto e a subida suave, portanto tínhamos bastante tempo.

Às 15:05 chegamos no Simba Camp, 2.671 metros, uma clareira com algumas poucas construções de madeira usadas pelo pessoal do parque, onde tinham várias barracas armadas inclusive a que eu iria usar. Os carregadores chegaram antes de nós e já tinham aprontado tudo. A área era de capim batido, muito boa para armar barracas. Haviam umas 30 barracas de montanhistas mais umas 6 de apoio, maiores e de lona onde cozinhavam e onde dormia o pessoal de apoio. Muita gente circulando, chegando, fazendo barulho, sanitário fétido, mas a área de camping estava limpa.

Do camping não dava para enxergar o Kilimanjaro por causa da vegetação, então, para aliviar a ansiedade, subi um pouco pela trilha do dia seguinte, mas não consegui avista-lo. Me sentia muito bem, sem efeitos de Mal Agudo de Montanha.

Minha barraca era para duas pessoas, bem espaçosa para todas as minhas tralhas. Me recolhi na barraca ainda dia, preparei o local de dormida com o colchonete que me forneceram, tomei banho com lenço umedecido e aguardei o rango. Eu usava um conjunto de roupa exclusivo só para dormir: calça segunda pele, meia grossa, camisa segunda pele e luva segunda pele. A intenção era manter esse conjunto limpo para não sujar o saco de dormir, então eu só o vestia após tomar banho com lenço. Como não estava muito frio, bastavam essas peças para dormir bem dentro do meu saco de limite -12°C. Sempre antes de dormir eu lia um pouco no kindle e dava uma carga no celular no meu power bank.

Me serviram muita comida na barraca, por isso o começo do sono não foi bom, o estômago estava cheio demais, depois dormi bem. Meu saco de dormir me aqueceu bem. Não era confortável fazer as refeições dentro da barraca, mas eu preferia assim para evitar o frio do lado de fora.

Segundo dia

Simba Camp 2.671m | Foto: Orlandinho Barros

Acordei pouco depois das 6:00 do segundo dia, o cozinheiro trouxe água quente para higiene na porta da barraca. O café da manhã era um mingau de aveia, um pouquinho de fruta, água quente para chá e café solúvel com panquecas. Ambiente de Alta Montanha é sempre agradável, me sinto em casa. Pessoas arrumando as mochilas, fazendo fotos, conversando, amando a Montanha. No Kilimanjaro há um clima de amizade, colaboração e animação, o pessoal de apoio é solícito e alegre, sempre nos incentivam.

Saímos às 8:05 do dia 29 sob sol, porém sem frio. Deixei a mochila grande e a barraca armada, o carregador providencia todo o transporte até o próximo ponto de pernoite. Com menos de meia hora de trilha já avistamos nossa meta à frente com seus glaciares característicos no topo. O guia auxiliar, ia na minha frente e o principal ao fundo. Nosso ritmo era bem lento, assim como o dos demais grupos, eu podia parar quantas vezes quisesse.

Paramos várias vezes para dar passagem aos muitos carregadores que subiam. Do meio para o final do percurso começou a fazer calor, aumentei a ingestão de água. Chegamos no Second Cave camping, 3.450 metros, às 11:06. Ambiente bem diferente do dia anterior. Vegetação arbustiva ao redor das rochas vulcânicas extrusivas (lava solidificada). Second Cave é uma pequena caverna na lava solidificada, minha barraca estava armada a poucos metros da caverna. Eles armavam minha barraca sempre distante das outras, entenderam rápido meu jeito.

Nesse ponto a rota Rongai se divide em duas com opções de conclusão em sete dias via Kikelewa Cave/Mawenzi Camp para os não aclimatados, ou em seis dias via Third Cave. Às 16h fomos fazer uma pequena aclimatação na rota da esquerda em direção ao Pico Mawenzi – Kikelewa Cave, antes tomei um analgésico pois estava com leve dor de cabeça. Trilha bem suave com poucas subidas. O visual do Mawenzi é encantador, trata-se de uma montanha que precisa ser escalada para chegar ao pico. No acampamento Second Cave, víamos sempre o Kilimanjaro bem à nossa frente.

Fazia menos frio que o dia anterior, talvez pela quantidade de rochas. Comi bem menos que no dia anterior para dormir bem. Os guias servem muita comida para os montanhistas.

Consegui dormir muito bem das 20:00 às 6:00. Não fazia frio pela manhã, o tempo estava ensolarado como nos dias passados. Alguns poucos grupos seguiram pela Kikelewa, ou por problema de aclimatação, ou por contrato de 7 dias.

Terceiro dia

Vista do segundo acampamento | Foto: Orlandinho Barros

Saímos às 8:34 do terceiro dia. Subida suave sob sol fraco, o ambiente era muito similar ao dia anterior, muita rocha com arbustos. Não usava bastões apesar de carrega-los na mochila, não era necessário porque a trilha era bem conservada e de pouca inclinação, além disso, estava carregando pouco peso.

Chegamos no Third cave camp, 3.800 metros, às 10:28, a barraca já estava armada na parte mais baixa e distante do acampamento. Me sentia bem sem nenhum sintoma de MAM. Por volta das 13:00, o tempo nublou e esfriou. Às 14:40 saímos para aclimatar pela pouco usada trilha da direita que segue até School Hut, fomos até 4.200 metros margeando um grande leito de cascalho. Paisagem lunar com muita rocha vulcânica extrusiva e um pouco de intrusiva. Já de volta ao acampamento, senti um pouco de dor de cabeça por volta das 18:00, mas não tomei remédio.

Demorei de pegar no sono por causa da ansiedade.

Quarto dia

Passei uma noite intranquila, fria e insone a partir das 3:00. O tempo amanheceu aberto e frio, porém tolerável. Acordei antes das 6:00 do terceiro dia, mas o staff atrasou o café da manhã. A saída estava combinada para 7:00, mas só saímos às 7:40 ainda frio, por isso vesti o anorak. Subida tranquila e suave por terreno árido e com muitas formações vulcânicas interessantes. Próximo ao Kibo Hut, a trilha contorna um pouco o Kilimanjaro em sentido horário. Estávamos saindo de 3.800 metros para 4.700 metros, a paisagem era marciana, sem vegetação, árida com muitas rochas, cascalho e areia. Víamos a poeira levantada pelas pessoas que desciam da cratera em direção ao Kibo hut. Não havia nem um pingo de neve na encosta.

Chegamos no Kibo hut às 11:19. Senti dor de cabeça à tarde, tomei um analgésico, mas não adiantou. Tomei outro de outra marca que fez melhorar um pouco. Comecei a sentir náusea.

O Kibo Hut é um campo base que fica a 8:00 do Uhuru Peak, a partir desse ponto, começa a subida forte da cratera. Uma cama no abrigo custa $ 50, mas a maioria acampa e usa os fétidos sanitários. Nesse dia tinham umas 20 barracas de montanhistas e umas 10 de staff. No Kilimanjaro, assim como em outras altas montanhas, o pessoal do staff, guias, carregadores e cozinheiros é mais de duas vezes a quantidade de montanhistas. Nessa região da África, o montanhismo é uma importante fonte de renda para a população local, então é muito difícil entrar no parque sem carregador, por exemplo. As agências disponibilizam no pacote três staffs por montanhista.

Fiquei deitado em jejum desde que chegamos, tentando controlar a dor de cabeça e a náusea. Tomei anti-inflamatório, analgésico e remédio para náusea. Melhorou, mas o sono não foi tranquilo. Lembrei das outras vezes que estive em Alta Montanha, passei mal, não me alimentei direito, mas consegui conviver com as dificuldades e chegar onde queria, rapidamente as sensações ruins passam e volta o bem-estar.

Às 17:00 começou a nevar. Comi um pouco antes de dormir. Nem tirei a roupa por praticidade, vesti o conjunto de dormir por cima da roupa do dia, com o frio que fazia, fiquei na temperatura ideal dentro do saco de dormir.

Acordei às 23:30, tomei apenas dois goles do terrível chá de gengibre oferecido pelo cozinheiro. Várias vezes me perguntavam se estava me sentindo bem, sempre me incentivavam.

Fazia muito frio, a barraca tinha uma camada de neve por fora, mas eu estava quente no meu saco de dormir. Não me sentia inteiro, mas estava bem-disposto a encarar o desafio.

Quinto dia – Summit Day

Uhuru Peak | Foto: Orlandinho Barros

Havia um razoável movimento no camping, vários grupos se preparavam para a forte subida. Seria uma hora até o começo da subida, mais cinco horas de subida forte até o Gilman´s Point na borda da cratera, mais 30 minutos até Stella Point, mais meia hora até Uhuru Peak a 5.895 m.

Eu usava 4 camadas de proteção com 2 segundas peles, um fleece e o anorak. Duas luvas,

2 meias e balaclava. Bermuda de compressão, calça segunda pele e calça de neve. Sentia frio nas mãos e um pouco nos pés, mas não incomodava, sabia que com o esforço, logo aqueceria.

Saímos às 00:07, eu, o guia auxiliar na frente e o principal atrás, em ritmo bem tranquilo. Nevava pouco e não ventava, o chão estava coberto de fina camada de 5 cm de neve. Estava usando bastões, o que muito me ajudou na neve. A subida era toda em zigue-zague.

Víamos 5 grupos acima de nós e mais de 10 atrás, todos com no máximo 6 pessoas e em ritmo lento. O Kibo Hut é o encontro das rotas Rongai e Marangu. A Rongai não é usada para descida e a Marangu tanto é usada para descer quanto para subir.

Aos poucos íamos passando por grupos adiantados, sem pressa e sem cansar. A dor de cabeça estava fraca, mas a náusea e a falta de ar incomodavam, estava forçando a respiração todo o tempo, me sentia melhor assim. Às vezes escorregava na neve, mas não cheguei a cair, usei bastante os bastões. Parei 5 vezes durante a subida, estava lento e com náusea, mas disposto. Bebia água com frequência.

Faltando pouco para Gilman´s Point, 5.685 metros, vomitei parte do chá de gengibre, depois me senti muito melhor, em poucos minutos estávamos no final da subida. Chegamos na borda da cratera, por volta das 5:00, ainda escuro, mas com alguma claridade ao leste.

Seguimos pela borda debaixo de neve, mas eu já não sentia frio nas extremidades. A borda da cratera tem suaves subidas e vários contornos. Não consegui enxergar a cratera menor por causa da escuridão. Andávamos na trilha sobre 20 cm de neve compactada pelos grupos da frente e pelos que subiram por outras rotas. O Mal Agudo de Montanha incomodava, eu variava a respiração e conseguia me sentir bem.

Por volta das 6:00 o sol nasceu abaixo de nós e o mundo mudou!

Agora eu via a gigante e imponente cratera coberta de neve, mais ou menos 1 km de largura por 3 km de extensão. Alguns glaciares lindos descansavam nas bordas da cratera. Chegamos ao Uhuru Peak, 5.895 metros, às 6:57, foram 6 horas e 50 minutos de ataque!

Fazia -5°C, minha luva segunda pele estava congelada com o suor, meu anorak também estava congelado por fora. O guia fez as minhas fotos de cume e em seguida começamos a descer. Sentia muito frio por estar parado. Tinham umas 20 pessoas no cume, há espaço para mais de 100. Agora com a luz do sol, o visual era outro, espetacular, podia ver as terras baixas, as cidades, o Mawenzi com suas nuvens lenticulares, os glaciares e a vastidão da cratera. Cruzamos com vários grupos subindo, é um longo trecho comum de algumas rotas, a maioria dos grupos optou por fazer o ataque mais tarde e provavelmente dormir no Kibo ou Barafu.

No Stella Point, 5.756 metros, vários grupos subiam a rota Machame. Pouco antes do Gilman´s Point, ainda no trecho plano, ao dar passagem para algumas pessoas, fiz um pouco de esforço a mais, senti náusea e vomitei um pequeno volume, depois me senti muito bem. Ainda estava tomando o anti-inflamatório para o Mal Agudo de Montanha, a dor de cabeça estava fraca. A descida era reta na areia molhada, vez que a neve havia derretido, escorregávamos bastante sem quedas, usei bastante os bastões.

Praticamente não paramos, apenas os guias paravam para conversar e eu aproveitava para descansar um pouco os joelhos.

Vários grupos subiam do Kibo, fazia sol entre nuvens com temperatura agradável. Eu continuava em jejum, só bebendo água. Não sentia fome nem fraqueza. No final da descida, já no plano, o cozinheiro e o carregador nos esperavam para dar parabéns, costume local interessante.

Cheguei na barraca no Kibo às 10:26, dormi até 12:00. Depois comi um arroz com verduras e partimos às 14:31 por longa trilha de antiga estrada na rota Marangu. Fazia sol, a encosta da cratera quase não tinha mais neve, exceto no topo. As nuvens davam show, principalmente no Mawenzi. Passamos por campos rupestres um bom tempo até surgirem as impressionantes Lobélias gigantes, plantas endêmicas da região.

Chegamos às 17:10 em Horombo Hut, 3.700 metros, vários chalés grandes, cercados por barracas. Um lindo arco-íris nos presenteou depois de um dia tão exaustivo. Como sempre, a minha barraca estava armada em um cantinho. Comi alguma coisa e caí no sono.

Sexto dia

Dormi bem, não fez frio, nem sentia mais dor de cabeça nem náusea. Fazia lindo sol, tempo excelente para trilha. Saímos às 7:34 do sexto e último dia, em ritmo bom. Descíamos por longa trilha larga, mas com pedras, praticamente não paramos. Encontramos alguns poucos grupos subindo. Depois de pouco mais de 2h de trilha entramos na mata fechada com grandes árvores, rios límpidos, macacos Collabas e macacos azuis, muito agradável esse trecho.

Às 10:08 chegamos no Mandara hut, vários chalés com aspecto VIP, paramos um pouco para descansar. Depois, só mata até ouvirmos vozes e ruídos por volta das 12:00.

Chegamos no Marangu gate às 12:18, assinei o livro de registro, peguei meu certificado, atualizei as redes sociais via wifi e entramos na Van por volta das 13:00.

Chegamos em Moshi às 15:00, devolvi os equipamentos alugados na PJM, comi uma pizza e encerrei a aventura tomando uma cerveja Kilimanjaro.

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