“Subida al Monte Ventoso”: O livro que inaugurou a literatura de montanha

O livro “Subida ao Monte Ventoso” é considerado o texto inaugural da literatura de montanha, o primeiro a descrever a ascensão a um cume, no caso o Mont Ventoux, de quase 2.000 m, que se localiza na região da Provença, na França. O livro foi escrito pelo humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1374) é, na verdade, uma carta datada de 26 de abril de 1336 e incluída em suas Epístolas.

Os especialistas na obra de Petrarca admitem a possibilidade de que os fatos narrados na carta não passem de uma ficção literária. A ascensão ao Mont Ventoux seria uma descrição alegórica da ascese espiritual de Petrarca, apresentada através da analogia com a escalada de uma montanha.

A questão se os fatos são verídicos ou não é de menor importância. No texto estão muitos elementos que, posteriormente, aparecerão de forma recorrente na literatura de montanha, o que o torna de grande relevância para compreendemos o imaginário do montanhismo: os perigos e percalços da subida, as dúvidas e o desejo de desistir, o esforço e a força de vontade necessários para se completar a jornada e a plenitude alcançada quando se chega ao cume, dentre outros.

Assim, Petrarca descreve sua subida ao Mont Ventoux comparando-a com um caminho espiritual. Nos lugares altos, como nos cumes das grandes montanhas, estaria a bem-aventurança, sendo difíceis as rotas que nos levam até lá: “A vida que chamamos bem-aventurada a encontramos em um lugar alto, e estreito é o caminho, nos contam, que a ela conduz”.

As metáforas de Francesco Petrarca

As terras planas, por sua vez, aparecem como um símbolo dos prazeres baixos. Os homens habitariam os vales por pura comodidade e pela facilidade que encontram nos lugares de pouca altitude, não buscando ascender aos altos cumes por medo de sofrer: “O que te impede então? Evidentemente nada mais que o caminho plano que atravessa por entre baixos prazeres e que à primeira vista parece mais fácil e cômodo”.

E mais adiante pergunta: “E quantos não haverá que se afastem deste caminho por temor ao sofrimento ou por desejo de comodidade?”.

Petrarca era um literato de formação clássica e, na sua carta, vemos os futuros lugares-comuns dos montanhistas saindo da pena de autores clássicos, o que é bastante curioso. Assim, Virgílio, que foi o guia de Dante nos círculos infernais, surge guiando Petrarca nas íngremes encostas: “O esforço perseverante pode com tudo”. E, também, Ovídio: ‘E é que querer não é suficiente; para conseguir uma coisa há que a desejar ardentemente’”.

Para subir é necessário virtude: “E tem a seus pés, interpostos, muitos montes que há que subir passando gradualmente de virtude em virtude. No cume está o final de tudo e a meta final de nosso peregrinar. Alcançá-lo é o que querem todos”.

E a escalada da montanha surge como uma espécie de fortalecimento da vontade para a ascese espiritual, pois se alguém é capaz de completar o esforço terreno necessário para se alcançar o cume de uma montanha, também seria capaz de completar o caminho espiritual: “Se não duvidei em me enfrentar a tantas fadigas e suores para aproximar meu corpo um pouco ao céu, que cruz, que prisão, que tormento poderiam dissuadir a alma de que se aproxime de Deus enquanto pisoteia os orgulhosos cumes da temeridade e dos humanos destinos?”.

Petrarca acaba por concluir que, na verdade, não haveria necessidade de o homem buscar fora de si, como no ato de subir uma montanha, o que poderia encontrar em sua alma. A ascensão aos altos cumes aparece, assim, como uma forma do homem se reencontrar a si mesmo.

Literatura de montanha

Foto: Michael Liao | Unsplash – https://unsplash.com/@mjliao

Os topos literários utilizados por Petrarca, com o tempo, se converteram nos clichês estereotipados da literatura de montanha da atualidade, fazendo com que os livros de montanha se tornassem repetitivos e pouco originais. São poucos os montanhistas capazes de traduzir em palavras as singularidades da experiência de se escalar uma montanha e recorrer aos clichês convencionais parece ser quase inevitável, como bem observa Reinhold Messner em seu livro “La zona de la muerte”.

Bons livros de montanha são raros. A linguagem da montanha, nos últimos anos, engrossou os clichês tradicionais citados por Messner com a baboseira motivacional propagada pelos gurus da autoajuda e coachs. Quase toda narrativa de montanha relatando escaladas bem-sucedidas possui uma estrutura linear, com três momentos bem definidos e um final previsível.

No início abundam os lugares-comuns que costumam caracterizar o ato de planejar uma empreitada; a parte intermediária corresponde à realização do que foi previamente planejado, descrição quase sempre estereotipada de privações, sofrimentos e dificuldades do caminho; e, finalmente, a glória de se alcançar o cume, com todos os clichês da superação de limites, atitudes positivas e metas atingidas.

A leitura da epístola de Petrarca é um alento a toda essa literatura massificada, mostrando-nos ricas alegorias que descrevem o ato de se subir uma montanha de uma forma literária e, provavelmente, fantasiosa, mas que, paradoxalmente, surge como mais real que a realidade apresentada por livros de montanha que narram ascensões verídicas, já que é capaz de iluminar de uma maneira mais fecunda nossos sentimentos quando estamos na montanha. O caráter repetitivo da literatura de montanha acaba criando um ar de irrealidade e monotonia, onde todas as escaladas parecem iguais.

Não sei se existe uma versão em português do texto de Petrarca, talvez em alguma edição de suas cartas. Em espanhol é possível encontrá-lo como o título de Subida al Monte Ventoso, publicado na coleção de bolso Centellas da editora espanhola José J. de Olañeta, de onde tiramos as citações que usamos em nosso artigo, traduzindo-as para o português.

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