Vivendo para escalar: Ideias e conceitos para fazer acontecer o sonho agora!

Sempre corri muito atrás do que queria, desde o princípio da minha adolescência, quando meus pais trabalhavam muito e eu tinha que me virar atrás das coisas que queria fazer e ser. A verdade é que na minha vida inteira quase nunca aconteceu de alguém pegar na minha mão e me mostrar o caminho, sempre tive que eu meter a cara e fazer acontecer.

Foi assim com a natação, com a faculdade fora do país, com as inúmeras mudanças para outras cidades (e países), com todos meus empregos, com um casamento que veio e foi, com namoros, e com minha entrada no mundo da escalada. Essa “cultura” do fazer acontecer virou oxigênio do meu sangue. Não é esforço, vem naturalmente.

Escaladas de primavera pela bacia de Aergéntiére, em Chamonix | Foto: Cissa Carvalho

Consequentemente, muitas barreiras que existem por aí – físicas, sociais, psicológicas – passaram pela minha frente desapercebidas. Já escutei tantos “você não consegue” de gente importante na minha vida, que eventualmente deixou de ser surpresa e foi perdendo a aura ameaçadora, o que foi bom pois bem cedo deixei de fazer as coisas para provar para os outros que eu podia, e passei a fazer para mim porque eu gostava e me faziam feliz.

Esses dois pontos são ilustrações importantes para o que vou explicar a seguir.

Essa temporada no Brasil foi magnífica, para resumir de maneira sucinta. Queria não só estar com minha família e amigos, mas me por em contato de novo com a comunidade de escalada brasileira, conhecer lugares novos, explorar antigos, e provar para mim mesma – depois de uma lesão que me colocou na estaca zero – que eu podia sim escalar em rocha de novo, e bem. Tudo isso aconteceu. Tive ainda a oportunidade de compartilhar meu caminho no alpinismo com um monte de gente, fosse nas palestras que dei, fosse nas falésias ou casinhas Brasil afora.

Mas mais do que isso, muita gente me escreveu. E o cerne das questões girava sempre em duas coisas: primeiro que no Brasil não se compartilha informação sobre como acessar alta montanha de maneira independente, segundo que eu servia de inspiração por “viver fora da Matrix”. Consegui responder em parte a essas questões pessoalmente para poucas pessoas, e respondi para muitas outras via internet, mas não sei se disse tudo que gostaria que as pessoas ouvissem.

Nas palestras que dei e na série sobre alpinismo que tenho publicado aqui abordo o acesso ao alpinismo independente de todos os pontos de vista possíveis, puxando do meu caminho as diretrizes para se inserir nessa modalidade da escalada.

De cliente aprendiz a alpinista autônoma

Acho importante sempre traçar o paralelo com a escalada em rocha no Brasil, e os recursos que temos disponíveis aqui, senão fica impraticável dar qualquer tipo de dica. Portanto, a primeira coisa que queria esclarecer, e que responde ao grosso das perguntas que recebo, é sobre quando chega o momento de ir independente para montanha.

Sabe quando você faz o curso de escalada em rocha, e começa a ir com gente mais experiente para campos escola, e um belo dia vai você e outro colega que acabou de começar, escalar uma via bem fácil mas que vocês sabem que tem total capacidade de administrar? Pois é, alpinismo é exatamente a mesma coisa.

O primeiro cume técnico na Corilheira Branca, em 2013 | Foto: Beto Ponti

O que dificulta para nós brasileiros é que não temos ambiente alpino aqui. O ambiente alpino é muito mais complexo que rocha, e é preciso ir e vivenciar muitas vezes para aprender a ler a geografia das montanhas, condições da neve, do gelo, dos tipos de rocha, etc. É preciso portanto fazer muito volume, e para fazer volume é preciso viajar muito para esses ambientes, senão essas capacidades não se desenvolvem.

Infelizmente é difícil para nós brasileiros viajar muito. O ambiente alpino mais próximo é também área de alta montanha e portanto qualquer saída de menos de duas semanas não é produtiva (aclimatação), além do que a altitude requer preparações extras. Mas entra aí saber aproveitar as oportunidades.

Voltamos à minha história: cada vez que eu agendava uma viagem de alta montanha, eu treinava muito, estudava muito (sobre a região, as vias, as montanhas, as técnicas), para chegar no local e aproveitar o máximo possível. Quando ainda escalava guiada, eu já chegava com uma lista de coisas que queria aprender, praticar, dúvidas para tirar. Quando ia escalar independente com parceiros de outros países, fazia questão de aprender muito sobre as diferenças de estilo e técnicas aplicadas em outras cordilheiras. Tudo isso me deu um conhecimento amplo e um repertório enorme de soluções adaptáveis às mais diferentes situações.

A verdade é que ninguém precisa gastar uma fortuna para escalar montanha. O caminho independente é mais longo e com menos fama, mas uma vez que você aprende, você escala a via que quiser na montanha que quiser, e nunca mais estará limitado ao pacote que alguma agência oferece. Mas claro, é preciso estudar e praticar muito, para ir com segurança e não colocar a vida de ninguém em risco.

Entra aí a modéstia, pois nós como cidadãos de um país sem ambiente alpino, entramos bem atrasados no jogo, portanto devemos estar abertos a aprender e escutar sempre. Apesar de muita gente achar que querer aprender é coisa de escalador novato, eu penso justamente o contrário, pois tenho a experiência para afirmar que alpinismo se pratica de maneiras diferentes em todos os cantos do mundo.

O cume mais recente na Cordilheira Branca | Foto: Chabe Farias

Bons escaladores de verdade vão valorizar a troca de experiência. E sigo com uma de minhas máximas: conhecimento não ocupa espaço.

Outro ponto importantíssimo a esclarecer, seja para quem vem de uma base de escalada em rocha ou para quem vem de uma base de montanhismo, é que escalar grau forte em rocha não faz de você um escalador melhor que ninguém, menos ainda bom alpinista. As cenas mais épicas de ver gente tomando espanco em via alpina foram justo as que envolveram escaladores que mandavam muito em esportiva e tinham a mentalidade que isso era suficiente para uma escalada bem sucedida em montanha. Não é. Tem muitíssimas mais chances de sucesso o escalador que é mediano em todas as disciplinas envolvidas no alpinismo do que aquele que só domina o grau forte em rocha.

E aí entramos em outro aspecto importante: preparação física e mental. Alpinismo é de longe a modalidade que demanda mais esforço e investimento em todos os aspectos. É preciso treinar todos os aspectos físicos, o ano inteiro. Eu por exemplo, nunca estou sem treinar. Tenho períodos, como esta temporada no Brasil, em que diminuo bastante o treino, mas não deixo de fazer exercícios para manter a forma (e da para fazer exercício em qualquer lugar e a qualquer hora, sem gastar dinheiro), cuidar da nutrição para não perder músculo e não ganhar gordura, e manter um mínimo de cardio, tudo visando os próximos objetivos ou as demandas da próxima estação. Da época da publicação deste texto por exemplo, já estou há alguns meses fazendo treinamento específico para escalada em gelo e dry tooling, ambas modalidades de inverno.

E claro, quando você aprende com outras pessoas nesse estilo de troca, aprende a valorizar mais a informação, portanto, compartilhe o que aprendeu. A comunidade agradece. Tudo que eu posso eu compartilho cada vez mais, principalmente com o alcance do Blog de Escalada, e da resultado, senão não estaria escrevendo este texto e tido tanto feedback nos últimos meses. Faça o mesmo sempre que possível.

Vivendo a escalada “Fora da Matrix”

E chegamos finalmente à abordagem sobre a tal “viver fora da matrix”. Estar num país com ambiente alpino ou não, para quem quer praticar alpinismo, demanda muito envolvimento. Senão, vira uma coisa esporádica: para quem quer ir de vez em quando tudo bem, mas no meu caso, que busco objetivos cada vez mais difíceis, é preciso muito investimento (investimento não é necessariamente dinheiro hein…).

Da mesma maneira como nós brasileiros optamos por dedicar tanto tempo à escalada – que querendo ou não ainda é uma atividade elitizada no Brasil – eu fiz uma escolha ainda mais profunda e consciente de dedicar minha vida atual ao alpinismo, e abrir mão da minha carreira, pois ela atrapalhava minha dedicação à escalada.

Conhecento o calcário de Chincay, Peru, a 4200 m de altitude | Foto: Gianci Salis

Talvez eu seja um pouco hippie, talvez tenha um espírito nômade, e até que era boa no que fazia, mas o fato é que cheguei num ponto onde estava infeliz, não só porque viver em São Paulo é para outro tipo de louco e porque eu gosto de viajar, mas porque logicamente, eu não conseguia dedicar o tempo e esforço que eu queria pro alpinismo, e como eu disse em minhas palestras, não da para ser alpinista no Brasil (mas da sim para ser um alpinista brasileiro). Ficou óbvio então que se eu estava disposta a viver disso, precisava me deslocar para um lugar onde isso se tornasse praticável.

Felizmente encontrei um equilíbrio de poder viver de bicos e/ou empregos “menores”, onde apesar de não fazer nem carreira menos ainda ganhar bem, consigo o suficiente para me manter, comer, renovar e equipamento de vez em quando e principalmente, me dedicar muito ao alpinismo. Soa romântico para alguns, mas é uma realidade com seus poréns : não tenho imóvel, nem carro, nem emprego fixo, nem estabilidade, nem poupança, e a cada ano que passa o dinheiro é mais contado.

Tenho pouquíssimos bens materiais e vivo somente com o necessário, sem luxo nenhum. Isso não é uma coisa que acontece de uma hora para outra, mas sim uma situação que se consolida, no meu caso desde já alguns anos, quando fui desapegando cada vez mais e aprendendo a viver com cada vez menos, tirando o máximo possível de aproveitamento da vida com o mínimo possível de recurso material.

Aproveitando as férias do frio na Sardenha, Itália | Foto: Alexandre Arrentino.

Essa vida é para todo mundo? Não.

É vida de sonho, fácil, pernas pro ar? Não.

É uma vida muito insegura, de muita incerteza, de contar com o pagamento de cada final de dia/semana/mês, e a qual, quanto mais velha eu fico, mais me preocupa minha falta de preparação financeira para o futuro, caso ele se estique muito. Mas como disse Mark Twight, “o futuro será o que será independente de se ter seguro social ou não”.

Portanto, estou feliz assim? Lógico.

Dá para viver bem assim? Depende do seu conceito de viver bem, mas depois que você desapega de um monte de coisa que nem imaginava que não precisava, é uma vida muito mais completa, muito mais rica.

Dia desses estava indo embora da academia de escalada quando encontrei com um conhecido e falamos justamente disso, até ele me contar que estava planejando ficar um ano viajando com a namorada para escalar, mas que não conseguiria “largar tudo” assim. Pobre dele, pensei, pois a melhor maneira de entrar nessa vida é ficar um ano viajando, pois no final você já está tão acostumado a viver de uma mochila e meio sem planos que o difícil é voltar para casa e olhar para um apartamento cheio de tranqueiras inúteis, uma cidade nociva e um emprego que te prende num círculo vicioso para aumentar ainda mais a quantidade de coisas inúteis que você já tem – materiais e imateriais. Eu “larguei tudo” por muito menos que um ano de viagem. Fica a dica…

Acho importante também desmistificar um pouco o “largar tudo”: na verdade o que acontece é uma mudança de estilo de vida. A não ser que você seja milionário, ainda terá que trabalhar, comer e ter uma reservinha para emergências. O que muda são as prioridades. Minha prioridade atualmente é escalar, trabalho é somente pra viabilizar a escalada, ou seja: eu trabalho um pouco pra viver, e não o contrário. E felizmente tenho visto cada vez mais isso mesmo pelos Andes e até em alguns lugares do Brasil, mesmo com nossa economia ruim e todas as dificuldades. Tem muita gente vivendo “fora do matrix” mas como eu digo sempre, você não vai encontrar essas pessoas trabalhando num escritório.

Aproveitando as férias na Cidade Maravilhosa | Foto: Rafael Nishimura

Essas pessoas (eu incluída aí) vivem intensamente porque não passam a maior parte do tempo gerando energia e riqueza material para si e pros outros, apenas o suficiente para um dia ou uma semana. E nenhuma delas passa fome. E muitas delas são alguns dos escaladores mais fortes do mundo, muitos anônimos, mas que escolheram esse privilégio de se dedicar a uma paixão.

E finalmente, encerro este texto com essas duas palavras que pra muitos soam excludentes: escolha e privilégio. Lá em cima eu disse que escolhemos a escalada, um esporte ainda elitizado no Brasil. Escolhemos porque somos privilegiados economicamente. Mas muita gente que não o é também escolhe a escalada e vive a escalada com muito mais intensidade que nós, privilegiados economicamente. E por que? Porque tem pouco (material) a perder, a abrir mão. Portanto a fórmula para “viver a escalada fora do matrix” é relativamente simples: desocupar, tirar, se livrar, abrir espaço.

Com todo esse vão enorme que vai ficar, preencher com dedicação, com outros seres humanos, com escalada, com dedicação, com disciplina. Vejam eu: apesar de só ter dinheiro para viver os próximos três meses, não passo fome, continuo viajando, escalando cada vez mais e melhor. E além disso nunca fui tão rica. Rica de coisas que não se sentem com a mão nem se vêem com os olhos, mas praticamente uma milionária. Tem inspiração melhor que ser rico desse jeito?

Espero ter esclarecido mais algumas coisas, e continuo disponível para perguntas e dúvidas, via Facebook.

Abraço a todos e excelentes escaladas em 2017.

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