Crítica do filme “Viagem ao Topo da Terra”

O filme de animação Viagem ao Topo da Terra (The Summit of the Gods) da Netflix (que estreou em 30 de novembro) é algo totalmente novo para quem pratica montanhismo e busca entretenimento com essa temática. Animações que retratam o montanhismo e a escalada, em geral, são caricatas e sempre possuem uma pegada mais próxima do humor do que o drama e, muitas vezes, deixam a desejar quando se trata de verossimilidade de equipamentos, técnicas e diálogo entre personagens.

Este não é o caso de Viagem ao Topo da Terra, pois se trata de algo inovador e envolvente em termos de animação 2D, esbanjando beleza, emoção e, além disso, enaltecendo de maneira madura, e bem perto da realidade, a psiquê da comunidade de montanhistas e os bastidores de uma a escalada ao Monte Everest. Sem exagero nenhum, reside nesse detalhe, o apego ao realismo, o segredo para o impacto do filme no expectador, resultando talvez em uma das melhores produções dramáticas sobre expedições de alta montanha já realizadas há tempos. Em resumo, uma verdadeira obra de arte.

O filme abre com falas que servem como descrição literal do montanhismo e captam a energia existencial das seguintes obsessões: “Andar. Escalar. Escalar mais. Sempre mais alto. E para quê?” em uma cena ficcional de George Mallory e seu parceiro Andrew Irvine, desaparecendo na montanha de neve, para em seguida aparecer o personagem Makoto Fukamachi, décadas depois, fotografando uma equipe japonesa de montanhistas escalando lentamente a face sudoeste do Everest. A equipe não chega ao cume, deixando Fukamachi visivelmente frustrado, que se esforça para encontrar um significado em seu trabalho que o vê como quase inútil.

Adaptado do aclamado mangá de Jiro Taniguchi e Baku Yumemakura, o filme trata da relação entre o fotojornalista e entusiasta de escalada Fukamachi e o recluso montanhista Habu Joji. Quando Fukamachi percebe que Habu tem em sua posse a pequena câmera Vestpocket Kodak que pertenceu a George Mallory e seu companheiro Andrew Irvine, ele fica obcecado em descobrir “a verdade” sobre a expedição de Mallory.

O fotojornalista logo percebe que Habu planeja uma última tentativa de conquistar o cume pela face sudoeste do Monte Everest e pretende acompanhá-lo para fotografar. Como o diretor de Viagem ao Topo da Terra, o diretor francês Patrick Imbert, não estava interessado no significado mais profundo e espiritual de conquistar o Monte Everest, ele se concentrou na obsessão de chegar ao cume e de continuar a escalar cada vez mais rápido, mais alto e mais longe.

O visual da animação se assemelha muito com o tom realístico e vítreo da animação francesa “I Lost My Body” (também disponível na plataforma Netflix), mas sua influência mais formativa é apropriadamente japonesa: Studio Ghibli, fundado em 1985, que tem em seu currículo produções como “Eu Posso Ouvir o Oceano”, “A Viagem de Chihiro” e “Vidas ao Vento”.

Viagem ao Topo da Terra é um filme que sabe que ninguém jamais terá uma resposta melhor do que “porque está lá”, mas tão crucialmente também é uma produção de quem conhece essas palavras. Por este tipo de respeito a detalhes realísticos do montanhismo faz com que a produção seja um clássico instantâneo.

Tudo é centrado na presença espiritual de George Mallory, que desapareceu a 300 metros do pico em 1924. Assim, nada mais lógico que Viagem ao Topo da Terra comece com ele, ou pelo menos com a câmera que ele deixou para trás no Monte Everest quando desapareceu.

O fato de que na câmera Vestpocket Kodak contém a única evidência de se Mallory realmente chegou ao topo da montanha, explica porque o fotojornalista Makoto Fukamachi se fascina quando o artefato está pendurado na frente de seu rosto em Katmandu. Makoto está a poucos passos de agarrar a câmera quando ela é capturada por uma figura lendária: o ex-montanhista Habu Joji, que desapareceu do mapa após uma série de acidentes terríveis atrapalharem sua carreira.

Makoto está feliz com o mistério que a situação apresenta, apenas porque envolver a busca por Habu em torno da busca pela câmera de Mallory desperta o interesse de seu editor em Tóquio. Alguns flashbacks subjetivos depois (a maioria deles centrada em Habu), Makoto se vê fotografando a ascensão solo de Habu até o Monte Everest.

Os dois não se relacionam, mas chegam ao acordo mútuo de que cada montanhista deve definir seu próprio significado. O mesmo vale para as pessoas que assistem de casa, à medida que o filme gradualmente remove cada camada dos personagens, até que sua chegada ao cume seja um espetáculo sem palavras em termos visuais, quando a câmera que segue os dois montanhistas distantes em direção ao céu (uma metáfora que pode significa que estão distantes de nós e um do outro).

Nessas paisagens de maior altitude e menos pretensiosas que Viagem ao Topo da Terra atinge o pico de sua qualidade, exaltando visuais dignos de documentários de montanhismo de qualidade, enquanto uma trilha sonora linda e cativante de Amine Bouhafa faz com que cada passo pareça uma proposição espiritual antes de explodir em uma avalanche de sintetizadores.

A combinação de tudo isso resulta em uma irrealidade quase subliminar que equivale a algo entre um documentário e um sonho. A partir daí Makoto finalmente entende que “as montanhas não são um objetivo, são apenas um caminho”. Viagem ao Topo da Terra dá sentido à necessidade de Mallory seguir esse caminho para fatidicamente morrer, apenas porque este filme poeticamente entende que não havia outra maneira para ele saber aonde isso levaria.

Nota Revista Blog de Escalada:

O filme Viagem ao Topo da Terra (The Summit of the Gods) está disponível para visualização na Netflix

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