Veja como é escalar a montanha mais alta das Américas de forma independente

Já havia participado de várias expedições guiadas em alta montanha. Já havia feito trilhas e travessias de forma autônoma, mas nada que pudesse se comparar ao que viria a seguir. As boas experiências anteriores conduziram à ideia de planejar uma expedição independente em alta montanha e vivenciar algo ainda mais real.

Entre parcerias e amizades que surgiram no montanhismo, incentivos de amigos, surgiu o projeto de fazermos uma expedição só de mulheres. A princípio éramos quatro, mas por razões pessoais, duas acabaram por desistir. Mesmo assim Paulinha (Paula Kapp) e eu seguimos firmes com o plano original.

Foto: Cláudia Bento

Escolhemos o Aconcágua como objetivo por motivos de segurança. De um lado, teríamos a estrutura de um parque, de outro a companhia do grande fluxo de montanhistas, tendo em vista a popularidade do destino, considerado um dos 7 cumes mais altos de cada continente.

Ainda assim o desafio seria grande. O caminho independente implicaria uma nova forma de cuidado mútuo, um redescobrir de nossos limites, a superação de todos os medos, lidar com o frio extremo sem anteparos. Além das questões psicológicas incontornáveis, ainda seria necessário encontrar forças para armar a logística, idealizar soluções de contorno em casos imprevistos.

Além de planejar, estudar a rota e lidar com a altitude – meu processo de aclimatação é bem lento. Diante de todas essas dificuldades, era alimentada apenas pela certeza de que seria uma experiência única e inesquecível.

O Início

Foto: Cláudia Bento

Iniciamos a expedição no final da temporada, o tempo era péssimo – nevava todos os dias, insistentemente. Chegamos ao Cume das Américas dia 12 de fevereiro de 2017, apenas para enfrentar a descida sob nevasca – a montanha nos desafiava. O resultado não podia ser outro: um dos cumes da minha própria vida.

Não tivemos muito tempo de planejamento, ambas estavam envolvidas em processos de trabalho, além de morarmos em cidades diferentes. Assim que ficamos três dias em Mendoza no Hostel Alamo, que tem uma boa localização e quartos individuais, o que possibilitou organizarmos os nossos equipamentos.

Na estada em Mendoza, um dia reservamos para tirar a permissão para escalada (a mesma deve ser tirada pessoalmente no Departamento de Recursos Renováveis localizado na Avenida San Martin 1143, 1º Andar). Nos outros dois dias, fizemos as compras, verificamos os equipamentos que faltavam (há possibilidade de aluguel de equipamentos) e adquirimos as passagens até Penitentes.

Na montanha em si, foram 13 dias de expedição com seguinte percurso:

Dia Trecho
02 de Fevereiro Entrada do Parque via Valle Horcones 2.700 m (distância de 3 km do vilarejo de Puente del Inca ) até Acampamento Confluência – 3.368 m
03 de Fevereiro Caminhada de Aclimatação – Confluência até Plaza Francia – 4.200 m
04 de Fevereiro Confluência a Plaza de Mulas – 4.370 m
05 de Fevereiro Descanso em Plaza de Mulas
06 de Fevereiro Plaza de Mulas a Canadá – 4.930 m (porteio e descanso em Plaza de Mulas)
07 de Fevereiro Plaza de Mulas a Canadá
08 de Fevereiro Canada a Nido de Condores – 5.560m (porteio e descanso em Canadá)
09 de Fevereiro Canada a Nido Condores
10 de Fevereiro Nido Condores á Berlin 5.926 m (porteio e descanso em Nido Condores)
11 de Fevereiro Nido Condores a Berlin
12 de Fevereiro Cume Aconcágua – 6.962 m
13 de Fevereiro Berlin a Plaza de Mulas
14 de Fevereiro Plaza de Mulas a Horcones- saída do Parque

Optamos por contratar mula até Plaza de Mulas, assim não precisaríamos portear até lá, o que daria uma margem de dois dias, se precisássemos de uma janela maior para o dia do cume. Contamos com meu GPS Garmin 64S e rádios; lá é possível se comunicar com os guardas-parque em caso de necessidade e para obtenção da previsão do tempo.

Não contratamos transfer, optamos por ônibus de Linha de Mendoza até Penitentes. A passagem pode ser comprada com um dia de antecedência, na rodoviária de Mendoza. Em Penitentes, deixamos parte dos equipamentos a serem transportados diretamente para Plaza de Mulas e de lá nos levaram até a entrada do Parque Horcones.

A montanha mais alta das Américas de forma independente

Confluencia | Foto: Cláudia Bento

Passamos duas noites no acampamento de Confluência, levando barraca, equipamento e comida para três dias. Nesse meio tempo, durante a caminhada de aclimatação até Plaza Francia, apenas sentimos a frustração de não ser possível enxergar nada, apenas a consistente neve.

No terceiro dia subimos para Plaza de Mulas. Mais um dia difícil, nevasca densa que nos deixou congeladas e exaustas. Mesmo nesse estado precário as barracas não se montariam sozinhas, nem a comida nos seria entregue via uber eats. A noite foi longa; três horas apenas para aquecer meu corpo novamente.

Foto: Paula Kapp

O dia seguinte garantiu o necessário descanso; tomamos café e banho quente de baldinho que viabilizaram um novo ânimo.

No quinto dia começamos o porteio de nossos equipamentos e mantimentos. Montamos outros três acampamentos (em Canadá, Nildo de Condores e Berlin). Primeiro a subida com parte dos pertences, cerca de 25 kg de bagagem e equipamentos, então nova descida, para somente no outro dia subirmos e montarmos o acampamento definitivo com o restante das coisas, processo que ajuda na aclimatação e alivia o peso de carga.

Acampamento Canadá | Foto: Cláudia Bento

Foi uma experiência dura, subíamos, descíamos, tínhamos que derreter gelo para beber e cozinhar, montar a barraca; o frio e o vento queimavam nossa pele, os dedos sangravam, a ancoragem da barraca nas pedras era calamitosa. Minha percepção em meio ao processo é que apesar de não sermos tão fortes fisicamente como um homem, nossa capacidade de tolerância às adversidades e determinação para concluir um projeto são enormes, o que é essencial não só na montanha como na vida.

A madrugada do cume foi muito fria, saímos por volta das 4h30 horas, dormimos em Berlin, por estar mais vazio e não haver expedições comerciais.

A trilha é bem marcada, existe um trânsito constante, mas quando o vento espalha a neve pulverizada, pode ficar mais difícil. Não é uma caminhada técnica, mas exigente que apresenta alguns trechos expostos que acabam representando riscos, principalmente na descida quando o corpo e a mente já estão fadigados.

Descansando da decida após Cume | Foto: Paula Kapp

Ziguezagueamos ate Plaza Independencia, onde paramos para colocar os grampões. O gelo estava por toda parte. Foi ali que senti, pela primeira vez, uma pontinha de inveja: de nosso lado, uma expedição com guias prontos a ajudar na colocação dos grampões, para logo em seguida oferecer chá quentinho para todos os clientes. Enquanto isso, as nossas mãos já castigadas eram obrigadas a tirar as luvas para ajustar os grampões nas botas. Não foi das sensações mais agradáveis.

Durante a madrugada, o pé da Paulinha congelou. Tentávamos não perder o foco, o nascer do Sol nos aqueceu e nos deu mais esperança e vontade de continuar.

Em Plaza Independencia há uma travessia que conduz até a base da canaleta – o trecho mais difícil, por ser íngreme, repleto pedras soltas e gelo escorregadio. Ali as coisas se complicaram. Até então caminhamos sempre juntas, mas na canaleta, acabamos nos distanciando, ainda que sem nos perdermos de vista.

Nossos ritmos estavam diferentes, eu estava mais lenta, sentia muito os efeitos da altitude, sabíamos que tínhamos um horário limite para chegar e teríamos que ficar pouquíssimo tempo lá em cima, pois havia uma previsão de nevasca mais tarde.

Conclusão

Foto: Cláudia Bento

Devíamos considerar que o cume constitui só metade do caminho e a descida tampouco seria fácil. Estávamos sós, sabíamos que nos ajudaríamos, mas o imperativo da autossuficiência era novo. A cada passo eu pensava se deveria continuar ou desistir; entre erros e acertos, choros e risos, seguimos. Apenas com a persistência mental, quase desconhecida, conseguimos transcender as limitações de nosso corpo.

Quase ao final da canaleta, Paulinha me esperou e decidimos continuar no mesmo ritmo, de lá os derradeiros 150 m. Para mim, a distância parecia se multiplicar, mas harmonizamos nossos passos e chegamos juntas ao cume.

Foto: Paula Kapp

Nesse sentido, agora penso que consigo organizar os sentidos de meu relacionamento de respeito com a montanha: estar na montanha representa um processo de constante aprendizado em minha vida. Se no cotidiano me considero uma mulher forte e independente, de ótimo condicionamento físico, na altitude tudo isso parece cair por terra. É como se nada funcionasse o suficiente; meu corpo não é o mesmo, nem minha mente. A montanha me permite aceitar minhas limitações e aprender a lidar com o ego.

Imediatamente percebo o quanto preciso mudar como ser humano. Lá, sinto como se estivesse nua, sem máscaras, em um processo de autoconhecimento, onde é necessário buscar no meu interior a verdadeira força (que não é física). Esse é precisamente meu maior incentivo para querer continuar a escalar e levar esse aprendizado em processo para o restante da vida, para além dos limites da montanha.

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