A história de uma grande Vaca que virou uma estadia na UTI

Cidade de São Paulo, 29 de outubro de 2014. UTI do Hospital São Luiz.

“Muito triste. Caixões de pessoas tão jovens…”, ouço da televisão ligada no box da velhinha em frente. A apresentadora do programa matinal que detesto fala do choque de um caminhão com um ônibus de excursão, que matou treze pessoas.

Foto: Acervo pessoal Marcos Angelim

Foto: Acervo pessoal Marcos Angelim

Ontem, escalando*, a vaca parecia inevitável: sem pés bons, depois de um ansioso tango no granito, louco por uma posição estável, com as pontas dos dedos de ambas as mãos doendo, desesperadamente apoiadas sobre o gume afiado de duas lascas, e já a uma boa distância do último grampo costurado, esqueci a vaidade, sacrifiquei a prudência e meti o indicador direito no olhal da chapeleta ao meu alcance, na esperança de achar uma boa agarra para a mão esquerda e costurar.

Mas, nada! Estou cansado de saber que agarrar uma chapeleta é extremamente arriscado!

E de todos os riscos, a imagem do desluvamento foi a que se fixou na minha mente em meio aos alertas dos camaradas mais de cinco metros abaixo.

E foi pra não perder a capa do dedo, ou o próprio indicador, que mantive a calma pra olhar rapidamente pra baixo e avaliar a extensão e o tipo da queda que me aguardava.

Nesse perrengue, tirei o dedo do olhal e avisei:

-Queda! Olha o platô!

Vrrrummmm!!!

Não sei ao certo por quanto tempo apaguei. Um? Dois minutos? Jeff, Serafim e portuga contam que eu caí corretamente, lançando o corpo para trás, mas que, muito rapidamente e de modo que não conseguem descrever, ao fim da queda bati as costas e depois a cabeça na rocha, ficando pendurado à corda, inconsciente, de ponta-cabeça e produzindo um ronco parcialmente obstruído pela saliva na garganta. Nocaute!**

Puseram-me, então, no chão ainda desacordado e, alguns instantes depois, abri os olhos sorrindo e dizendo: “Vamo escalar, vamo escalar!…”

– Você caiu, cara! Apagou! Bateu a cabeça! – disse um deles.

– Caí? Como?

Eu os enchi de perguntas, e das mesmas perguntas repetidas vezes. Podia me lembrar do momento em que, não aguentando mais, impulsionara o corpo para trás desprendendo-me da parede. Nada além. Ao recobrar a consciência, o acidente fora editado e, pra mim, eu acabara de vacar e era só tentar o lance novamente

– “Vamo escalar!”, repetia.

De verdade, eu ainda estava me divertindo à beça!

– Cara, melhor irmos pro hospital.

Um pouco confuso, aceitei o fim daquele lindo dia de escalada.

Serafim ainda limpou uma via, guardamos rapidamente nosso equipo e rumamos para o hospital onde esse texto é escrito.

Foto: Acervo pessoal Marcos Angelim

Foto: Acervo pessoal Marcos Angelim

O atendimento médico foi bom: fiz tomografias da cabeça, cotovelo esquerdo e tórax, além de uma ressonância também da cabeça a fim de terem certeza de que a provável concussão cerebral não causou danos graves.

De acordo com um dos médicos com quem conversei, um mineiro que já praticou boulder e que também trabalha em hospitais públicos, se eu estivesse no SUS, o procedimento seria apenas a realização de uma tomografia, observação do meu quadro por seis horas e alta!

Como estou num hospital privado e amparado por um bom plano de saúde, o protocolo exige mais tempo em observação e outros exames.

Saúde é um negócio bilionário. Os procedimentos e leitos são caros.

Hospitais, planos e usuários estabelecem uma relação de interesses conflituosa em que os terceiros constituem o elo mais fraco.

No meu caso, estou amparado por um bom plano empresarial, daí tanto cuidado e conforto a ponto de ser transferido para um quarto individual de UTI.

Sempre usei o SUS. A vida inteira me submeti às condições precárias do serviço que se destina à grande maioria dos brasileiros. Pra dizer a verdade, houve períodos em que contei com seguros de saúde, mas geralmente recorria a hospitais públicos em emergências ou pagava por consultas e exames em situações em que podia esperar.

No entanto, depois que me tornei um escalador, que passei a assumir a responsabilidade de guiar em trad e em vias esportivas, percebi que não posso prescindir de um bom serviço de saúde.

E esse é mais um aspecto que revela o elitismo do nosso esporte no Brasil. Escalar é perigoso! A maioria dos escaladores que conheço tem um crash-pad socioeconômico que os protege de uma queda direta no chão, quero dizer: no SUS.

E isso não é uma censura a quem felizmente pode pagar, mas a constatação da realidade: o escalador que não tem proteção econômica corre um risco a mais – o de não receber o atendimento médico necessário após um acidente. Você pode ser um escalador forte, ter um bom nível técnico, equipo, saber usá-lo e conhecer a via em que entrou, porém nada elimina o risco de ferimentos graves e de morte.

E quando um escalador entra numa via, independentemente do grau da escalada, assume tacitamente esses riscos.

Dizem alguns que é por ser um esporte arriscado, que exige coragem e controle da mente em situações-limite, que a escalada é tão fascinante.

Eu, apesar de estar na UTI neste momento e ainda imerso na reflexão sobre o que me aconteceu, assim como o sujeito apaixonado que enumera as virtudes da amada, mas não compreende o mistério do seu amor, não sei explicar o que me leva a escalar, a arriscar tanto.

Sei apenas que não quero morrer velho e sofrendo numa UTI, que se a queda de ontem houvesse sido fatal, eu teria morrido jovem, entre amigos, escalando e, por isso, muito feliz.

*Pedra da Represa, Salesópolis, São Paulo. Via: não podemos identificar com certeza, mas uma das últimas vias da direita.

**Se eu não estivesse de capacete, poderia estar morto ou me machucado mais gravemente. Mesmo em vias esportivas e de baixo grau, use capacete.

There are 2 comments

  1. Evandro Adriano Duarte

    Opa Marcos!

    Tudo bem?

    Vejo com preocupação o crescimento de praticantes na escalada que não buscam um bom preparo para a prática segura.

    Escalo a mais de 15 anos e tive um parceiro que levou chão numa queda que sacou todas as peças da parede, realmente o atendimento público tem as limitações que você cita.

    Neste acidente ele ficou desacordado por um tempo, isso graças ao capacete que segurou a bronca e chamei o resgate dos bombeiros para socorrê-lo. Engraçado que seu relato de acordar e querer sair escalando foi exatamente o que ocorreu com ele, não tinha sacado que havia caído.

    Bem no pronto socorro fizeram um raio x e não constatado nada mandaram ele pra casa. Uma semana depois ainda reclamando de dores e passando pela Unicamp para resolver uns problemas, resolveu passar pelo pronto socorro. Ao fazer uma nova radiografia já o internaram para fazer novos exames, pois parecia que ele tinha sofrido uma bela lesão na coluna. Por sorte não foi nada grave, só um deslocamento.

    O importante dessas história é que realmente os prontos atendimentos espalhados pelo país são precários, contudo, em alguns lugares quando consegue ser atendido o serviço é ótimo. Uma pena que não seja assim sempre.

    Minha preocupação com tudo isso é que vejo muita gente pouco informada e pouco preparada para escalar e que estão indo pra rocha sem sequer saber da importância de um capacete, quanto mais usar outros equipamentos.

    Forte abraço e boas escaladas… de preferência com vacas seguras…rsrs..

    Evandro

    1. Marcos

      Com a popularização do esporte é “natural” aumentar o número de acidentes e isso se agrava ainda mais porque muita gente começa a escalar com amigos, adquirindo deles conhecimentos e vícios. Aí, por exemplo, o cara aprende a rapelar, mas não sabe fazer um prusik ou negligencia a importância do nó na ponta da corda e por aí vai. E mesmo quem lê, estuda ou faz curso de escalada muitas vezes é imprudente, escalando sem capacete, por exemplo, “porque a via é tranquila”, “é esportiva”, “porque fica melhor na foto”… Eu, porque levo a coisa a sério, vou voltar lá dia desses com meus camaradas e tentar reconstituir o caso pra ver o que de fato aconteceu. Uma queda que supus que seria tranquila e segura poderia ter posto fim a tudo. Valeu pelo comentário. Um abraço!

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