Uma boa habilidade mental na escalada não se resume apenas na capacidade de gerenciar o medo – Saiba o porque

Se você pensa que uma boa habilidade mental na escalada se resume a capacidade de gerenciar o medo, temos que conversar.

Parece comum a falta de precisão na terminologia que usamos na escalada. O que é um escalador forte? Falamos “forte” ou ”máquina” mas queremos dizer que ele é bom, e no processo desconsideramos outros aspectos, como a técnica. E o escalador técnico? Ser bom de vertical ou positivo aponta para a “técnica”, mas também estreitamos a análise, desconsiderando que a técnica surge também em outras situações como tetos ou negativos.

Mas quando te pergunto o que é um escalador com um bom psicológico, o que você pensa?

Engraçado que falar em habilidade mental a gente logo pensa em medo né?

Escalador Matheus Farage - Foto: Lucas Castor | https://www.facebook.com/vivapedra

Escalador Matheus Farage – Foto: Lucas Castor | https://www.facebook.com/vivapedra

Já escutei que escalar vias esportivas é mais desafiador do que escalar boulders devido o aspecto “mental” envolvido. Outras tantas vezes tive que explicar porque precisava melhorar meu jogo mental para conseguir encadenar “aquele” boulder, causando estranheza e dúvida aos meus ouvintes.

Eu sei, eu sei: lidar com altura e, consequentemente, lidar com medo é difícil. Eu sei também que estar no máximo a 2 ou 3 metros do chão não mete muito medo aos amantes de boulders. Fazendo uma brincadeira de dedução, concluo: não existe, ou não é forte o suficiente, o aspecto mental da escalada em boulder.

Não se preocupe, o texto não é para boulderistas apenas. Não vou entrar no mérito de declamar como todas as modalidades de escalada são desafiadoras e tampouco vou tentar compará-las. Mas quero sim te incentivar a pensar: habilidade mental na escalada é só gestão do medo?

Jogo Mental

Se você pudesse listar todas as habilidades que ajudam (ou atrapalham) um escalador a escalar melhor, quais você listaria?

Rapidamente vamos ao óbvio: a parte física. Força de mão, força de puxada, força de core. Poderíamos discutir sobre o quanto de força de puxada realmente precisamos ter, mas duvido que alguém discorde que esse é um item obrigatório em nossa lista de um bom escalador.

“Ah! Mas tem gente que nem é tão forte assim e escala muito!”. De fato! E aí entra o segundo ponto que quase todo mundo leva em consideração: a técnica. Qualidade do movimento, precisão, repertório. Tem tanto a se explorar nesse tópico que é melhor deixarmos esse tema para outro artigo.

Físico, técnica. Já havíamos falado de gestão do medo. Escalador completo?

Escalador Matheus Farage - Foto: Lucas Castor | https://www.facebook.com/vivapedra

Escalador Matheus Farage – Foto: Lucas Castor | https://www.facebook.com/vivapedra

Interessante pensarmos em situações. Quando você se perde no meio da via ou do boulder, procura as agarras, chega na agarra com a mão direita ao invés da esquerda, fica procurando os pés, o que está faltando? Mais força , mais técnica? Que tal memória?

E quanto a concentração? Se interrompo meu pensamento durante a escalada “pescando” aquela conversa legal da “seg” como fica a minha escalada? Ou se simplesmente não consigo continuar escalando porque estou muito preocupado me lembrando que passei da costura. O quanto essas coisas influenciam no meu desempenho?

E a confiança? Podemos dizer que acreditar que consegue fazer algo tem influência? Quem nunca viu aquele “amigo de um amigo meu” que é forte, forte, forte, mas que mal começa o pega já fala que não consegue, que está fraco, que o dia não está para ele? E quando o projeto está difícil, você já desistiu algumas vezes, e chega o brother da vibe, te da um tapa na costela e simplesmente muda sua vontade de escalar? Eu tenho algumas cadenas na conta desses brothers…

Podemos ir além. Tem dias que simplesmente não queremos fazer força, não nos interessamos pela linha, não nos engajamos com o problema. Simplesmente não temos a menor vontade de fazer força. Nesse dia, nossa (des)motivação nos derruba sem mesmo termos começado a subir.

A validade do treinamento mental e alguns fatores de rendimento psicológico ficaram claros? Mas o que devo e como devo treinar? Da mesma forma que treinar a força de puxada possui especificidades distintas do treinamento envolvendo as mãos e os dedos, treinar as habilidades mentais requer cuidadosa análise, e se queremos maximizar os resultados de qualquer treinamento, precisamos categorizar as habilidades mentais um pouco melhor.

Para tornar o texto mais rico, procurei auxílio de um especialista para sua confecção. Matheus Farage é psicólogo formado na Universidade de Brasília e escalador há mais de 10 anos, acumulando grande experiência na escalada. Já mandou V11 (boulder) e 9° grau (vias), já participou de diferentes competições de escalada, indo bem e indo mal. Já se lesionou, já se desmotivou, já se reinventou. Alguém que fala nossa língua.

Organizando as habilidades mentais

Assim como em qualquer outra atividade humana, na escalada utilizamos diversos recursos psicológicos ao mesmo tempo. Todos estão conectados e são interdependentes. Não podemos separá-los, somente enfatizar um por vez.

Vamos começar com a Concentração e a Atenção. A grosso modo, Atenção é onde está o foco da nossa consciência. Em paralelo, Concentração é a alocação de nossos recursos e processos psicológicos em uma tarefa específica. Quando nos distraímos, seja com algo externo ou interno, tiramos nossa atenção da tarefa que estamos realizando e focamos em outras coisas (daí que vem o Déficit de Atenção). Focados cometemos menos erros e somos mais eficientes. Fácil de imaginar o preço de uma distração quando vemos Alex Honold solando? Qualquer erro é fatal…

Escalador Matheus Farage - Foto: Lucas Castor | https://www.facebook.com/vivapedra

Escalador Matheus Farage – Foto: Lucas Castor | https://www.facebook.com/vivapedra

Nossos estados emocionais têm influência direta na nossa concentração. Evidente nas competições o peso da ansiedade nos atletas, levando-os a cometer mais erros. O mesmo acontece com o medo e a raiva.

Outra habilidade importante é a memória. De forma genérica, é capacidade de captar, processar, reter/guardar e resgatar informações. Para lembrar todos os movimentos de um boulder você teve que ler, tentar, dar sentido aos movimentos e recuperar essa informação. A memória é influenciada diretamente pelo ambiente em que estamos, nosso estado de consciência, nosso estado emocional e nossa motivação, o que torna extremamente estratégico o momento que escolhemos para ler a via/boulder.

E a motivação? Estar motivado é a disponibilidade em reunir recursos (quaisquer que sejam) para se alcançar um objetivo ou uma meta. Pode ser algo concreto (ganhar um campeonato ou mandar uma graduação X), ou algo mais abstrato (evoluir e crescer pessoalmente no esporte).

Porém, porque muitas vezes estamos motivados para alcançar um objetivo maior, mas desistimos sem mal ter começado? Nessas horas, nós nos “auto sabotamos”. Nós fazemos isso inconscientemente (ou às vezes bem conscientes mesmo) pra evitar a mudança e, claro, uma possível frustração. Parece, portanto, indispensável entender o que fazemos, como fazemos e como reverter a situação. Estamos falando de imensos ganhos não só na escalada, mas também na vida.

E o tão popular medo e a ansiedade ? Essas são próximas, além de comuns em escaladores e atletas. Tratam-se de reações naturais que nos alertam do perigo , nada mais que um “sentido aranha”. Embora voltados para nos manter vivos, tratando-se de desempenho na escalada, podem nos atrapalhar MUITO.

Fundamental também é a confiança. Acreditar em si e na própria capacidade muitas vezes transforma o projeto em cadena. Algumas pessoas parecem ser naturalmente confiantes, mas herança não é a única forma possível de ganhar confiança. Muitos de nós somos reféns de nossos pensamentos automáticos, que nos derrubam e acabam nos desmotivando e nos sabotando.

E nem só de escalada vive o homem! Antes de qualquer pega nosso psicológico já está influenciando nossa escalada. Nossa personalidade e nossa identidade são fatores decisivos no desempenho e na evolução. O que a escalada significa para mim? O que uma cadena representa para mim? Como me vejo como escalador? E como pessoa? Acredito que sou capaz de encadenar? Estou mais preocupado com o que meus amigos vão dizer ou comigo? Se uma mulher mandou o projeto que estou malhando, eu desmereço a cadena e fico mal ou isso não me afeta?

O trabalho psicológico é, principalmente, um grande processo de reflexão e autoconhecimento. Além dos processos cognitivos, e talvez até mais importante, precisamos trabalhar nosso self. Por exemplo, o trio autoimagem, autoestima e auto eficácia, nossos padrões, nossas dificuldades e facilidades, nossos mecanismos de defesa, nossos preconceitos, nosso machismo/sexismo/racismo. Para isso é necessário muita honestidade consigo mesmo e muita coragem para se enfrentar.

É importante deixar claro que a Psicologia do Esporte não é Psicologia Clínica. Em alguns momentos elas se aproximam. Um trabalho efetivo de treino e aquisições de habilidades mentais pode ir fundo e mexer com nossas verdades e certezas. Por isso é preciso um profissional qualificado.

Mas Peixe e Farage: como treino isso?

Incrível se tivesse aquela cartilha mágica de dicas e sugestões né? Obviamente, o treinamento mental segue um dos aspectos fundamentais utilizados no treinamento físico: individualidade. Portanto, o primeiro passo é um bom diagnóstico. Precisamos saber no que somos bons e no que precisamos melhorar. Já dizia o coelho à Alice no País das Maravilhas: Se não sabes para onde ir, qualquer caminho serve.

Um treinamento mental mal orientado ou mal implementado pode não gerar resultados ou gerar resultados pouco visíveis. Portanto, lembre-se que dicas são apenas dicas. Algumas coisas são diretas e bem documentadas como a memória. Mas outras dependem de uma análise um pouquinho mais criteriosa.

Por exemplo, se você lê o problema várias vezes mas mesmo assim esquece os movimentos, pode ser que a técnica de repetição não seja a mais eficiente para você. Se quando encontra uma dificuldade a primeira coisa que você faz é parar, isso é falta de motivação ou de acreditar que é possível? Você já isolou todos os movimentos mas não consegue mandar a via, isso é falta de concentração ou de calma? Se você se sente pressionado em encadenar o projeto, você abala ou ganha confiança? O frio na barriga é por acreditar que pode ou acreditar que não vai dar? A pressão é por querer mandar ou por querer impressionar o bonde? Como você escala com muita gente olhando? Como você justifica suas frustrações? Você decota o que não manda ou decota tudo que manda? Qual o real motivo de todas coisas? Essas são perguntas para iniciar um processo de reflexão.

São diversas as habilidades na escalada, e podemos ter níveis muito distintos em cada uma delas. Quantas vezes já não viram aquele monstro do campus que não sabe pisar nem se posicionar. Ou aquele super técnico escalador que não consegue lembrar de uma sequência de 3 agarras seguidas. Se você manda v13, mas não consegue fazer um dinâmico com cadeirinha pensando na queda, você ainda é um iniciante no quesito Medo, e como todo iniciante o treinamento deve ser simples e progressivo.

Uma escalada “psicologicamente habilidosa”é eficaz e eficiente. Ou seja, isso envolve uma boa leitura com uma ótima capacidade de lembrar dos movimentos. Uma concentração focada na escalada, não se deixando distrair com pensamentos intrusivos ou situações externas. Uma boa noção da segurança e dos perigos envolvidos. Um grande autoconhecimento e a capacidade de conseguir pensar nos momentos mais delicados.

Um diagnóstico bem feito e um acompanhamento eficaz valem ouro. Treine inteligente e evolua consistentemente.

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