Route Setting, arte e a Guerra da Coréia

Por André ‘Deco’ Braga

Você sabe o que é Route Setting? O que uma das linhas de boulder da final masculina dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 tem a ver com a Guerra da Coreia? Esse texto busca, acima de tudo, homenagear e enaltecer o trabalho “invisível” que rege as competições modernas de escalada indoor, além de proporcionar uma análise do Route Setting no debute olímpico da escalada esportiva.

A vida de um Route Setter não é nada fácil. Independente se é competitivo ou comercial, se é para o festival de um ginásio local ou para uma competição internacional, montar linhas de escalada é, por definição, um trabalho difícil. Entretanto, quanto maior o evento, maior é a responsabilidade.

Route Setting

E, nesse quesito, não existe responsabilidade maior que a estreia olímpica do esporte. Por trás do debute da escalada nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, duas equipes de quatro integrantes foram responsáveis por criar todo o show, uma para a modalidade de vias guiadas (lead), comandada pelo polonês Adam Pustelnik, e outra para a modalidade bouldering, comandada pelo britânico Percy Bishton.

E nenhuma delas levou para casa uma medalha, mesmo sendo responsáveis diretos pelo sucesso da competição. É uma profissão um tanto ingrata, afinal, se dá certo só fizeram a “obrigação” e se algo dá errado o mundo inteiro critica. Por trás de todo aquele show teve muito suor, estresse, perfeccionismo, análise crítica e trabalho duro em equipe acontecendo.

O que é um Route Setter?

Route Setting

Para quem não sabe, o Route Setter é o profissional responsável por criar linhas de escalada. Pode parecer simples, mas eu diria que é uma das funções mais complexas, subjetivas e subvalorizadas do nosso esporte.

Uma linha deve ser, simultaneamente:

  • Bonita para o público e diversa de estímulos para os atletas
  • De variados estímulos técnicos de movimentação sem favorecer ninguém
  • Desafiadora mas que pelo menos um atleta consiga completar até o final
  • Progressiva, fluida, sem um movimento muito mais difícil ou muito mais fácil que o outro
  • Eque proporcione a seleção de diferentes performances, não acumulando diversos atletas num ponto específico da linha proporcionando um ranking de performances.

São tantos os detalhes que a equipe deve se preocupar que dificilmente temos uma criação pessoal num evento de escalada, já que todas as linhas são testadas, lapidadas e aprovadas por toda a equipe, até satisfazer seu objetivo inicial. Entretanto, mesmo com todas essas limitações e direcionamentos, ainda existe muita liberdade nessas composições.

A arte do Route Setting

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Pessoalmente, o Route Setting é e sempre será uma forma de expressão artística, principalmente quando falamos de Route Setting Competitivo. Mais que uma escultura, estática e puramente estética, o Route Setting explora a interação e o movimento além de, obviamente, a estética de uma linha de escalada.

Trata-se de uma escultura interativa, onde cada interação é totalmente pessoal, determinada pela maneira que cada atleta interpreta a disposição dos apoios naquele contexto. Cria-se então uma experiência que não só desperta mas também aguça os sentidos, envolvendo uma noção quase subconsciente dos detalhes da movimentação do corpo, variando as sensações de estabilidade e equilíbrio.

Toda essa experiência é guiada pela capacidade do artista de criar coreografias e guiar os atletas por essa coreografia. Portanto, além de um bom atleta, o profissional deve ser criativo e entender muito bem dos pilares que regem a dificuldade de uma linha de escalada, trabalhando dentro das variáveis de Risco, Intensidade e Complexidade (RIC), e ainda ter uma bela formação artística para explorar ao máximo as composições e harmonizações.

Route Setting e a polêmica da ‘bandeira do imperialismo japonês’

Route Setting

Nada em uma linha de competição é por acaso. Entretanto, muitas vezes essa arte passa despercebida para o grande público, como foi o caso do Boulder 3 da final masculina das Olimpíadas. O que para alguns foi a melhor linha do evento, para outros passou despercebido.

Onde alguns viram um relógio ou uma flor, poucos reconheceram o símbolo nipônico que inspirou aquela obra de arte. A terra do sol nascente, como também é conhecido o Japão, foi homenageada nessa linda composição, centralizando um apoio amarelo e arredondado como o sol e utilizando os volumes em disposição radial como seus raios do amanhecer.

Por não ter sido completada por nenhum atleta, alguns poderiam atestar aqui que a linha não cumpriu sua função. Entretanto, uma linha de escalada de competição tem muitos outros objetivos que apenas esse, e essa foi a linha que mais explorou esses objetivos de maneira consciente pela equipe.

Route Setting

Por outro lado, a composição acabou envolvida em uma pequena polêmica justamente por conta dessa homenagem. O que passou batido para a maioria do público dessas olimpíadas não passou para a comunidade de escalada da Coreia do Sul.

Acontece que a bandeira do sol nascente é, em essência, um símbolo de guerra japonês que, em 1905, o Japão utilizou na invasão da Coreia do Sul. Muitos sul-coreanos ainda associam a bandeira do sol nascente à longa lista de crimes de guerra e opressão imperialista do Japão na região.

A questão é tão delicada no país que algumas opiniões mais extremas até chegam a comparar a bandeira do sol nascente à suástica nazista. Essa situação, inclusive, culminou numa pressão para o banimento da bandeira das olimpíadas como um todo (para entender melhor assista ao vídeo no topo do artigo).

Tal medida, entretanto, não foi adotada pelo comitê olímpico, que não interpretou o símbolo como uma manifestação violenta ou preconceituosa e acabou permitindo que fossem utilizadas durante o evento. Entretanto, mesmo o símbolo não tendo sido proibido, a utilização dele como referência para a composição da terceira linha de boulder da final masculina do evento acabou criando uma leve polêmica na comunidade internacional de escalada, quando alguns atletas sul coreanos repudiaram a referência da linha. Pessoalmente, não acho que a linha estivesse errada de nenhuma forma.

O Japão é conhecido mundialmente como a terra do sol nascente, justamente pela convenção mundial de ser onde começa o dia. Inclusive, essa convenção é homenageada na própria bandeira do país, onde o círculo vermelho centralizado representa o sol.

A bandeira do sol nascente japonês já superou qualquer significado histórico local nesse mundo globalizado justamente por se tratar de uma referência cultural do país onde o sol nasce. O apego histórico da comunidade sul coreana à este “símbolo de guerra” não é repercutido no resto do mundo, que o identifica somente como uma representação cultural.

No mundo globalizado em que vivemos, encontramos o sol nascente estampado em pranchas de surf, calções, camisetas, e até em memes na internet. É um símbolo já até banalizado, sem associação com qualquer tensão política atual, que foi avaliado pelo Comitê Olímpico Internacional como inofensivo (muito diferente da suástica).

Por outro lado, avaliando agora as pessoas que compunham as equipes de Route Setting do evento, percebe-se que, para a disciplina de bouldering, nenhum dos profissionais da equipe era Japonês, muito menos sul coreano. A equipe de um suíço, um francês e um americano era comandada por um britânico, que provavelmente tiveram a brilhante ideia de homenagear o país sede do evento numa das linhas de escalada.

O símbolo foi meramente uma referência; uma inspiração estética para dar origem à composição escultural da linha de escalada. E, ao meu ver, não há nenhum problema nisso. Reconheço, entretanto, que é um ponto delicado, justamente por envolver crenças, culturas e conflitos que nenhum de nós brasileiros nunca poderá entender na plenitude.

Entretanto, há de se esperar que fatores culturais e sociais sejam mundialmente utilizados como fonte de inspirações artísticas. A arte funciona assim, se inspira na cultura para retro alimentá-la. E por existir uma certa liberdade artística no trabalho de um Route Setter, referenciar composições não é algo incomum em competições do esporte.

Equipar uma linha já é uma atividade limitada por diversos fatores técnicos e funcionais, e buscar referências para composições esculturais em cada linha é muito estimulado nesse trabalho, justamente por conectar elementos culturais e sociais à pratica desportiva, criando vínculo com o público espectador e aumentando o engajamento do esporte. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, com toda a sua importância e magnitude, esse tipo de composição era esperada.

E a referência homenageou o país sede com um dos seus símbolos mais repercutidos na sociedade global. Essa pequena polemica só serviu para comprovar que, mesmo num evento de sucesso, sempre haverá espaço para críticas. Afinal, a vida do Route Setter não é nada fácil.

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