7 dias caminhando: Relato da Rota da Luz

Como outras peregrinações no roteiro nacional, a Rota da Luz é mais uma para a lista dos simpatizantes e para o meu currículo.

Em 2017 fiz o Caminho do Sol e fiquei com vontade de repetir a sensação de estar na estrada: livre, sem compromisso, sem amarras a não ser com a chegada, uma meta mais suave do que as que já trilhei nestes meus quase 50.

Pois é, este marco está batendo à minha porta e necessidades como estas se tornam cada vez mais frequentes. Atendendo a este apelo interior, e com um pouquinho de experiência, resolvi partir para a meta de 201 quilômetros desta vez, que depois se tornaram 210, pois os hotéis e pousadas não ficam do lado da rota.

Foto: José Angelo Coelho

No Caminho do Sol eram 241 km, dos quais só fiz 219, em 11 dias, por isso tinha o desafio pessoal de cumprir o percurso total. Seriam menos quilômetros, porém em menos dias: 7. Ou seja, a média diária seria maior: 30 quilômetros e sempre tentando fazer o percurso diário de 9 a 10 horas para dar tempo de chegar com luz clara na cidade, lavar roupa, secar e fazer duas refeições almoço e jantar, pois a fome era grande.

A estimativa de tempo deu certo, mesmo que forçando um pouco a barra física, mas a das refeições não. Simplesmente, porque chegávamos em torno das 15h, tínhamos que enganar o estômago para pedir o “jantar”.

Nesta rota fui acompanhada de mais 3 amigos e 1 amiga, 3 deles velhos conhecidos (Lourdes, Ângelo e Francisco) e 1 (Marcelo) conheci logo na saída de Mogi. Depois fizemos amizade com mais alguns pelo caminho, mas somente 3 acabamos registrando nomes (Célia, Alex e Marcello) e trocando telefones.

Como optamos em chegar no destino final, Aparecida do Norte, depois do feriado de 12 de outubro, já não havia muita gente neste trecho. A Rota da Luz foi criada para tentar tirar os romeiros que fazem promessas da Rodovia Dutra, mas o grande contingente continua indo por lá pois é mais curto – 137 quilômetros. Encontramos somente os caminhantes que citei no começo do texto, além de ciclistas – estes sim muitos e tropeiros, poucos.

Foto: Maria de Lourdes M. Pereira

Cumprimos a nossa rota de 9 a 16 de outubro, passando por 8 cidades – Mogi, Guararema, Santa Branca, Paraibuna, Redenção da Serra, Taubaté, Pindamonhangaba e Aparecida. Como a maioria que faz esta rota não pernoitamos em Roseira, que fica entre Pindamonhangaba e Aparecida.

Preparativos

Para colocar o pé na terra, no asfalto e em outros terrenos é preciso se planejar minimamente, como em qualquer outra viagem.

Por isso, leia tudo sobre o percurso e as dicas de quem já fez a Rota. Prepare-se para comprar os itens indispensáveis a um peregrino.

Neste tipo de viagem é importante estar bem fisicamente, caso contrário pode não aguentar o tranco. Tanto no aspecto muscular quanto cardiológico. Converse com seu médico e seu personal, se tiver. Faça treinos específicos para este tipo de atividade e teste o equipamento que irá utilizar na trilha, como o stick (bastão de caminhada), bota ou tênis para amaciar e uma mochila de trilha, de preferência já com o peso que pretende levar. O recomendado é de 10% do peso do peregrino. Vale fazer a mochila com todos os itens, pesar e se for o caso repensar as quantidades. Mesmo que a sua trilha seja de mais do que 7 dias, o peso sugerido é o mesmo, pois quem vai carregar é você. Assim, você tem algumas alternativas:

  1. Lavar as roupas para que as mesmas estejam limpas ao longo do percurso. Se as roupas não secarem, a mochila é útil para pendurar as roupas… Ou seja serve de varal, basta pendurá-las com um alfinete.
  2. Despachar a mochila e andar sem ela, mas coloque isso no orçamento. No Brasil o custo pode ser de R$ 150,00 para trajetos de até 30 km, se você não tiver com quem dividir e em Santiago, em torno de 20 Euros.
  3. Levar roupas velhas e doá-las pelo caminho e, claro, comprar novas para substituir, mas você precisará ter tempo para isso e nem sempre encontrará lojas especializadas nas cidades do caminho.

O calçado também é um item super importante para evitar dores. Da outra vez eu tive problema. Levei uma bota de caminhada já amaciada, mas do tamanho do meu pé e ele incha depois de tantos dias andando. Desta vez, levei uma bota maior e revezei com um tênis próprio de caminhada, ainda tenho dúvidas se a melhor combinação não é um calçado fechado e um aberto, a famosa papete, com meia, que a minha companheira de estrada Lourdes não me leia…hehehe. O bom é que pude testar outras alternativas e quem sabe para uma próxima ainda terei melhorado o meu enxoval. Desta vez, também percebi que não ter uma bota impermeável é um risco, dizem que é mais pesada, mas se chover vários dias seguidos você pode ficar com o pé molhado todos os dias.

Foto: Francisco Fernandes Acosta

E dentro da bota vem a meia, sim ela e vários outros itens. Tem gente que prefere usar duas meias, uma mais justa e outra por cima estilo Coolmax, um tecido desenvolvido especialmente para estas situações. Quando o corpo transpira, a fibra transporta a umidade para a superfície externa do tecido, onde evapora rapidamente, deixando os pés secos. Esse processo permite a regulagem da temperatura dos pés e também é muito eficiente na diminuição da formação de bolhas.

Nada de repetir as meias, elas devem ser mantidas limpas, secas e devem ser bem colocadas para evitar atrito e ser do tamanho certo para se encaixar perfeitamente aos contornos do pé e não formarem rugas.

Ah, as bolhas, sim, aqui também cada um usa o que for melhor. O mais recomendado e usado é a proteção com micropore e vaselina. Tem gente que prefere esparadrapo. O importante é proteger bem, leia-se fazer um excelente pé de múmia. Também tem quem use absorvente nas “almofadas” dos pés ou na ponta da bota para diminuir o atrito. Eu já testei todos e ainda sim fiz bolhas, mas cada vez melhoro o quadro final de escoriações.

Quanto às unhas, deixe-as curta antes da caminhada, mas não tire a cutícula, tudo que puder proteger seus pés e dedos é melhor manter. Vale lembrar que apesar de todo o esforço cada pé é um pé, com tipo de pele e unha, portanto a dica de um pode não servir para você, e você pode conquistar suas próprias bolhas, unhas roxas e até perdê-las. A mesma coisa vale para tornozelos, joelhos, coluna, por isso cuide-se antes. Afinal, este tipo de desafio traz ônus específicos do seu bônus, mas não precisam ser graves e deixarem lesões irreversíveis. Tenha cautela e as conquistas serão mais espirituais do que outra coisa.

Quanto ao cajado há quem prefira o de madeira, estilo Moisés e quem prefira o stick de titânio. Leve em consideração a sua melhor adaptação, peça emprestado de um amigo para testar, mas pondere também, se terá que despachar o equipamento e se tiver que dobrá-lo e carregá-lo na mochila. Mas, se você tem um amuleto da sorte e o seu cajado é ele, dê seu jeito para levá-lo!!!

É bom testar tudo antes para ver se funciona para você. Faça do seu pé um laboratório antes da trilha oficial.

Tem muitos itens neste enxoval, vale testar e pesquisar cada um deles. Converse com quem já foi.

Foto: Silvia Prevideli

Durante o trajeto – Além do cuidado com a saúde, caso aconteça algo como bolhas (fure), inchaço (use gelo e outros recursos) ou algo mais grave (descanse um dia ou adie seu sonho), aproveite para cuidar do espírito e do coração. Falo isso, pois muitas pessoas deixam de fazer estas caminhadas por medo do desconhecido. Podemos enfrentar riscos, sim, como estradas vazias, chuva forte, raios, muito sol, estradas sem acostamento, animais na estrada, mas tudo isso pode ser contornado evitando se expor aos extremos.

Como?

  1. não fazendo os trajetos sozinhos, mesmo que queira em alguns momentos estar só… Neste tipo de caminhada, as pessoas respeitam o silêncio e caminham ao seu lado quietas, ou dão uma distância pequena
  2. acompanhando a previsão do tempo, pois em caso de chuvas intensas, vale repensar

Aproveite estes trajetos para reflexões. Não vou tão longe sobre autoconhecimento e mudanças de vida, mas que ajuda a se desconectar de tudo, ajuda. E queimar energia ajuda a liberar endorfina, que faz um bem danado (https://bit.ly/2ONgOwE)

Outro cuidado é com a alimentação, aqui vale a velha máxima não espere ter fome para comer ou ter sede para beber. O desgaste é grande e não dá para fazer dieta nesta situação. Leve barra de proteínas, castanhas e chocolate (se não estiver quente) para ganho imediato de energia e algo salgado, pois é importante a ingestão dos dois. Se você é vegetariano ou vegano, prepare-se pois pode não encontrar muitas alternativas, pois diferentemente do Caminho do Sol em que a comida é feita especialmente para o grupo, neste caso as hospedagens atendem os demais turistas das cidades e por isso não faz cardápio especial. Leia mais em Onde ficar.

Quanto à água, veja se no trajeto tem algum bar ou mercado para reabastecer, caso não compre em torno de 1,5 l para 20 quilômetros.

Outra coisa importante é dormir cedo e acordar cedo. Se for período de sol e de chuvas também normalmente se fizer tudo bem cedo, você se salva do sol forte e das chuvas de começo de tarde.

Conhecer outros peregrinos também é um desses bônus, afinal são poucos malucos que gostam desta atividade. Esses poucos são especiais.

Além disso, você pode caminhar e chegar ao destino já abençoado, pois todo mundo que passa por você nas estradas deseja boa sorte e pede proteção divina. E em muitas cidades destas rotas os peregrinos são homenageados nas missas.

No caso da Rota da Luz, alguns estabelecimentos e residências têm uma placa indicando que “Amigo do Peregrino”, mas poucas vezes fomos acolhidos em locais assim. Normalmente as casas estavam fechadas, não sabemos se porque passamos durante o feriado e fim de semana ou se não está funcionando.

Os poucos lugares que abriram suas portas para nós foram maravilhosos, e aí vale citar a Sirlene do bar do Fim do Mundo no km 12 entre Guararema e Santa Branca, a Dona Maria no km 15 no caminho de Paraibuna Para Redenção da Serra , a amiga do Peregrino em Taubaté, o bar e restaurante Paizão, que não estava atendendo a parte de alimentação, mas foi útil como local de parada e uso de banheiro. Outros locais não tinham a placa, mas foram bons também, como o Empório da Roça no km 12 de Taubaté para Pindamonhangaba.

Sirlene do bar do Fim do Mundo

Muito diferente do Caminho do Sol que recebíamos apoio contratado no pacote, as chamadas nuvens, no caso da Rota da Luz há trechos longos sem um local para encostar, nem mesmo na estrada (um banquinho, uma pedra, um degrau sequer), ou um ponto de apoio para abastecer água e usar banheiro. É preciso ler as dicas do Oswaldo Buzzo (link no final), conversar com os moradores dos locais ou os donos das pousadas antes e se preparar para enfrentar esses percalços.

No nosso caso tivemos sorte de conseguir em três situações de quase “pane” água vinda de pessoas abençoadas, das quais não anotamos os nomes, mas temos registradas em nossas memórias para gratidão eterna. Anotem os nomes e tirem fotos, vale a citação.

Paisagens e climas

E as paisagens valem a pena. Sim, sempre. A maioria das estradas escolhidas para montar estas rotas não são as usadas pelos carros, ou melhor, usada por poucos. Com isso, temos menos poluição, barulho de motor e perigo, mas sempre é preciso ficar atento até porque pode haver trechos urbanos e muitos sem acostamento, como aconteceu em trechos pequenos de Mogi, Guararema, Taubaté, Pingamonhangaba e Aparecida.

A paisagem nesta rota é diversificada. No Caminho do Sol vemos longas extensões homogêneas, com muitas plantações de milho e de cana e terra vermelha. Nesta vimos nuances de terra, pedras e plantação de vaca, oops, quero dizer pastos, fazendas que não pareciam grandes propriedades. Mas ambas guardam sua beleza da nossa roça, do cheiro do mato, do assobio dos passarinhos.

A altimetria desta rota castiga mais, há várias subidas e descidas, que não alivia em nada.

Infelizmente, vimos muita sujeira pelo caminho e alguns animais atropelados.

O clima estava menos quente que o de julho no Caminho do Sol. Estranho, nem tanto, o nosso inverno anda mais quente ou empurrado para frente e a nossa primavera chuvosa. Assim, nos 7 sete dias tivemos direito a neblina, friozinho, sol, chuva, clima ameno e o corpinho só suportando.

Foto: Sirlene do bar do Fim do Mundo

Carimbos

Assim como em outras rotas, inclusive Santiago de Compostela, existe um passaporte para pegar carimbos em determinados pontos. Na Rota da Luz são somente 8 carimbos e fáceis de serem conseguidos. Precisa apenas ficar atento se o carimbo for na Igreja e não na pousada para pegar na hora que chega, pois muitas vezes o horário de saída não coincide a abertura do local. Aqui também tem a possibilidade de pegar carimbos digitais via QR Code em placas e registrar no app e no final ainda tem um certificado impresso que deve ser solicitado na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, desde que você tenha no mínimo 3 carimbos, o que equivale a andar pelo menos 100 km.

Onde ficar

Como não se tratava de um pacote fechado, tínhamos que reservar as nossas hospedagens. Começamos olhando as dicas do site oficial da Rota, mas ficamos perdidos, pois lá havia mais de 20 indicações em algumas cidades e outras 3. As cidades pequenas como Santa Branca e Redenção da Serra não oferecem dúvida, só tem mesmo aquele para ficar e também são os mais próximos da rota, desvio de no máximo 2 quilômetros. Para quem já andou 30, mais 2 pesa sim.

Foto: Silvia Prevideli

Depois encontramos o blog de um peregrino, que nos “salvou a vida”, e lá selecionamos as opções. Uma delas já definimos, a pousada da cidade de Guararema, que seria diferente da do Oswaldo. Optamos pela Maria Florência e não a Pousada Guararema. Boa mudança! O resto fizemos tudo igual a ele, sendo que a única hospedagem que detectamos que tínhamos opção melhor por causa da distância foi a de Mogi. Podíamos ter ficado no Hotel Ibis ou no Marsala. Nos demais, não havia opção, mesmo quando ruim.

A maioria é muito simples, mas esperávamos ao menos um tratamento especial, pois é um turismo importante para a região. Contudo, nem todos capricharam nem no atendimento, nem na comida, nem em comprar o pão um dia antes e na manhã seguinte fazer na frigideira com queijo. Saíamos às 5h30, 6h e por isso não tínhamos pão fresco. Todas as pousadas concordaram em nos preparar algo mais cedo do que o horário regular, mas nem todas com o carinho e a dedicação da Marlene, dona da Pousada Paraíso em Redenção da Serra, sorriso fácil e uma “cuidadora” dos peregrinos de mão cheia!

Balanço final

Como tudo na vida, esta peregrinação tem o seu balanço e cabe a cada um fazê-lo. O sentimento de cada um ao cruzar a reta de chegada e alguns dias depois quando as dores se acalmam e as memórias ficam é que possibilita um olhar crítico ou afetivo.

Para mim é sempre a da sensação de liberdade, de comer terra e de se sentir parte de um todo, percebendo as pessoas que cruzaram o caminho, dando um “stop” e refletindo o quanto somos apenas aquele ser andarilho que precisa de um pouco de silêncio, de paz, do seu corpo levando a alma, do pé “quase” no chão, de uma marcha lenta e segura rumo a um lugar de troca no mundo.

Vale ler todas as dicas dos trajetos e altimetria no site do Oswaldo Buzzo

Leia mais

Outros sobre a rota:

Cuidados

Outras rotas

  1. Caminho Religioso da Estrada Real, de Minas Gerais a São Paulo, percurso de mil quilômetros em 37 dias.
  2. Caminho da Luz, Minas Gerais, percurso de 200 quilômetros em sete dias.
  3. Caminho da Fé, São Paulo, percurso de 497 quilômetros em 19 dias.
  4. Caminho das Missões, Rio Grande do Sul, percurso de 325 quilômetros em três a 18 dias.
  5. Passos de Anchieta, Espírito Santo, percurso de 100 quilômetros em quatro dias.
  6. Passo dos Jesuítas, São Paulo, percurso de 370 quilômetros em média 16 dias.
  7. Rota da Luz, São Paulo, percurso de 201 quilômetros em sete dias.
  8. Rota Franciscana, São Paulo, percurso de 818 quilômetros em dez a 15 dias
  9. Caminho dos Anjos – em Minas Gerais – 234 km em 7 dias.
  10. Caminho de Cora Coralina – em Goiás – 300 km em 9 a 10 dias.

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