Por que é ignorância acreditar que o estilo das competições de boulder é ‘parkour’?

No início de 2018 um veículo norte-americano publicou um artigo de opinião, sobre o novo estilo das linhas de boulder adotadas em competições de escalada no IFSC. O artigo de opinião em questão tinha um tom depreciativo e comparava o atual estilo, que exige técnicas pouco usuais das que eram usadas há pouco tempo, com “skate” ou “parkour”. Diferentemente do que uma reportagem analítica, artigos de opinião podem não exatamente refletir a realidade, mas uma determinada visão de alguém a respeito de algo.

Artigo de opinião é onde o autor tem a finalidade de apresentar determinado tema e seu ponto de vista a respeito. Na época da publicação do artigo, poucos atletas dos EUA tinham perspectiva de destacar-se na disciplina, e este tipo de realidade claramente afetou a análise feita pelo jornalista. Após esta análise, outros textos semelhantes, todos nos EUA, pulularam na imprensa especializada.

Valentina Aguado em Meirigen | Foto: René Oberkirch

Pela influência dos veículos, muitos praticantes de escalada começaram a repetir as palavras publicadas. Seguindo a mesma linha de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha Nazista, de que “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, foi o que aconteceu com o novo estilo de competições de boulder. A estratégia da repetição é eficiente, pois a comunidade de escalada e montanhismo, como qualquer outra, é capaz de acreditar em qualquer mensagem se ela for apresentada de maneira correta.

A International Federation of Sport Climbing (IFSC) encara a polêmica criada como apenas uma discordância filosófica, e não ofereceu uma resposta para o questionamento norte-americano. Em declarações nos bastidores, os route setters, pessoas que elaboram as linhas que serão escaladas, se limitam a dizer que os problemas modernos de boulder exigem que os escaladores façam movimentos grandes e dinâmicos, onde a coordenação é tão importante quanto a força.

Adam Ondra, o maior escalador esportivo da atualidade, afirmou recentemente em uma entrevista que o motivo é que fica fácil fazer várias tentativas de problemas de coordenação do que problemas técnicos muito difíceis. Isso garante a qualidade do espetáculo ao expectador.

Como todo preconceito é fruto do desconhecimento a respeito de um assunto, abaixo vai uma explicação e análise detalhada de porque a filosofia adotada pelo IFSC e seus route setters é uma natural evolução do esporte, que agora é olímpico, e os motivos de que isso enfrenta preconceito por causa da existência de certa ignorância de seus detratores.

Fábula da raposa e as uvas

Esopo foi um escritor da Grécia Antiga (1 100 a.C. a 146 a.C.) a quem são atribuídas várias fábulas populares e em muitos de seus escritos, os animais falam e têm características humanas. Para entender a má vontade e preconceito a respeito das linhas de boulder do IFSC é importante colocar os artigos de opinião a respeito do assunto e compará-los com a fábula chamada “a raposa e as uvas”.

“A Raposa e as Uvas” é uma fábula atribuída a Esopo e que foi reescrita pelo poeta e fabulista francês Jean de La Fontaine. Basicamente a história fala de uma raposa que, morta de fome, foi até um vinhedo sabendo que ia encontrar muitas uvas. Ao chegar no vinhedo, a raposa tenta, sem sucesso, comer um cacho de uvas penduradas em uma parreira alta. Para comê-las, a raposa realizava vários saltos, mas não consegue alcançá-las. Não conseguindo após inúmeras tentativas, afasta-se, dizendo que as uvas estariam verdes.

A moral afirmada no final da fábula é: É fácil desprezar aquilo que não se pode obter. O provérbio português “quem desdenha quer comprar” é comumente associado a esta fábula.

O que demonstra a fábula acima é que uma pessoa que quer encontrar alguma coisa, mas não consegue, acaba a denegrindo e diminuindo. É quase o caso de que o indivíduo está trabalhando para libertar a mente para o fato de que ele não perdeu tempo, dinheiro ou esforço.

Entenda o novo estilo

Foto: IFSC/Eddie Fowke

O estilo de boulder considerado moderno, o qual foi apelidado por detratores como “skate” ou “parkour”, é aquele em que a equipe japonesa, se destaca. O próprio Adam Ondra, o melhor escalador esportivo da atualidade, já foi treinar no Japão para entender melhor a lógica que existe por trás das linhas.

Quem acredita que somente os asiáticos são os privilegiados por esta nova filosofia, engana-se. A escola de escalada que mais se destaca na atualidade é a eslovena e austríaca. Nos Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires, que distribuiu as primeiras medalhas olímpicas da escalada, teve justamente atletas destes dois países dominando o pódio.

Para entender o que mudou em relação aos estilos, é necessário entender antes como se mede a dificuldade das linhas. Em suma, o estilo largamente utilizado é medido por um valor numérico (geralmente o grau V), que sintetiza a dificuldade de acordo com o movimento mais difícil. Este estilo é conhecido como “antigo” (pois era utilizado há 15 anos atrás nas competições) e privilegia muito mais a força bruta do que a técnica. Este tipo de aferição é muito usado na escalada em rocha e foi transportada para as academias e campeonatos. Até hoje, academias usam esta medição.

Foto: IFSC/Eddie Fowke

Este estilo, que privilegia muito mais a força e que visualmente parece que o escalador possui uma força bruta extrema é justamente o estilo que a comunidade dos escaladores dos EUA aprecia. Na escola deste estilo estão atletas como Chris Sharma e Daniel Woods. Não que exista algum problema com o estilo, muito pelo contrário. Mas como exige muito do físico dos escaladores competidores, a qualidade de uma escalada guiada no formato olímpico ficaria comprometida, assim como a capacidade de recuperação entre uma linha de boulder para outra.

Para preservar o físico dos escaladores por todo o dia de escalada olímpica, os route setters do IFSC, profissionais que elaboram os desafios, idealizaram uma nova medição, que leva em consideração um outro estilo de escalada: a escala RIC.

Nela são avaliados três elementos distintos e não somente a força bruta. Com esta nova escala, o objetivo dos route setters foi o de estimular a capacidade de resolver a complexidade de uma linha de boulder, pela maneira mais técnica e criativa possível. Para isso levou em consideração três fatores essenciais identificados como: R (risco) + I (intensidade) + C (complexidade).

Dentre cada um desses fatores é atribuída uma nota que varia de 0 (mínimo) a 5 (máximo).

Quer entender na prática o que mudou? No vídeo abaixo está explícito a diferença de abordagem entre duas escaladoras com estilos antagônicos: Alex Puccio (a maior ganhadora de boulder da história das competições dos EUA) e Janja Garbret (a melhor competidora de escalada da história). Observe como a mesma linha de boulder é feita de duas maneiras diferentes, uma usando a força extrema, com vários movimentos dinâmicos, sustentação apenas com as mãos e, ao menos aparentemente, sem pensar na estratégia e a outra, mais técnica e mais estrategista, faz a ascensão da linha de boulder à vista.

Mas então o que mudou? A exigência da principal das habilidades de um escalador de boulder. A partir desta medição, a exigência não é somente a força, mas também a capacidade de raciocínio e imaginação de um atleta especializado em boulder.

Quanto mais hábil na resolução da quebra cabeça proposto pelos route setters, melhor o seu rendimento. Portanto a capacidade de ser mais racional e menos instintivo é o que diferencia um escalador de outro. O vídeo exibido acima é uma demonstração clara disso.

Por que é ignorância?

O indivíduo que age por ignorância, age por falta de conhecimento. Quem age na ignorância, age incivilizadamente de forma voluntária. Portanto, consideraremos que neste posto que quem acredita que o novo estilo de escalada seja “parkour” ou “skate” seja apenas o primeiro caso. As mensagens agressivas que por ventura forem deixadas neste artigo, consideraremos que fazem parte do segundo tipo.

O filósofo grego Aristóteles afirmava que “o ignorante afirma, o sábio duvida e o sensato reflete”. Este artigo tem este objetivo: refletir sobre esta nova filosofia das linhas de boulder que os route setters do IFSC estão implementando. Repare que em toda a análise não há em nenhum momento corroborando que o novo estilo é “certo” e que outro é “errado”. É apenas uma evolução, que, dependendo do ponto de vista, pode ser, ou não ser, necessariamente positiva.

Foto: Daniel Gajda

A escolha deste novo formato é adaptar os atletas ao formato olímpico. Formato este que exige que os atletas compitam no mesmo dia, respectivamente, velocidade, boulder e escalada guiada. O que agora é exigido dos atletas de boulder é algo mais do que simplesmente força bruta e explosão. Como toda mudança de paradigma, é importante entender que há quem fique em desacordo. Principalmente porque, no caso de muitos escaladores já estabelecidos no cenário esportivo, todos têm de sair da zona de conforto.

Portanto, afirmar a princípio que a nova filosofia de linhas de boulder é “parkour” ou “skate” é comportar-se da mesma maneira que a raposa na fábula descrita acima. Pois se os melhores escaladores da atualidade, como Adam Ondra, Alex Megos e Stefano Ghisolfi, se adaptaram e também se destacam, é sinal de que esta nova filosofia não está dificultando para quem está disposto a enfrentar desafios e sair da zona de conforto.

Porque refletindo friamente sobre o assunto, o novo estilo é somente uma abordagem diferente e que estabelece uma nova maneira de treinar. Cabe aos treinadores que ainda estão com a cabeça voltada ás competições de 15 anos atrás, as quais possuíam outro tipo de exigência, começarem a olhar o futuro. Pois não é detratando o estilo que fará com que o IFSC se sensibilize.

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