O turismo no Nepal “estragou” o montanhismo no Himalaia?

Após publicar tantas más notícias a respeito dos óbitos no Himalaia, é necessário fazer uma reflexão não passional a respeito dos “engarrafamentos” no Monte Everest (8.848 m). Para quem tem o hábito de sempre clamar por proibições e regulamentações, como se uma canetada resolvesse tudo por mágica, deveria saber que a realidade não é bem assim que funciona. Para resolver problemas desta magnitude, que é a banalização da subida do Monte Everest, assim como o turismo de montanhismo no Nepal, é necessário analisar, refletir e estudar vários fatores para encontrar uma saída madura.

Inclusive, esta mesma superlotação e banalização da prática do montanhismo, que por muita sorte não oferece números de óbitos, também acontece no Brasil. Quem já visitou o Pico dos Marins (2.420 m), ou mesmo tentou passear no Parque Nacional do Itatiaia, sabe que a superlotação e “engarrafamento” de turistas não é uma exclusividade do Nepal. Este tratamento inadequado, que muitas agências de turismo de montanha fazem visando somente o lucro e esquecendo de outros fatores, não é um caso isolado no mundo. Nem tampouco uma característica exclusiva do Nepal. Acontece no mundo inteiro e, infelizmente, sem qualquer tomada de decisão das autoridades.

Talvez a imagem daquela fila grotesca no Monte Everest possa parecer chocante. Principalmente para quem sempre imagina o cume da montanha mais alta do mundo, um lugar silencioso e longe de problemas da civilização. Quem acompanha montanhismo, sabe que há tempos o Monte Everest n;ao é assim. Não há como negar que a foto de Nirmal Purja atraiu atenção em todo o mundo e ganhou aliados na busca de uma racionalização da escalada no Monte Everest. Mas o leitor mais atento, que buscar nos históricos sobre o assunto na Revista Blog de Escalada, deve encontrar vários artigos a respeito desta degradação do mérito de subir ao topo da montanha mais alta do mundo.

Buscado pela memória, ou mesmo pesquisar no Google, há diversas fotos que mostram que a fila para o Monte Everest não é uma novidade. O mais icônico exemplo é do ano de 2012 quando uma outra foto, esta tirada pelo montanhista alemão Ralf Dujmovits, focava a mesma fila, mas à distância, e mostrava que ela se estendia desde o Campo Base até o cume. Desde então, todos os anos há uma esppécie de “eleição” de qual seria a foto que mostrará a imagem mais chocante. Porém a foto ficava restrita a sites especializados em esportes outdoor, mas que preservava a ética e os princípios do montanhismo, como a revista Blog de Escalada. Mesmo assim, como que ignorando a realidade, as mídias tradicionais continuavam o “oba oba” em cima de qualquer fato que se referisse a alguém no Monte Everest.

Porém, este ano de 2019, além do congestionamento, criou-se ainda um outro perigo que antes não existia. A espera para poder descer pode matar, pois o montanhista tem de retardar a descida. Quando as pessoas têm que esperar nestas filas para descer, elas correm o risco de ficar sem oxigênio, ficando com quantidade suficiente para a descida. Ou seja, as mortes estão acontecendo porque chegou-se ao limite do que é razoável na exploração do Monte Everest.

Especialistas dizem que as multidões de pessoas inexperientes autointituladas montanhistas no Everest, aumentaram nos últimos anos porque as expedições se tornaram mais populares. Além disso, quase que a totalidade da mídia tradicional parece (ou pelo menos deixava a entender) que desconhece fatos corriqueiros e de conhecimento geral, como sherpas carregarem montanhistas até o topo. Não bastasse este desconhecimento, estas mesmas mídias tradicionais, de maneira patética, sente uma atração visceral em falar sobre ações de marketing usando a montanha. Há montanhistas que justificam várias ações bizarras atrás das outras, com a justificativa de que “uma outra pessoa já fez”, como se isso chancelaria alguém a cometer o mesmo desrespeito.

Mídias de massa: da omissão à indignação

A foto de 2012 | Foto: http://www.ralfdujmovits.de

Meios de comunicação de massa (jornais, revistas e canais de TV aberta ou à cabo), parecem concordar com este desrespeito à ética de montanhismo e deterioração do Monte Everest. Isso porque sempre estão acatando e divulgando estas ações de marketing, mesmo que fira a ética ou preservação de um lugar. Nestas campanhas, infelizmente, vale tudo, desde promover potes de açaí, cura do câncer, marcas de celular e até mesmo “apoiar” a escaladas de competições nas olimpíadas. Como se alguém subir na montanha mais alta do mundo substituísse a ação efetiva de qualquer causa.

O resultado desta vista grossa da mídia tradicional (jornais, revistas e canais de TV aberta ou à cabo) a estas bizarrices, estamos observando neste momento com as 20 mortes no Nepal em montanhas acima de 8.000. Lembrando que muitos “engarrafamentos” são causados ​​por turistas despreparados, leigos em assuntos de montanhismo, e que “não têm condições físicas ou psicológicas” para a viagem. A foto para o Instagram, com o logotipo do patrocinador do ato, vale mais que uma reflexão sobre o real mérito de fazer aquilo.

Porém, o que mais se deve refletir é que maioria esmagadora destas pessoas que estão na fila esperando a vez de chegar no cume (para definir um título do primeiro isso, ou segundo aquilo) é o desespero por atenção. Porque, como dito muitas vezes, o mérito esportivo de chegar ao cume do Monte Everest e mérito pessoal, são duas coisas distintas. Mas tanto o jornalista leigo no assunto, quanto o profissional de marketing, desconhecem a diferença. Alguns, no caso das agências de publicidade, parecem mesmo fazer questão de “esquecer” e usar indevidamente o fato de ter chegado ao cume da montanha mais alta do mundo, como uma ferramenta de alpinismo social.

A questão econômica do Nepal

Para entender melhor o que há por trás de tudo, basta analisar os números existentes a respeito do montanhismo no Nepal. O número de pessoas que chegam ao cume do Monte Everest saltou de 133 em 2000 para, até o momento, 825 em 2019. Um aumento de 620% em 20 anos. Estes números se referem somente para o Monte Everest e o turismo, de um modo geral, no Nepal também foi impactado na mesma proporção. Neste dado de aumento sensível do volume de turismo no Nepal, e seu impacto sobre a economia do país, é que reside o cerne da questão.

Analisando os indicadores econômicos, é possível refletir a respeito da ideia de como as expedições ao Monte Everest, incluindo o trekking ao campo base, é um negócio que não pode ser ignorado pelo governo do Nepal. Atualmente o PIB do Nepal é de aproximadamente US$ 24,47 bilhões (números de 2017). Porém, o valor do PIB nepalês no ano 2000 era de US$ 5,49 bilhões (quando o total de cumes no Monte Everest eram de 133). Ou seja, o crescimento exponencial de turistas no país coincide com o crescimento do PIB.

Sabidamente o Nepal é uma nação pobre, com economia baseada na agricultura e turismo. A agricultura emprega 65% da população e somente 20% da área total do país é cultivável. Portanto, o turismo é uma indústria importante no país, gerando renda e, consequentemente, arrecadação de impostos que o país não possuía.

Com uma população ávida por explorar o turismo, acabaria acontecendo o que era inevitável: a superlotação de tudo por todos. Assim, em termos econômicos, quanto mais turistas, maior quantidade de dinheiro é injetada na economia do país, permitindo ao governo arrecadar mais. Portanto, ainda está longe o dia em que o governo nepalês limitará o número de permissões para apresentadores de TV e ações de marketing aconteçam no cume da montanha mais alta do mundo. A pressão internacional, que somente pode ser feita por quem é atuante no mercado da economia nepalesa, é quase nula pois, como todo sabem, empresas e seus representantes não se preocupam com superlotação nas montanhas.

Qual seria a solução?

O que pode ser feito para que diminua o volume de pessoas no Everest é fazer com que a mídia não especializada (jornais, revistas e canais de TV aberta ou à cabo) e a comunidade de montanhismo, pesadamente comece a valorizar o mérito esportivo. Valorizar, por exemplo, o fato de um montanhista chegar ao cume do Monte Everest sem oxigênio e sem sherpas, é um primeiro passo.

Não se pode mais confundir um montanhista de carreira, que passa o ano todo realizando ascensões relevantes para o esporte, com turistas ocasionais cuja a única intenção é subir o Monte Everest e nenhuma outra montanha no mundo. Passar a não mais fazer vista grossa a campanhas de marketing de mau gosto, explicitando atitudes desesperadas de chamar atenção, como por exemplo saltar de parapente do cume da montanha, é um segundo passo.

A cada passo, especialmente nestas pequenas negligências que jornalistas leigos e marqueteiros se aproveitaram para criar personalidades de mérito questionável, é que poderemos ter um turismo no Nepal que tenha respeito pelo montanhismo e pelas regras éticas que nele existe. Caso contrário, continuarão a acontecer mortes causadas pela vontade desesperada de aparecer e ser reconhecido por algo que sequer possui mérito.

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