Crítica do filme “Mulheres são Montanhas”

Não resta nenhuma dúvida que na produção de filmes que documentam a cultura de montanha, existe uma demanda reprimida de pessoas com talento esperando uma oportunidade de mostrá-lo. Muitos apreciadores do gênero, inclusive, se perguntam o que irá acontecer quando pessoas com um espírito mais artístico, e menos comercial, começarem a dirigir obras que abordem de maneira mais madura e com mais qualidade artística os esportes.

Na década de 1990 os clipes de música, que eram vistos como peças publicitárias de segunda categoria. Mas quando alguns diretores considerados amadores realizaram trabalhos de qualidade, que até hoje são lembrados pelo público, houve o “nascimento” de vários produtores de qualidade. Era uma demanda reprimida que apenas aguardava uma oportunidade. Com isso todos ganharam: público, gênero e músicos.

Este mesmo fenômeno pode estar finalmente chegando aos documentários sobre esportes de montanha: pessoas com visão artística documentando o esporte, lugares e pessoas, com o desejo de fazer algo diferente e sair do lugar-comum. No Brasil, como todos podem observar, muitos empolgados resolveram simplesmente copiar produções de gosto duvidoso e de qualidade discutível. Na cabeça destes, bastava comprar uma câmera, ou usar o próprio celular, para acreditar que era o Steven Spielberg dos filmes de esportes de natureza.

O que foi produzido a partir daí eram uma cópia da cópia, colocando a qualidade em segundo plano. Alguns produtores acreditavam que apenas qualidade de imagem, mas inexistência de roteiro, seriam o suficiente para poder criar algo de qualidade. Obviamente que o que sucedeu depois foi uma avalanche de produções abaixo da crítica.

Mas este tipo de falta de criatividade e qualidade, parece estar se dissipando com o tempo de amadurecimento do gênero. Um bom exemplo desta teoria é o filme “Mulheres são Montanhas”, da atriz e produtora Renata Calmon. Calmon é das poucas produtoras mulheres do Brasil em filmes de montanha e estreia como diretora neste curta. A produção documenta a vida de duas escaladoras na cidade de São Bento do Sapucaí-SP, um dos grandes centros de escalada no Brasil. No filme, as protagonistas são Mônica Filipini e Danielle Pinto, parceiras de escalada e conhecidas na pequena cidade, além da própria comunidade de escalada.

O roteiro procura apresentar e explicar, os motivos que levaram duas pessoas a abdicarem de vários confortos de cidades grandes e ir viver em um lugar com pouco mais de oito mil habitantes. Além disso, ambas as personagens contam os problemas que enfrentaram, as dificuldades que a vida colocou em sua frente e, claro, fazem uma declaração de amor e dependência com a escalada e a vida na montanha.

O filme, entretanto, não é mais um descritivo de “vida simples” ou “desapego” e é exatamente por isso que já desperta a empatia do expectador. Um dos grandes acertos de Calmon foi de abster-se de focar no grau de dificuldade das vias, ou em clichês de superação da mulher, entre outras abordagens piegas. A diretora se preocupou em retratar ambas as personagens como pessoas de muita força interior, mas sobretudo por serem “gente como a gente”, que quando possui um problema o resolve da melhor maneira possível. Como todas as declarações existentes no filme aparentam ser originais, ou seja não foram roteirizadas ou as personagens não estão fingindo ser o que não são, não há nenhum diálogo que não encaixe no enredo proposto do filme ou que soe como falso.

Além disso, a abordagem mais artística de como é viver em uma cidade de interior, e dedicar-se a um esporte que é visto com muito preconceito pela mídia, foi usada na medida certa. “Mulheres são Montanhas” é um filme que fala muito mais do que apenas duas mulheres, mas também de duas pessoas de verdade. Neste aspecto que o filme tende a ser cativante ao expectador. Pessoas que viveram, fizeram escolhas, encontraram dificuldades e que, felizmente, não ficaram sentadas chorando as injustiças da vida esperando um salvador.

Outro acerto da produção que merece ser destacado, é a qualidade da fotografia, que não possui muita saturação de cores ou uso de filtros. Um recurso muito utilizado por produtores de documentários de montanha, sobretudo em produções brasileiras. A todo momento a composição fotográfica é bem discreta e elegante. A proposta de fazer com que haja uma relação entre duas pessoas, que não se intimidam com os problemas que a vida constrói, utilizando uma metáfora das montanhas, combinou bastante com a narrativa proposta desde o início da produção.

Quem acreditar que a produção é para arrancar lágrimas, ou mesmo fazer panfletagem a respeito de qualquer ideologia, pode acabar desapontado. Há muita suavidade, discrição e, principalmente, elegância em abordar esportes e mulheres que poucas produções conseguem.

“Mulheres são montanhas” talvez possua um pequeno defeito, que é o de ter um nível de qualidade muito alto para quem não possui muita cultura. Pois é um filme de montanha, mas que opta por não fazer os “rock porn”, que escaladores adoram, e também não mostra mulheres loirinhas e sexy, como as produções de surf faz recorrentemente. Assim, ao contrário de muitas produções brasileiras, não parece ter sido feita para passar na televisão ou internet, mas sim em telas de cinema, porque o filme de Renata Calmon é uma pérola verdadeira no meio de tantas bijuterias.

Pela qualidade apresentada em tantos quesitos técnicos, além de apresentar uma história tocante e sensível, “Mulheres são Montanhas” deixa a esperança de que esteja acontecendo o nascimento de uma nova geração de pessoas que queiram documentar pessoas comuns, mas igualmente especiais. Sem heroísmo, sem estrelismo e com a qualidade que o público merece.

Nota Revista Blog de Escalada:

Mulheres são Montanhas faz parte da programação do 1º Freeman Film Festival Brasil dia 27/09/2018

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