Deixando o medo de lado – As mulheres que conquistam seus objetivos

Nota do editor: Na semana da mulher, a Revista Blog de Escalada pediu que praticantes destacadas de diferentes esportes escrevessem sobre o universo outdoor, tendo toda a liberdade para expor seus sentimentos. Desta maneira a Revista Blog de Escalada, mais uma vez, demonstra ser o veículo brasileiro que mais respeita a diversidade.

O texto é de inteira responsabilidade e autoria das convidadas. Sem qualquer tipo de censura prévia.

A primeira convidada na semana da mulher é a montanhista brasiliense Jussiara Ferreira, conhecida como Ju Trekker.


Por Ju Trekker

Como assim você vai fazer trilha sozinha? É perigoso demais; você é apenas uma menina. Leve um homem com você. Ele saberá como agir

Oi?! Quer dizer que eu não tenho um cérebro, é isso? Ser mulher é condição incapacitante? Veremos, jovem. ;)

Tour du Mont Blanc | Foto: Acervo Pessoal Ju Trekker

E foi assim que comecei meus preparativos para o Tour du Mont Blanc, um trekking pelos Alpes da Suíça, Itália e França em Agosto de 2017. Foram mais de 170 km andando sozinha por trechos variados de floresta, picos com neve, estrada e vilarejos. Muitos desses lugares desertos: não via uma alma por quilômetros. Isso era tão desafiador! Eu estava ali realizando um sonho de dois anos e nem acreditava. E que bom que não dei ouvidos aos estímulos negativos que recebi ao longo dessa minha pequena, porém intensa, jornada no mundo outdoor.

Contarei um pouco mais nos relatos abaixo:

Certo dia falei para mim mesma que queria fazer trilha no mato como atividade principal. Essa vontade surgiu do nada mesmo. Já tinha buscado outros esportes e nada de me apaixonar. Busquei informações num grupo daqui de Brasília (Trekking Brasília) que se tornou minha principal base de crescimento, haja vista o tanto de gente amante do esporte que ali está.

Comecei a fazer trilha com essa galera super acolhedora e comecei a amadurecer esportivamente. Depois de fazer as trilhas mais leves da região e arredores, como a Chapada dos Veadeiros, por um ano, comecei a buscar destinos mais desafiadores. Já estava ficando viciada. Resolvei fazer a primeira travessia da minha vida – a Serra da Canastra – em Janeiro de 2015. Eu nunca tinha feito nada parecido e seria minha prova de fogo. Juntei com uma galera e começamos. Por falta de conhecimento fui com uma mochila maior do que devia e sofri um bocado. Alguns colegas me ajudaram com palavras de ânimo e consegui terminar. Fiz o último dia de travessia praticamente sozinha e cheguei até a Cachoeira Casca D’Anta, minha recompensa. Fiquei tão feliz de ter chegado ali que nem senti as dores acumuladas. Claro que no percurso morri de medo das vacas, búfalos e gados que nos circundavam, mas tirei de letra.

Só pensava no mantra: Vai dar tudo certo. Você já está chegando.

E assim comecei a fazer algumas travessias clássicas pelo Brasil. Uma semana depois da Canastra fiz a Travessia da Juatinga no Rio de Janeiro. Essa testou a minha resiliência em relação às pessoas. Eu tinha o sonho de subir o Monte Roraima e pedi para um rapaz (que já havia feito a viagem mediante agência) me avaliar na travessia e ver se eu conseguiria fazer o Monte com toda a minha carga, de forma independente. Fiz a travessia tranquilamente, curti horrores e no final fui subir uma pedra com cuidado para não cair, óbvio.

Ao final da investida eis que surge o jovem e fala: Você não vai conseguir. Você vai arruinar a viagem dos seus amigos levando tudo. Contrate um carregador para ir mais tranquila.

Sentada estava na praia, sentada fiquei… Perplexa. Comecei a chorar no mesmo momento de frustração. Mas ele não sabia que estava fazendo um bem danado a mim. Transformei toda aquela insegurança e medo em desafio a ser superado. Treinei mais! Peguei a mochila e saí andando pelos parques de Brasília com a mochila nas costas, só para treinar. O povo me olhava com espanto, me achando uma doida, claro. Eu estava nem aí.

Travessia da Serra Fina | Foto: William Peres

Conversei com um dos amigos que iria comigo ao Monte Roraima e ele disse:

Se você não conseguir levar seus 17 kg, eu levo o seu e o meu.

Isso me deu um gás do caramba! Que pessoa maravilhosa que encontrei para fazer essa trilha tão linda – e importante – comigo.

É ruim que você vai levar meu peso, jovem! – Pensei.

Monte Roraima seria minha terceira trilha longa da vida e eu estava fazendo ele no modo hard, sem suporte de carregadores. Quando cheguei ao topo do Monte eu nem acreditava que tinha conseguido. Eu era a única mulher do grupo e estava ali na raça. A sensação de ter conseguido ultrapassa qualquer sentimento que eu possa ter naquele momento, seja ele dor, fome ou frio. Meus 50 kg na época e a pouca experiência não me privaram de realizar um sonho. Ser mulher não tem nada a ver com isso. A força interior independe de gênero. E eu provei para mim mesma que era forte o suficiente. Depois disso o bicho do trekking picou de vez e resolvi mudar totalmente meu estilo de vida. Só sabia pensar em subir os picos mais altos do Brasil e em fazer outras travessias mais desafiadoras no Brasil. Nesse mesmo ano fiz os 7 picos mais altos e logo depois surgiu o apelido Ju Trekker. Era um caminho sem volta.

O mais bacana é que cada vez mais mulheres perguntavam sobre como realizar a atividade e a vontade de compartilhar isso me inundou. Criei um blog e a página do Facebook para compartilhar minhas aventuras e inspirar mais pessoas. O meu maior público é o feminino. Surpreendente!

Lago Azul – Travessia Salkantay | Foto: Adenauer Luzete

Com o passar do tempo ganhei mais confiança, experiência e amor pelo que faço e comecei a ajudar algumas pessoas a irem para o mato. Criei alguns eventos na comunidade local de forma gratuita para desbravarmos o cerrado. Tive alguns problemas com pessoas que não acreditavam na minha capacidade só por que eu era mulher, acredita? Elas precisavam de uma imagem masculina para transmitir seriedade e proteção.

Confesso que foi um tanto difícil romper com isso e conquistar meu espaço, mas foi aos poucos. Se eu fosse homem com certeza isso nem teria acontecido. É um tanto injusto. Infelizmente é a realidade quando você está envolvido no ramo da aventura em alguns momentos. Todos os seus passos estão sendo observados principalmente quando você é mulher. Não sei de onde a galera tira que mulheres são seres frágeis; que não vão conseguir realizar algum trabalho e que vão correndo atrás de um homem ao final.

A gente é capaz para caramba!

Trilhas Pelo Mundo

Em 2017 criei um projeto que se chama Trilhas Pelo Mundo, inspirado pelo livro “As mais belas trilhas do mundo” do sueco Claes Grundsten. São mais de 50 trilhas espalhadas por 30 países. Eu viajava naquelas páginas maravilhosas e só queria estar naqueles lugares.

Chamei a galera próxima para ir comigo em alguma trilha no exterior e o povo dava para trás. Depois do Monte Roraima ninguém muito próximo animou nada efetivamente. Resolvi ir sozinha mesmo.

Como assim você vai rodar o mundo sozinha, guria? Tá louca? – Diziam os incrédulos [pausa dramática rs]

Quer dizer que esse fotógrafo trekkeiro aí pode e eu não, é isso? Ah vá! E aí começou o meu processo de fortalecimento pessoal chamado”empoderamento” feminino, jovens. A palavra assusta e soa pedante, eu sei. Mas é nada mais que um autoconhecimento mesmo a despeito de toda influência negativa. A gente que é mulher sofre preconceito desde menininha. Somos taxadas de frágeis e delicadas. Colocam roupa rosa na gente e falam que devemos usar vestido. Futebol?

Travessia Salkantay | Foto: Adenauer Luzete

Nem pensar; é coisa de homem. Fazer trilha de longa distância sozinha? É pedir para morrer estuprada. Subir montanha? Nossa, sua estrutura física não permite. Você é “fraca demais”. Chega a dar raiva.

Dá vontade de falar: Vai cuidar da sua vida, jovem!

Com essa vontade de romper preconceito, fui com sangue nozói bolar o projeto. E num é que deu certo?

  • Em Julho fui fazer a Trilha Salkantay lá no Peru com um monte de gente desconhecida por meio de uma agência brasileira.
  • Em Agosto fiz o Tour du Mont Blanc sozinha.
  • Nesse ano voltarei para o Monte Roraima matar as saudades e também farei a subida do Kilimanjaro em Setembro
  • Circuito O de Torres Del Paine em Novembro.

Se ninguém animar ir junto, eu vou sozinha mesmo. Foi assim que rolou com o Mont Blanc. Todo planejamento sou eu que faço. Corro atrás de informações, guias e operadoras da região. Ajudo a fomentar o turismo e tento levar mais pessoas interessadas em trekking para vivenciar essa experiência incrível também. É um trabalho muito gostoso e recomendo muitíssimo para dar um up na vida.

Mais informações sobre o Projeto Trilhas Pelo Mundo e sobre como participar você poderá encontrar na minha página pessoal: www.facebook.com/jutrekker.

O mais legal do mundo outdoor é que tem gente de todo o jeito e aos poucos você vai colando naqueles que têm a mesma vibe que você. No início tive muito estímulo de algumas pessoas que me cercavam. A minoria chata sempre vai existir por diversos motivos: tem gente que vive de competição e vaidade, então vai te colocar para baixo para se sentir melhor. É assim na vida cotidiana também, certo? Não estamos imunes. Você sendo mulher então é batata.

Quantas vezes já ouvi que não conseguiria. Hoje eu já não escuto mais isso. Ninguém mais tem coragem de falar pois sabe que não surtirá efeito.

Respeito

O respeito das pessoas sempre existirá se você também as respeitar. Isso independe de gênero. Nunca fui desrespeitada fisicamente nas atividades das quais participei e nem sei de relatos. A galera em sua maioria esmagadora é super para cima e foca de fato na natureza e no desafio pessoal. Os grupos dos quais participo são os melhores e as pessoas se ajudam bastante. Então a dica é: cole onde rende. Vá para lugares com pessoas que possuem uma boa referência. Assim você sempre terá experiências prazerosas.

Hoje o mundo está mudando e as mulheres estão percebendo que não precisam de batom e salto alto para serem femininas. Uma mulher suja de terra e bota na trilha é tão sexy quanto.

Nada atrai mais que a sensação de liberdade e felicidade que transmitimos. A independência que estamos conquistando em todas as áreas da sociedade é latente e ninguém pode parar isso. Então minha dica para você, mulher, que está lendo meu artigo é: deixe o medo de lado! Vá conquistar seus objetivos.

Inspirações

Fernanda Maciel no Aconcágua | Foto: Gabriel Tarso

Um bom filme para inspirar é o”Wild” (Livre) e na vida real encontramos várias outras inspirações também. Vou citar alguns nomes para vocês:

  • Karina Oliani: Ela é uma diva inspiradora. Já subiu o Everest duas vezes; faz vários esportes de aventura e não deixa de ser linda, sexy e poderosa. #mulherãodaporra mesmo. Quando a conheci por meio da internet, me senti representada.
  • Carol Emboava: A jovem tem o projeto Giramérica, o qual percorreu vários países da América do Sul de bike, sozinha. Já pensou no tanto de coisa que essa moça viveu, sofreu e venceu? É uma inspiração só.
  • Fernanda Maciel: Essa aqui é um fenômeno! Ultra maratonista que subiu correndo o Aconcágua e mais recentemente o Kilimanjaro, montanha esta que vou subir em 6 dias andando. Essa jovem é incrível! Musa inspiradora.
  • Alessandra Cecília: A goiana mais poderosa que conheço no mundo do trekking. Ela pega a moto e sai rasgando o Planalto Central em busca de cachoeiras. Faz trilha sozinha, acampa sozinha no meio do mato, viaja por quilômetros em busca de trilhas pouco conhecidas e sempre ajuda quem precisa. Tem vários tracklogs seus no Wikiloc #ficaadica. A conheci buscando tracks de outras trilhas. Eita mundão lindo!

Não há dúvida que podemos realizar o que queremos. O bom do meio outdoor é que podemos nos despir dessas vaidades que permeiam o universo feminino. Curtir trilha e montanha nos ajuda muito a evoluir e ser quem somos. Nunca fui fã de maquiagem, brinco, colar, batom e roupa rosa. Sempre curti rock, futebol e jogos de tabuleiro, nem por isso eu era um “homenzinho”. Agora é a vez das trilhas e só tenho blusa larga com proteção UV, calça de trilha e bota. E nunca me senti tão bonita. Vai entender, hein society.

Como diz minha amiga Carla Nogueira do Expedição Andando Por Ai: A gente pode ser uma deusa usando bota e boné. De fato é assim mesmo.

Na brincadeira lancei a hashtag #comoumadeusa onde faço ensaios no mato. O meio natural nos faz sentir-se bem, lindas e maravilhosas. Depois experimenta. Dê esse presente a si mesma. :) Estou sempre à disposição de vocês que querem iniciar no mundo outdoor, especialmente no mundo das trilhas que é o que mais amo no mundo. :)

O canal está aberto para quaisquer dúvidas e dicas que queiram. É só me mandar mensagem na página: www.facebook.com/jutrekker

A semana é nossa e as trilhas também. Por mais mulheres no mato! :)

There is one comment

  1. Jayme Vasconcellos

    Exemplo de pessoa essa Ju Trekker. Apesar de morar em Brasília desde 2005 e também trilhar por aí, só a conheci em um evento outdoor na região serrana do Rio de Janeiro no ano passado. Super gente boa, vibe sempre alto astral, menina guerreira, que topa os maiores desafios sem ‘dar pra trás’. Esse relato é um resumo do ser humano fantástico que ela é. E não estou ‘puxando o saco’ só porque ela é brother, é porque ela é gente fina mesmo. Valeu, Ju, continue sendo exemplo pra muita gente – inclusive muitos marmanjos que não tem coragem de dizer que te admiram – eu tenho: te admiro um monte! Obg pelas parcerias, pelas dicas, pelos ensinamentos, pela confiança… Boas trilhas, Ju Trekker, sempre!

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