Em qualquer escola de cinema, ou mesmo em uma mídia especializada no assunto, existe uma lista de filmes que são considerados os melhores da história. Esta lista, claro, varia de pessoa a pessoa, mas sempre existem alguns filmes que são frequentemente lembrados. As produções “Psicose” (1960), “Cidadão Kane” (1941), “O Poderoso Chefão” (1972), “Metrópolis” (1927) e “Taxi Driver” (1976) são alguns exemplos de produções sempre lembradas. Não é muito difícil também, imaginar como foi a reação da plateia ao final da sessão de cada uma destes filmes. Claramente era uma sensação de êxtase e desorientação misturadas.
Mesmo muito tempo depois de suas estreias, quem as assiste hoje se inspira. Em contrapartida há quem intelectualmente não está preparado para a expansão da mente e do intelecto, ficando atordoado com o que acabou de presenciar e acaba por maldizer o filme. Esta mesma dicotomia de reações deve acontecer com quem assistir ao filme “Free Solo”, uma produção sobre escalada, mas que foi dirigida por uma pessoa que entende do assunto, a diretora Elizabeth Chai Vasarhelyi, mas não é necessariamente uma escaladora fanática. Um detalhe que fez muita diferença no produto final.
O filme foi recebido com muito alarde pela comunidade de montanha dos EUA, com direito a première em cinema e a ficar em cartaz em circuito alternativo por tempo considerável. Especialmente para um filme de escalada. Mas comparar “Free Solo” com as produções que fizeram história no cinema é um exagero e uma comparação injusta? Sim e não. A produção de Vasarhelyi é realmente muito acima da média dos filmes de escalada realizados nos últimos 10 anos, mas não é necessariamente o melhor de todos os tempos (até porque o mundo não acaba amanhã).
O documentário “Free Solo” conta a vida, com riqueza de detalhes, do escalador norte-americano Alex Honnold, o qual atualmente é o grande astro do esporte em seu país. Por ser o atual ícone da escalada dos EUA, o próprio escalador vive uma inevitável superexposição de sua imagem e uma incômoda pasteurização de sua vida. Sabendo deste tipo de natural desgaste de imagem de Honnold, a diretora habilmente focou suas lentes em aspectos nunca antes mostrados do escalador. Detalhes como família, infância, namorada, amizade e medo. Esta escolha é, sem dúvida, o ponto forte de “Free Solo”.
Tendo como objetivo a humanização de um ídolo, a produção assume um ar mais sério e introspectivo. Estes aspectos não são comuns em filmes que documentam o montanhismo e é exatamente por isso, que ele se destaca dentre todas as produções do gênero. O que “Free Solo” faz de melhor é colocar uma lupa em cima de Alex Honnold e nas pessoas que o orbita. Nada escapa das lentes e do roteiro da diretora, nem mesmo a namorada, pai, mãe e, inclusive, a própria equipe de produção do filme. Todos são destacados em como são impactados, pelo modo de ser de Alex Honnold.
Não há dúvida de que o público que deseja ver somente Alex realizar o que faz de melhor, que é escalar em solo, sentirá incômodo pela demora em mostrar a escalada. Pois antes de mostrar uma escalada épica, a qual entrou para a história do esporte mundial, Elizabeth Chai Vasarhelyi faz questão de humanizar Alex Honnold e, inclusive, questionar toda a idolatria a uma pessoa que visivelmente possui problemas de relacionamento com outros indivíduos. “Free Solo” é seguramente um filme sobre escalada, mas, para desespero de quem não está acostumado a refletir em produções do gênero, não é um filme feito somente para quem pratica o esporte.
A diretora também consegue realizar algo que outras produções de escalada parecem pecar, que é mostrar que quem escala em Yosemite vivem no mesmo “universo da escalada”. Portanto, da mesma maneira que a Marvel fez nos quadrinhos, e posteriormente no cinema, colocando cada personagem no mesmo universo e sempre cruzando o caminho um do outro, Vasarhelyi faz o mesmo com Tommy Caldwell, que possui um papel relevante dentro de “Free Solo”, e Alex Honnold.
Entretanto, nem tudo é perfeito na produção de Elizabeth Chai Vasarhelyi, que parece ter um certo problema de ritmo por volta da metade. Procurando mostrar o problema que Honnold possui em relacionar com as pessoas, a diretora acaba esticando muito o drama e a preparação para a escalada da via “Freerider”. Neste ponto a produção se perde e acaba se repetindo, utilizando o recurso de mostrar imagens do passado e glamorizando a fama e glória do personagem o qual estava sendo desconstruindo desde o início do filme.
Mas o produto final de “Free Solo”, que é a escalada em solo do El Capitan, em uma via que possui aproximadamente 900 metros de altura, é, sem dúvida, épica e uma catarse digna dos melhores filmes de ação. Mas, para espanto de quem não conhece a especialidade de Honnold, tudo o que é captado pelas imagens é real e de fato aconteceu. Com imagens icônicas, com bela direção de fotografia, é brindada também pela aflição da equipe de filmagem a cada metro escalado pelo protagonista.
“Free Solo” não é um filme totalmente perfeito, mas é uma produção de qualidade incontestável que apresenta uma maneira mais madura de realizar filmes de escalada. Assim como “Psicose”, “Cidadão Kane”, “O Poderoso Chefão”, “Metrópolis” e “Taxi Driver” marcaram época, definindo um “antes” e um “depois” quando foram exibidos, o filme de Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin também fará para os filmes de montanhismo.
Incontestavelmente a produção marca a maturidade de um gênero e estabelece um padrão de qualidade alto. Filmes de montanhismo que outrora eram pesadamente apoiados em imagens e gritos guturais de escaladores, ficarão no passado da mesma maneira que os filmes de cowboy ficaram. Além de tornar obsoleto a maneira amadora de fazer filmes de escalada, “Free Solo” também ensina que o mais importante é ter uma história com personagens humanos, com defeitos e qualidades como toda pessoa.
Nota Revista Blog de Escalada:
“Free Solo” foi exibido no Kendal Film Festival

Formado em Engenharia Civil e Ciências da Computação, começou a escalar em 2001 e escalou no Brasil, Áustria, EUA, Espanha, Argentina e Chile. Já viajou de mochilão pelo Brasil, EUA, Áustria, República Tcheca, República Eslovaca, Hungria, Eslovênia, Itália, Argentina, Chile, Espanha, Uruguai, Paraguai, Holanda, Alemanha, México e Canadá. Realizou o Caminho de Santiago, percorrendo seus 777 km em 28 dias. Em 2018 foi o único latino-americano a cobrir a estreia da escalada nos Jogos Olímpicos da Juventude e tornou-se o primeiro cronista esportivo sobre escalada do Jornal esportivo Lance! e Rádio Poliesportiva.