O que é (e o não é) a “ética local” na escalada e montanhismo

Muitas pessoas se deparam a todo tempo com a definição de “ética local” na escalada e no montanhismo. Os praticantes, quase em sua totalidade, repetem a todo momento o termo, mas boa parte destes “repetidores” não sabem o que realmente significa.

Em torno do tema há discussões filosóficas que cada vez mais afastam as pessoas do entendimento da principal ideia da prática da ética, e respeito, no montanhismo e escalada. Muito disso por ser o termo “ética local” muito vago e cheio de lacunas.

Entender somente o que significa ética, utilizando o seu sentido literal parece muito pouco prático. Especialmente para quem possui o hábito de obter as informações sempre mastigadas. Afinal sempre há um teórico, com ares de filósofo, que profere o termo “ética local”.

Mas será que este termo realmente reflete a linha de pensamento para guiar um escalador ou montanhista no seu comportamento? Pois este artigo tem exatamente este objetivo: explicar o que é, e o que não é, “ética local” na escalada.

Definições de ética

Por definição, a ética, de uma maneira geral é: “Parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano”. Sendo assim, a ética reflete especialmente a essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes de qualquer realidade social.

Lembrando que, sem entrar em detalhes filosóficos propriamente ditos, a ética, como conceito, diferencia-se da moral. A moral está fundamentada na obediência a costumes e hábitos recebidos. A ética fundamenta ações morais exclusivamente pela razão.

Portanto, questões como direito autoral na escalada, é muito mais uma questão de moral do escalador e montanhista, do que propriamente da ética. Embora, claro, estão interligadas e se confundam bastante, é preciso estabelecer a diferença entre ética e moral. Isso porque a moral orienta o comportamento do homem diante das normas instituídas pela sociedade, ou por determinado grupo social (no caso a comunidade de escalada e montanhismo).

A moral diferencia-se da ética no sentido de que esta tende a julgar o comportamento moral de cada indivíduo no seu meio. No entanto, ambas buscam o bem-estar social.

Ética, portanto, é um valor social, o qual identifica, qualifica e guia princípios universais e relações humanas. Dentro do montanhismo, a grosso modo, a “ética local” é a maneira com a qual um escalador respeita a maneira que é praticada a atividade no local que visita.

Seja este local a cidade vizinha ou mesmo um país distante. Portanto, a tão alardeada “ética local” da escalada, nada mais é do que respeitar o modus vivendi dos praticantes locais. Concordando, ou não, com o que está sendo praticado ali, pois o respeito às pessoas vem acima de tudo.

Escaladores colonizadores

O conceito de “ética local” na escalada e montanhismo, passa muito pela situação de quando houve o encontro de duas civilizações diferentes. No passado, aqui na América (Norte, Central ou Sul) houve o contato de europeus com os nativos.

Não precisa ser um especialista em história, para saber que muitos costumes europeus foram impostos, maioria das vezes à força, aos nativos da América. Nesta batalha cultural de imposição de ideias e conceitos, várias etnias foram dizimadas e eliminadas da face da terra.

Mas o que o montanhismo e escalada tem a ver com isso? Na verdade, muito!

Porque no momento que algum escalador ou montanhista visitar um local, que possui o esporte ainda em desenvolvimento, e impor seus conceitos e ideias, estará praticando exatamente o que os colonizadores europeus fizeram no passado na África, Ásia e América.

Exemplos clássicos de desrespeito são vistos constantemente: escaladores que retiram chapeletas próximas às fendas em locais os quais visitam, roubam chapeletas de vias que “não concordam”, reclamam do uso de determinado tipo de proteção, etc.

Sendo mais específico nos exemplos, a via “Nem Fudendo”, em Itajubá-MG, é constantemente alvo deste tipo de “ataque” dos puritanos e protetores dos “bons costumes da escalada” (da mesma maneira que os colonizadores fizeram nos séculos passados).

O desrespeito por ignorância e falta de caráter não é exclusivo a nenhuma nacionalidade. Prova disso é que, infelizmente, exemplos flagrantes não faltam. Os mais famosos foram os escaladores Hayden Kennedy e Jason Kruk, que fizeram o mesmo no Cerro Torre, impondo a sua linha de pensamento particular acima da coletividade local.

Mesmo comportamento, que aponta falta imperdoável de caráter, tiveram os escaladores italianos Enzo Oddo e Gabriele Moroni que vieram ao Brasil e retiraram proteções de um off width, porque acreditavam que “estava errado”.

Exemplos deste tipo de autoritarismo, aparecem toda semana. Todos da mesma maneira e com a mesma justificativa. São vontades e crenças impostas de maneira covarde sobre outras pessoas.

Quando um escalador ou montanhista não respeita as práticas e conceitos do esporte no local que visita, ele simplesmente, sem nenhum exagero, estupra a cultua da comunidade local. Uma imagem horrenda, mas válida para mostrar o tamanho da estupidez praticada.

Esta imposição do pensamento pela força, praticado por colonizadores, já dizimou civilizações como os Incas da América do Sul, Astecas na América Central, Charruá no Uruguai e Aborígenes da Tasmânia. A existência de “coronelismo” em alguns locais de escalada, onde algumas pessoas se acham os profetas e representantes dos proprietários, segue a mesma linha pensamento: imposição de ideias.

É fundamental lembrar que a “ética na escalada e montanhismo” não autoriza ninguém a desrespeitar qualquer tipo de cultura, comunidade ou hábito. Qualquer tipo de imposição de pensamento, nada tem a ver com a ética, mas com falta de caráter e ausência de civilidade.

Primeira diretriz

Com relação à tentativa de conscientização de alguma “ética local” que esteja equivocada, a abordagem que se deve tentar é a da assimilação cultural. Este é um processo lento, gradual e que depende muito da diplomacia.

Por meio da conversa, conscientização e orientação, grupos de pessoas vão adquirindo gradativamente características culturais de outros grupos sociais. Desta maneira, caso algum conceito de montanhismo estiver sendo aplicado de maneira errada, por meio de conversa e conscientização, a prática deve ser reavaliada pelos praticantes locais.

Portanto, cada escalador e montanhista deve estar disposto a dialogar e entender as realidades locais. Daí está a importância de um praticante de montanhismo e escalada estar constantemente viajando. O contato com outros tipos de realidades, fará com que os próprios conceitos que possui sobre montanhismo e escalada evolua com o tempo e ele próprio amadureça como indivíduo e cidadão.

Uma boa maneira para um escalador e montanhista de como se comportar a visitar um local, é procurar sempre seguir a primeira diretriz de Jornada nas Estrelas. Na diretriz ficava estabelecido que todas as naves e membros da frota estelar, estavam proibidos interferir com o desenvolvimento normal de uma cultura ou sociedade.

Isso porque cada espécie consciente, possui o direito de viver de acordo com a evolução cultural normal. Analogamente, cada comunidade de escalada (esteja ela vivendo de maneira certa ou errada) possui o direito de viver sem a interferência de escaladores visitantes.

Sendo assim, a “ética na escalada” é na verdade uma maneira mais filosófica (e muito resumida) da “primeira diretriz” desta obra clássica de ficção científica. Nesta que seria a “diretriz da escalada e montanhismo” fica estabelecido, de maneira direta e inconteste, que o respeito mútuo a outras realidades deve ser o maior valor de um escalador ou montanhista.

Aquele que se achar acima disso, demonstra de maneira explícita que não está preparado para ao convívio em sociedade nem para a prática do esporte.

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