Escalar o Mont Blanc em solo: O relato da primeira mulher brasileira a realizar o feito

Meu nome é Alessandra Dias Mendes. No dia 20 de julho de 2018 me tornei a primeira mulher a escalar o Mont Blanc (4.810 m) em solo. Esse fato representa um marco na escalada brasileira e uma conquista fundamental para escaladoras brasileiras. Eu gostaria muito de relatar isso, em nome dessa história, que é parte da história de várias mulheres brasileiras incríveis que tem feito história na escalada.

Por um tempo a sensação de plenitude de ter estado ali me dominou, a paz e o silêncio daquela montanha permanecem em mim. A correria da retomada da vida ao retornar ao Brasil me fizeram demorar em relatar essa experiência, que foi recheada de acontecimentos que hoje mais do que nunca vejo como fortuitos.

Como comecei na escalada

La Rebuffata (via na Aiguille du Midi)

Me formei em Educação Física e sempre fui aficionada por esportes. Minha história na escalada começou em 2011 quando o namorado da minha prima na época, me apresentou ao Rodrigo Branco Lopes, o “Bera”, em Brasília, na Ibiti (tradicional academia de escalada de Brasília). Foi lá onde encontrei a escalada e sempre serei muito grata ao Bera por isso. Um esporte do qual já tinha ouvido falar, pois uns amigos na faculdade praticavam, mas que jamais imaginei que me conquistaria em definitivo.

Desde então pratiquei tudo o que pude, desde boulder a vias, paredes e até psicoblocs em Mallorca, participei de competições no Brasil e no Reino Unido, tendo conquistado alguns títulos. Mas o que realmente me prendeu nesse esporte foi o contato com a natureza, o autoconhecimento e o desenvolvimento pessoal que este esporte te proporciona, além do vínculo que se forma entre pessoas que escalam juntas. Uma verdadeira comunhão.

O planejamento para Chamonix em 2018

congresso da IRCRA

Em 2015, consegui uma bolsa da Capes para fazer parte do meu doutorado na escola de esportes da Loughborough University, e nos feriados e férias sempre buscava ir escalar em algum lugar diferente. Foi assim que em maio de 2015 fui a primeira vez a Chamonix. Fiquei deslumbrada com a vista do Mont Blanc já da estrada que ia de Genebra até lá. Infelizmente à época era um interstício entre temporada de ski e escalada, e não pude fazer muita coisa. Mas ter estado lá foi o suficiente para planejar o retorno.

Em 2016 quando retornei ao Brasil soube que haveria um congresso de uma organização internacional de pesquisa em escalada neste berço da escalada mundial em 2018 e me planejei para estar presente. Realizei uma pesquisa entre escaladores brasileiros e ingleses com ajuda de amigos na coleta de dados. A pesquisa foi enviada e aprovada. E então passei a me planejar para estar em Chamonix em julho de 2018.

Aluguei um apartamento pelo Airbnb para 4 pessoas e pensava em conseguir companhia para essa empreitada até lá. Seriam quase 20 dias em Chamonix para participar do congresso e escalar, já que tinha férias. Infelizmente não consegui companhia pois muitos amigos tinham outros planos ou não podiam ir por alguma razão, então parti sozinha.

Perda do Mochilão na ida

em Barberine (escalando parede na fronteira com a Suiça)

Peguei um vôo de Brasília à Turim que tinha infelizmente duas escalas. Ao chegar em Turim na madrugada de 7 de julho, mas apenas uma de minhas malas chegou. A que tinha o skate e o equipamento de proteção individual (EPI) para escalada chegou direitinho. A outra, com roupas técnicas que precisava e tudo o mais, simplesmente não apareceu. O voo chegou com atraso de uma hora, o aeroporto estava fechando e simplesmente me colocaram literalmente para fora, me dando apenas um papel para ligar, ou enviar email, para empresa responsável por extravio da bagagem (Sagat), e disseram que eles enviariam minha mala para Chamonix.

Não me restava alternativa. Acreditei que enviariam a mala e fui para o lugar que aluguei pelo AirBnb tentar descansar. Não ia deixar esse acontecimento estragar a viagem, e por mais que estivesse preocupada, não me restava alternativa a não ser aguardar. O que havia sido planejado se foi e depois teria de ver posteriormente como a empresa me ressarciria por isso*. Acordei cedo e dei uma volta em Turim antes de partir rumo a Chamonix de ônibus.

Em Courmayeur antes de trocar de ônibus tive cerca de uma hora para andar pela cidade e pude presenciar um festival de música celta que fez relembrar meu tempo no Reino Unido, realmente lindo! Segui viagem e cheguei em Chamonix no final da tarde de sábado (07/07).

Encontros fortuitos com pessoas maravilhosas e parceria para escaladas

Udo Neuman na ENSA (École Nationale de Ski et d’Alpinisme)

No domingo (08/07) fui dar uma volta pela cidade, e sem expectativa de receber minha mala comprei 2 camisetas, 1 calça e 1 short para sobreviver até o que pudesse acontecer.

Na segunda-feira (09/10) tive a oportunidade de encontrar a seleção brasileira que estava por lá para o campeonato mundial! Como conheço o Anderson Gouveia, fui visita-los à noite.

Na terça-feira (10/07) passei na loja central da Intersport e comprei uma guia de escalada com uma espanhola muito simpática chamada Carolina. Acabei contando a ela minha situação. Ela disse que também costumava viajar muito sozinha e que entendia o que eu estava passando, se compadeceu da minha situação e se ofereceu para me emprestar roupas e os equipamentos que precisasse, disse que escalava e me convidou para escalar no final da tarde.

Assim, no final da tarde fui encontrá-la para irmos à Les Gaillands um setor de escalada esportiva muito próximo do vale. Na volta, fomos para Le Maison des Artistes ver o jogo entre França e Bélgica pela Copa do Mundo de Futebol. Lá conhecemos Carlos Vasquez, um chileno que é guia de alta montanha, e seu amigo Alejandro Amor, espanhol que estava a trabalho como guia turístico em trekkings na região. Um acaso fortuito! Instantaneamente fizemos um laço de amizade! Trocamos telefones e ficou pré-combinado que iríamos escalar.

No dia seguinte, na quarta-feira (11/07), recebi a mensagem e não pude recusar! Fui escalar com Alejandro, Carlos, e seus amigos Fabien (francês) e Hanna (alemã) em Barberine, na fronteira da França com a Suíça. Lá fizemos uma escalada de parede e outras escaladas esportivas. À noite quando retornamos fomos ver o Campeonato Mundial de Escalada em Velocidade.

Na quinta-feira (12/07) Carlos e Alejandro me convidaram para escalar La Rébuffat, uma via de escalada na face sul da Aiguille du Midi que se inicia a 3.650 m e finaliza aos 3.842 m de onde baixamos pelo teleférico. De lá se tem uma vista espetacular para o Cosmiques Refuge (3.613 m) e para Arête des Cosmiques. Foi simplesmente incrível! Ouvimos o som de várias avalanches vindo do Mont Blanc du Tacul e Mont Maldit.

Nesse dia conversei com Carlos que queria escalar o Mont Blanc mas os refúgios (Tetê Rousse e Goûter) já estavam lotados e eu não tinha parceria nem as roupas técnicas necessárias e equipamento, já que estava sem a minha mala e sem previsão de quando a teria de volta*. Carlos e Alejandro quando contei a história da mala cantavam “Don’t worry about the things ‘cause every little thing it’s gonna be alright”. Realmente uma dupla incrível! Foi maravilhoso tê-los conhecido! Carlos comentou que guiaria um francês, François Bonno, para o Mont Blanc e que poderia me incluir nessa cordada, conseguindo lugar no refúgio Tetê Rousse pra mim, fiquei super empolgada e feliz com a oportunidade! Perguntei a ele se o francês já tinha hospedagem e ele disse que ia se certificar. Disse a ele que ambos poderiam ficar no meu apartamento pois estava só e havia espaço para 4 pessoas.

Na sexta-feira (13/07), era folga da Carolina, e eu e ela fomos com Alejandro fazer um trekking do Lac d’Émosson na Suíça. Quando voltamos, recebi François Bonno e Carlos no apartamento em que estava. E juntos fomos assistir o Campeonato Mundial de Escalada, era o dia das vias!

No sábado (14/07) François foi fazer a aclimatação com Carlos na Petit Verte e eu fiz minha apresentação da minha pesquisa no congresso. O congresso foi muito interessante com pesquisas sobre diversas áreas relacionadas a escalada e tive oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas, como Tul Singh Gurung, guia de escalada no Nepal, Shinji Mizumura que faz parte do comitê dos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2020, de quem ganhei um pin dos jogos, além de Eva Lopez, Udo Neuman e outras feras da equipe alemã de escalada como a Claudia Augste e Volker Schöffl.

Primeira tentativa de chegar ao cume do Mont Blanc

 

Tudo pronto, partimos no domingo (15/07) rumo ao Mont Blanc pela rota tradicional, eu, Carlos e François. Alejandro gentilmente nos deixou na estação de Saint-Gervain les Bains de onde pegamos o trem para Nid d’Aigle (2.380m), e de lá iniciamos a subida até o Refúgio Tetê Rousse (3.167m). Chegando lá pudemos ver um Chamois pela janela. Tivemos um jantar maravilhoso, e fomos dormir.

Às 2h da madrugada da segunda-feira (16/07) tomamos o café da manhã e iniciamos nossa jornada ao cume do Mont Blanc. Tudo ia bem até que fomos surpreendidos com uma tempestade de neve à altura do último refúgio, um refúgio de emergência, o Vallot (4.362m). A visibilidade foi totalmente comprometida e todos iniciaram a descida, e não tivemos alternativa, e descemos também. François ficou frustrado por não ter chegado ao cume.

Foto: Alessandra Dias

Eu fiquei feliz de ter chegado até ali e agradecida por estar viva, aceitei a decisão da montanha de que aquele não era o momento. Em realidade, quando paramos no Vallot me sentia bem. Mas na subida até ali, sentia frio nas pernas a maior parte do tempo, e tinha de me manter caminhando para não congelar as pernas. Senti também um pouco a altitude, estava com uma respiração difícil.

Não fosse a tempestade de neve, não sei se teria conseguido chegar ao cume, talvez conseguiria mas com dificuldade. Carlos disse que aquelas condições climáticas eram análogas as de inverno e não de verão.

Bem, retornamos. François foi embora na terça-feira (17/07) e tirei esse dia de descanso.

Escalada na Itália

Na quarta-feira (18/07) fui escalar a Aiguille d’Entrèves (3.600m) na Itália, com o francês Jean Marc e o israelense Or Zablo. Uma via de travessia linda, cuja vista do Mont Blanc e dos demais massivos dos alpes é espetacular, porém mais perigosa. Muitos crevasses! Como no último inverno quebrou-se o teleférico da França até lá, tivemos de atravessar o túnel do Mont Blanc e subir pelo teleférico do lado italiano, o Pontal d’Entrèves (1.300m) até o Punta Helbronner (3.466m) de onde iniciamos.

Neste dia chegou o Mitch Bowmile, um canadense, o qual Carlos foi pago para guiar de forma exclusiva ao cume do Mont Blanc. No entanto, Carlos sabia o quanto eu queria chegar ao cume do Mont Blanc, e me disse que Fabien, o amigo com quem escalamos em Barberine, também estava interessado. Desse modo, combinamos de ir no dia seguinte. E de certo modo, Carlos estaria lá também.

Segunda tentativa de chegar ao cume do Mont Blanc

quase no Vallot

fazendo o camping com o Fabien

Na quinta feira (19/07) partimos eu e Fabien, e Carlos e Mitch rumo ao Mont Blanc. Pegamos o trem de Chamonix a Saint-Gervais les Bains, e de lá para Nid d’Aigle. Carlos me emprestou sua mochila e sua barraca. Como era a que ficava com melhor ajuste pra mim, tive de levar cerca de 20 quilos, entre barraca, comida, equipamento e roupas. Não havia mais lugar nos refúgios, e eu e Fabien acampamos na zona do Tetê Rousse. Carlos e Mitch haviam reservado lugar no Refúgio Tetê Rousse e ficaram lá. Montamos a barraca e fizemos o jantar. Antes de dormir, uma névoa cobriu o acampamento, pensei que poderia ser um sinal ruim, mas à 1h da manhã quando saí da barraca para fazermos o café e partir, vi um céu estrelado espetacular e tive certeza que seria um dia perfeito para chegar no cume. Assim, após o café estávamos prontos. Vimos Carlos e Mitch passarem mas ainda colocávamos os crampons, e vários grupos ficaram entre nós.

Nos encontramos novamente com Carlos e Mitch na altura do velho Refúgio do Goûter, no momento em que tínhamos de retirar os crampons e Carlos aguardava Mitch descansar um pouco. Nesse momento, Fabien vomitou. Olhei para o Carlos e nada disse. Mas isso me preocupou. Carlos disse a Fabien que ele ficaria bem após ter vomitado. Ambos, tentamos acalmar Fabien. Carlos e Mitch seguiram.

E eu e Fabien logo depois. Mas ao longo da subida, via as pernas de Fabien tremendo, ele dizia ter sono, frio e um mal estar no estômago. Eram sinais importantes. Ele pediu pra ficar no Refúgio do Goûter e eu apenas perguntei se ele tinha certeza. Ele disse que sim, e retornamos ao Refugio do Goûter.

Uma vez lá, perguntei novamente se ele realmente desejava ficar, se não acreditava que passaria o mal estar. Ele disse que não tinha condições de prosseguir e que queria ficar. Eu perguntei se ele ficaria bem lá sem mim, pois eu queria seguir para o cume. Ele disse que sim. Combinamos que ele me esperaria e eu fui.

quase no cume

Estava ciente do risco que corri, mas eu queria seguir, acreditava ser possível e não ia me negar isso.

Ao iniciar a subida não havia mais ninguém subindo, todos haviam passado. E eu fui, com a vívida sensação de viver um passo de cada vez, com uma certeza dentro de mim de que chegaria ao cume, e que seria só uma questão de tempo. Conforme ia subindo me aproximei de duas pessoas e identifiquei serem o Carlos e o Mitch. Percebi que o ritmo do Carlos era devagar pois Mitch tinha dificuldades com a altitude, por vezes cambaleava.

Eu corria o risco de que ele caísse e me derrubasse, pois eu estava sozinha e desencordada. Assim, Carlos sugeriu que seria mais seguro pra mim seguir adiante, pois eu estava sozinha e num ritmo mais rápido. E assim eu fui. Realmente me sentia muito bem, tinha disposição, respirava bem e estava bem aquecida. Num trecho cheguei até a correr literalmente. Percebi que conta muito mais a aclimatação, determinação e estado mental do que a capacidade física. Após o Vallot, o caminho parecia interminável, várias subidas e descidas, vários crevasses e trechos estreitos na neve cercados por abismos. O vento soprava tão forte, que andava um pouco arcada as vezes usando além dos crampons, o piolet e o bastão para evitar ser derrubada.

no cume

Quando cheguei ao cume foi maravilhoso!

Fiz um vídeo, algumas fotos e pouco depois Carlos e Mitch chegaram. Tiramos uma foto juntos e sambei no cume do Mont Blanc como tinha dito a Carlos que faria! Depois desci também, passando por Carlos e Mitch, pois queria descer rápido para ver como estava o Fabien.

Na descida encontrei um grupo de espanhóis e um grupo de franceses que se mostraram um pouco preocupados por eu estar só e desencordada, mas não me ofereceram entrar na cordada e eu também não pedi. Segui, e ao chegar ao Refúgio do Goûter, Fabien, que havia me visto pela janela, me esperava na porta! Foi um reencontro emocionante, ele perguntou “Você chegou no cume?” e eu disse “Sim!”. Nos abraçamos, perguntei se ele estava bem, e vi que sim. Entrei, tomei um chocolate quente com ele, comi meu sanduíche, que sequer havia comido no caminho, pois no Vallot eu só comi um gel e uma barrinha salgada, e descemos. Na altura do Velho Refugio do Goûter encontramos Carlos, Mitch e o grupo de franceses que tirou nossa foto juntos. Estavam todos extasiados pelo cume!

No trem de Nid d’Aigle para Saint-Gervais les Bains encontramos coincidentemente Alejandro e o grupo de turistas espanhóis que ele guiava num trekking no Glaciar Bionnassay. Alejandro quando soube que eu e Fabien iríamos juntos ao Mont Blanc, tinha demonstrado preocupação. Pois tanto Fabien quanto eu, nunca havíamos feito o Mont Blanc.

Então Alejandro me contou várias coisas querendo me fazer consciente dos riscos e de como seria a experiência. Eu acho que ele não botava muita fé em mim. De modo que quando ele me viu no trem e Carlos lhe disse que eu fui sozinha do Refúgio do Goûter até o cume do Mont Blanc, ele ficou estupefato e me deu os parabéns e disse “Você tem noção do que você fez?! Quantas brasileiras já escalaram o Mont Blanc? Provavelmente você foi a primeira a fazer isso sozinha!”. Eu estava tão extasiada com o cume que não conseguia dizer nada. Apenas sentia aquela sensação me preencher. Depois fui ver que realmente, a primeira brasileira a fazer o cume do Mont Blanc foi em 2014 e eu a primeira a fazê-lo sozinha em 2018.

Na manhã do dia seguinte (21/07) parti para Annecy, onde aproveitei 2 dias que haviam sido programados de Parapente e Windsurf, e no dia 23 parti para Genebra de onde tinha o voo de retorno ao Brasil.

Gostaria de agradecer imensamente a Alejandro Amor, Carlos Vasquez Barriga, Carolina Krolypops, Fabien, François Bonno e Hanna Schmid por estes dias incríveis e inesquecíveis!

Também a Benjamin Demilly pelo churrasco!

E agradeço também as pessoas fantásticas que conheci no congresso, incluindo feras da seleção alemã e italiana de escalada com quem aprendi muito.

*Desde quando não recebi minha bagagem, sempre que pude, tentei contatar a Sgata (empresa responsável pela bagagem extraviada em Turim no meu caso) e a Iberia (empresa aérea) por telefone e email, sem sucesso, por várias vezes.

Quando consegui que me atendessem, só diziam que eu aguardasse pois estavam buscando pela minha bagagem e tinham 21 dias para entrega-la, nada disseram sobre algum auxílio até que ela aparecesse. E no fim ela apareceu tarde demais. Toda uma situação que me fez ingressar judicialmente contra a Iberia ao voltar ao Brasil, com quem tenho audiência na próxima semana.

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