Muitas pessoas praticam a atividade que mais gostam, porém poucos são reconhecidos em sua comunidade como a personificação dela perante todos.
Um reconhecimento assim somente é possível quando qualidades acima de qualquer suspeita estão encarnadas em uma pessoa singular, que concentra dedicação, altruísmo e carisma.
Todos estas adjetivos, e muitos outros, fazem parte do perfil do escalador gaúcho Rafael Caon, reconhecidamente um dos maiores apaixonados pelo esporte em seu estado.
Caon está sempre procurando se superar, fazer melhor e, principalmente, melhorar o esporte e conscientizar as pessoas que o praticam.
Adepto da escalada alpina, estilo não muito disponível para a prática no Brasil, é visitante constante de Chile e Argentina para praticar.
Por todas estas qualidades a Revista Blog de Escalada procurou o escalador para saber mais sobre sua vida, pensamentos e filosofia de vida.
A entrevista completa você acompanha abaixo
Rafael, o que a escalada representa para você?
A escalada é uma atividade que tem muita influência na minha vida, me motiva e me faz crescer como ser humano vivo intensamente e com muita devoção.
Desde que comecei tenho dedicado cada vez mais tempo para atividades relacionadas a escalada.
O que era apenas uma prática de fim de semana em 1990, hoje ocupa um espaço muito maior na minha vida.
Diariamente me envolvo com assuntos da AGM, durante a semana faço meus treinos no muro, e nos finais de semana quando não estou escalando, estou ministrando um curso, fazendo a manutenção de uma via, conquistando ou organizando um evento.
A escalada me ensinou que “vaca não da leite”, que é preciso ralar muito para evoluir como escalador ou atingir um objetivo profissional.
Foi através da escalada eu pude me conhecer melhor, entender minhas limitações, trabalhar os meus medos, descobrir minhas potencialidades, ser inteiramente responsável pelos meus atos.
Dentre os estilos de escalada, qual o seu favorito e por quê?
Atualmente o meu estilo favorito de escalada é o alpino, pois me proporciona grandes aprendizados, onde coloco meu corpo para funcionar a pleno e minha mente esvazia.
Durante a escalada vivo intensamente todos os momentos, tenho a clareza do que realmente importa na minha vida, valorizando as coisas mais simples, mais humanas, como calor, sol, alimento, amizade.
Habilitar-se para uma escalada alpina requer uma ampla gama de conhecimentos, muita prática e muito comprometimento.
Conhecimentos que não se restringem a escalada, mas também sobre meteorologia, nutrição, logística, primeiros socorros, entre outros, que podem ser determinantes para o sucesso da investida.
Praticando escalada alpina, eu vivo a essência da escalada, onde me sinto mais primitivo, mais selvagem, fazendo uma escalada de aventura, descobrindo e desbravando lugares ermos, onde sou totalmente responsável pelas minhas escolhas, onde meus sentidos ficam mais aguçados e me sinto feliz por estar vivo ali, naquele momento naquele lugar.
Com o crescimento do esporte, muitos escaladores praticam sem ter realizado um curso básico. Qual a sua opinião a respeito disso?
No mundo conectado que vivemos hoje, a difusão da informação é inevitável.
Acredito que cada pessoa tem o livre arbítrio para escolher como, com quem e de que maneira deseja aprender.
No entanto, nenhum filme, vídeo, manual, livro, apostila ou publicação substitui a orientação prática de um instrutor experiente, que além de apresentar os fundamentos teóricos deve acompanhar os primeiros passos de um iniciante.
O número de acidentes com escalada tem crescido proporcionalmente ao crescimento do esporte, e um dos motivos é a falta de instrução.
Os locais onde praticamos escalada apresentam riscos iminentes aos praticantes, e qualquer negligência ou erro pode resultar em um acidente grave ou fatal.
No entanto, muitas vezes o risco está no praticante e não na atividade ou no local.
O risco está acima de tudo na falta de capacitação e no meio pelo qual a escalada é praticada.
No ano de 2013 houve muitos incidentes de mau comportamento de escaladores. Qual seria o motivo deste crescimento?
Acredito que a falta de instrução é o principal motivo de muitos dos incidentes e somados a isso, tem também o individualismo ou a falta de identidade comum.
Com o crescimento desenfreado do número de praticantes, muitos não tiveram uma formação quanto aos aspectos que envolvem a prática sustentável e ecologicamente correta da escalada.
Não sabem da existência de um código brasileiro de ética, da Declaração do Tirol, quem dirá do código internacional de montanha da UIAA.
Muitos escaladores de hoje, não estão filiados a uma associação, clube ou federação.
Eles ingressaram na escalada através de amigos, academias ou de forma independente mesmo, e assim não se preocupam com o bem estar comum, com as boas práticas, tão pouco com as regras e condutas locais.
É claro que educação vem de berço.
Não espero que uma entidade saia doutrinando escaladores, mas penso que alertar, divulgar, estabelecer normas de conduta, representar uma comunidade e defender interesses comuns é o papel que estas entidades devem assumir cada vez mais.
Você possui uma rotina de treinos rígida? Qual?
Não tenho uma rotina rígida de treinos, mas procuro me manter em forma escalando aos finais de semana, treinando no muro uma ou duas vezes por semana e correndo também.
Quando tenho uma viagem marcada, intensifico meus treinos de acordo com o objetivo da viagem, e minha maior deficiência no momento, ora priorizando a parte aeróbica ora resistência, etc..
Tenho absoluta certeza que hoje sou um escalador muito melhor do que fui há 10, 15 20 anos atrás.
Porque, por mais dedicado que um escalador seja aos treinos, existem coisas que somente o tempo e a experiência poderão proporcionar.
Muitos escaladores adotam preferências alimentares fora do “lugar comum”, como ser vegan ou vegetariano. Você possui alguma dieta alimentar especial?
Não faço nenhuma dieta especial, apenas procuro me alimentar de forma balanceada e saudavel, comendo tudo que gosto, sem me privar de nada.
Como todo gaúcho que se preza, tenho o hábito de tomar chimarrão, gosto de comer um bom churrasco de costela, e tomar uma cerveja com amigos assistindo ao greNAL.
Diria que o vilão da minha dieta é o chocolate.
No ano de 2013 não houve a organização de campeonatos de escalada. na sua opinião você acredita que as competições de escalada são viáveis?
Sim, acredito que são viáveis em países onde o mercado consumidor já está maduro.
Os principais interessados nas competições não são os escaladores, mas sim as empresas e marcas que fazem destes eventos uma oportunidade para divulgação, demonstração e promoção de seus produtos e serviços.
A escalada em tempo real é muito difícil de ser demonstrada para um grande público, e uma competição cria esta oportunidade.
Nunca tive muito interesse nas competições. A escalada sempre foi uma coisa muito pessoal pra mim, onde eu mesmo determinava os desafios.
As competições podem ser comparadas a um espetáculo artístico na minha opinião.
No Brasil quais foram os melhores lugares de escalada que já visitou? Por quê?
Acredito que os melhores lugares variam de acordo com o estilo de escalada que eu praticava na época em que estive em cada lugar.
Por exemplo, quando estive no Rio de Janeiro, escalei bastante na cidade, vias esportivas, e fui apenas uma vez para Serra dos Órgãos.
Foi muito bom, porém se hoje fosse novamente gostaria de passar mais tempo na serra, conhecer Salinas, Itatiaia, etc…
Atualmente tenho viajado mais para Argentina e Chile devido ao estilo de escalada que estou buscando e com isso acabo sem tempo livre para conhecer outros lugares mais afastados no Brasil que também me fascinam como Pancas, Chapada Diamantina, e outros tantos em Minas Gerais, Paraná e Espiro Santo.
Como o tempo livre está cada vez mais escasso, as viagens são mais curtas, e com isso tenho conhecido novos setores de escalada tradicional na região serrana de Santa Catariana, que além de ter uma natureza exuberante conta com um potencial imenso para escalada em fenda, como Serrinha, Morro da Mina, Rio dos Cedros.
O meu local predileto é a Casa de Pedra em Bagé-RS, porque além de ter vias nos mais variados graus e estilos, o que representa diversão garantida, é um local ainda selvagem, pouco visitado, e esse é um ingrediente fundamental pra mim.
Sem dúvida nenhuma o esporte de escalada cresceu muito. Você acredita que as federações estão alinhadas com os interesses desta nova geração de montanhistas? Por quê?
Montanhista é um termo muito amplo. Eu concordo que houve um grande crescimento na escalada esportiva e no bouldering, especialmente nos grandes centros onde muitos jovens começam a praticar através de uma academia, escola ou clube que dispõe de um muro indoor.
Contudo, entre o muro e a montanha propriamente dita, existe uma grande distância.
Os locais onde a escalada esportiva e o bouldering são praticados é onde se pode perceber o grande aumento de adeptos, nas montanhas o crescimento não se deu na mesma proporção.
Eu acredito que não, a maioria das federações está despertando somente agora para as novas demandas dessa geração com exceção das grandes federações (FEMERJ e FEMESP) onde os trabalhos estão mais alinhados com a CBME e o número de federados é bem maior.
As federações deveriam focar muito mais nas deficiências desta nova geração que nos interesses, muitas vezes distorcidos por falta de informação ou capacitação.
Muitos problemas de acesso, por exemplo, poderiam ter sido evitados se as federações tomassem a frente, disseminando as boas práticas na escalada, o código de ética, as regras locais, atuando como mediadora e porta voz da comunidade escaladora local.
Trabalhos de manutenção e regrampeação de campo escolas e vias, homologação de cursos, work shops e palestras sobre segurança, mínimo impacto, novas tendências são trabalhos que poderiam ser centralizados nas federações.
Formado em Engenharia Civil e Ciências da Computação, começou a escalar em 2001 e escalou no Brasil, Áustria, EUA, Espanha, Argentina e Chile. Já viajou de mochilão pelo Brasil, EUA, Áustria, República Tcheca, República Eslovaca, Hungria, Eslovênia, Itália, Argentina, Chile, Espanha, Uruguai, Paraguai, Holanda, Alemanha, México e Canadá. Realizou o Caminho de Santiago, percorrendo seus 777 km em 28 dias. Em 2018 foi o único latino-americano a cobrir a estreia da escalada nos Jogos Olímpicos da Juventude e tornou-se o primeiro cronista esportivo sobre escalada do Jornal esportivo Lance! e Rádio Poliesportiva.