Como praticar Alpinismo – Parte 1: Introdução

Este é o primeiro de quatro artigos que visam esclarecer dúvidas, derrubar mitos, e ajudar na emancipação do escalador brasileiro que já tem alguma experiência em escalada alpina em baixa, média ou alta montanha, mas que quer buscar objetivos de maneira independente, autossuficiente e segura.

Antes de começar, é preciso alinhar as definições de tipos de escalada e estilos. As definições utilizadas nesta série são as definições da UIAA (União Internacional de Associações de Alpinismo) encontradas no Código de Montanha (também chamado Declaração do Tirol), e portanto definições padrão utilizadas nos Estados Unidos e principalmente Europa, onde surgiu o alpinismo e estilo alpino.

Tipos de atividade em montanha

Para esta série trabalharemos com apenas algumas das disciplinas do código, explicadas abaixo. É importante entender que a necessidade de encordamento para cruzar uma geleira não é o que torna uma via “técnica”.

Um bivaque no fim de tarde ao pé de uma via de 1000 m para ganhar tempo no dia seguinte | Foto: Cissa Carvalho

Um bivaque no fim de tarde ao pé de uma via de 1000 m para ganhar tempo no dia seguinte | Foto: Cissa Carvalho

Montanhismo clássico: é ascensão de vias normais e pouco técnicas em ambiente alpino. É praticada em todas as cordilheiras de todos os continentes, e em todas as altitudes. Normalmente são as vias mais fáceis (normais) de ascensão a um cume.

Escalada alpina: é a escalada técnica – seja ela big wall/móvel/mista/gelo – executada em ambiente alpino. E quando se cita ambiente alpino, já estamos falando de locais relativamente isolados, expostos às intempéries do clima, e com acesso restrito, entre outras características mais específicas a cada cadeia de montanhas. Esse tipo de escalada acontece em todas as cordilheiras do mundo. As vias podem ser predominantemente de rocha porém com aproximação em geleira (rocha alpina, como em Chaltén e Alpes no verão), assim como predominantemente de gelo com trechos em rocha (Alasca e Alpes na primavera), ou totalmente em gelo e neve (Cordilheira Branca e Huayhuash, e Alpes Neozelandeses), entre outras condições.

Escalada super alpina: é a escalada alpina praticada em montanhas acima dos 6000 m de altitude. Os palcos onde mais se pratica essa disciplina hoje são o Alasca, o Himalaia da Índia, e principalmente o Karakoram no Paquistão. O alpinismo de vanguarda é quase sempre praticado nessas áreas.

cordada em A em Chamonix e escalada predominatemente em simultâneo aceleram a velocidade da escalada | Foto: Jorge Galve

cordada em A em Chamonix e escalada predominantemente em simultâneo aceleram a velocidade da escalada | Foto: Jorge Galve

Escalada de expedição: uma maneira de possibilitar grande número de clientes de alcançarem um cume pelas vias normais, em geral em montanhas de altitude extremas em regiões bastante remotas, fazendo uso deliberado de carregadores, guias, infraestrutura pesada de acampamento base e acampamentos altos, cordas fixas e oxigênio artificial. Utilizado nas primeiras conquistas das montanhas mais altas do mundo, hoje ele é o método de escolha das expedições comerciais.

Nesta série abordaremos os três primeiros tipos de atividade em montanha, que são os que permitem a utilização do estilo alpino para sua execução.

O que é o estilo alpino

Primeiramente, estilo é a maneira como se escalada uma montanha. Pode ser em estilo de expedição, ou em estilo alpino. Esse último surgiu em contraponto à maneira como as expedições às montanhas de 8.000 metros de altitude do Himalaia estavam sendo conduzidas, sempre com centenas de sherpas, toneladas de equipamento e energia, dezenas de escaladores trabalhando e um sistema quase militar, entre os anos 1950 e 1970.

A diminuição dos excessos, e consequentemente maneira mais enxuta que os pioneiros do estilo alpino adotaram andou de mãos dadas com as mais notórias ascensões e aberturas de vias desde então, o que colaborou para que fosse considerado como a maneira mais pura de se escalar uma montanha.

Aproximação no fim do dia em direção a um bivaque intermediário, sempre com o mínimo de material possível | Foto: Chema Galve

Aproximação no fim do dia em direção a um bivaque intermediário, sempre com o mínimo de material possível | Foto: Chema Galve

O estilo alpino (muitas vezes chamado de light and fast, ou leve e rápido) se caracteriza pela veia exploratória, cordadas pequenas, ataques rápidos, recursos e energia extremamente limitados, hierarquização horizontal, maior comprometimento, menor exposição a perigos objetivos, e maior dependência da experiência da cordada. Mas o que tudo isso quer dizer?

  • “Leve e rápido = forte e experiente”

Existem benefícios e riscos importantes quando se escala em estilo alpino. Levando-se em conta que a cordada tem preparo suficiente para esse estilo, um dos maiores benefícios é uma exposição muito menor ao frio e perigos objetivos, já que se passa muito menos tempo numa via do que se a cordada optasse pelo estilo expedição. Ueli Steck tomou apenas 28 horas para escalar a face sul do Annapurna (8.091 m), o que numa expedição certamente levaria semanas de exposição à frio, avalanches e deterioração física resultante da altitude, fora a logística. Quanto maior a velocidade da cordada, menor a chance de ser atingido por avalanches, por exemplo.

No entanto, escalar em estilo alpino é inquestionavelmente muito mais difícil (mas não necessariamente mais arriscado) que em estilo expedição e portanto requer muito mais experiência. Para começar, uma cordada que planeja uma ascensão rápida vai com menos equipamento e suprimentos, portanto no caso de emergências, estará com menos recursos para lidar com esses imprevistos.

"Alpine start", rotina fundamental das escaladas técnicas em montanha | Foto: Chema Galve

“Alpine start”, rotina fundamental das escaladas técnicas em montanha | Foto: Chema Galve

Não existem carregadores, cozinheiros, quase nunca há guias e, portanto, requer do escalador inúmeras capacidades bastante desenvolvidas:

  • Capacidade de organizar remotamente uma escalada utilizando informações logísticas e meteorológicas
  • Leitura de via e condições da montanha
  • Capacidade de escalada técnica e utilização dos equipamentos
  • Adaptabilidade
  • Físico suficiente para carregar todo seu equipamento na aproximação e escalada sem esgotar-se
  • Capacidade mental de lidar com situações inesperadas e crises
  • Entre muitas outras coisas

Numa escalada em estilo expedição, por exemplo, é comum o escalador (em geral cliente) não ter um nível técnico muito alto, e menos ainda experiência técnica em montanhas menores. Seu papel por tanto é limitado ao esforço físico de subir, normalmente acompanhado de guia e/ou sherpa, já que toda a parte burocrática e logística fica a cargo de outras pessoas. Muitas vezes esse mesmo cliente não teria a capacidade de chegar ao cume se ele mesmo se encarregasse de todo o processo logístico da escalada.

Aí já está o contraste mais importante com o estilo alpino: tudo que numa expedição comercial seria feito pelos outros, numa escalada em estilo alpino é trabalho dividido entre a cordada.

Aproximação ao campo alto do Alpamayo | Foto: B. Sthal

Aproximação ao campo alto do Alpamayo | Foto: B. Sthal

Imagine portanto o físico e experiência necessários para fazer uma aproximação de 5 horas com 28 kg nas costas em altitude, chegar ao acampamento e nivelar a neve, montar a barraca, derreter neve, fazer sua comida, fazer o planejamento do dia seguinte e ainda dar uma estudada na via, seja ela 600 metros de graduação francesa 6a em fendas de granito ou 1.000 metros de gelo e misto. Tem que estar sobrado pra escalada propriamente dita e ainda mais sobrado pra fazer a descida da via e o retorno à civilização, isso se tudo ocorrer como planejado.

Vejam que responsabilidade de entrar numa situação dessa: é preciso estar sempre na melhor forma da sua vida, na sua melhor fase de escalada, entender sua tolerância a risco e estar extremamente confiante em sua capacidade de lidar com todas as situações, principalmente cansado, com sono e com fome, além de poder contar 100% com as mesmas capacidades nas pessoas que fazem parte da sua cordada.

Acampamento no col do Midi antes de escalar o Mont Blanc | Foto: Sergio Gomez

Acampamento no col do Midi antes de escalar o Mont Blanc | Foto: Sergio Gomez

A habilidade de se comprometer numa escalada como essa confiando no próprio taco é uma coisa que se desenvolve ao longo de muitos anos e muitas idas às montanhas. As vias e montanhas mais difíceis do mundo exigem além disso, doses cavalares de talento e por que não, bastante sorte. Mas isso não quer dizer que escalar de maneira auto suficiente seja impossível ou para poucos, muito pelo contrário.

Alpinismo, assim como outras modalidades da escalada, é uma coisa que se aprende, e treinando, se domina. Basta ter humildade para entender que é um caminho longo porém possível, e estar atento para aprender em todas as situações e com outros escaladores. Garanto que o primeiro cume feito de maneira independente vai ser amor à primeira vista, e a partir daí, aprender será um prazer enorme.

No próximo artigo começarei a esmiuçar a “composição” de uma escalada alpina e portanto os pontos a se considerar pra que seja possível um planejamento técnico, logístico, físico e mental para chegar lá. Esse planejamento vem no terceiro artigo desta série.

Acampamento no col do Midi antes de escalar o Mont Blanc | Foto: Sergio Gomez

Acampamento no col do Midi antes de escalar o Mont Blanc | Foto: Sergio Gomez

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