Como iniciar na alta montanha: Parte I – Autovaliação

A alta montanha, definitivamente, entrou na lista de desejos dos montanhistas, escaladores e praticantes de trekking brasileiros. Muita gente costuma entrar em contato para perguntar como fazer para se iniciar na alta montanha, quais os melhores lugares para começar, etc.

A demanda crescente nos motivou a escrever essa série de artigos sobre o tema e, nessa primeira parte, vamos abordar um tópico que nem todos se lembram de colocar em pauta: a alta montanha realmente é para mim? Preocupados em descobrir qual a atividade ou local mais adequado para uma iniciação, a maioria das pessoas não responde a essa pergunta básica antes de entrar em alguma expedição.

A alta montanha é um ambiente inóspito e que apresenta condições difíceis e rigorosas para a prática esportiva. Nos dois primeiros textos dessa série vamos propor um conjunto de questões para que, aqueles que desejam se iniciar na alta montanha, possam refletir se realmente estariam aptos e se já possuem a experiência mínima para participar de uma expedição em alta montanha.

Eu tenho perfil para a alta montanha?

Foto: Marcelo Delvaux

A pergunta básica que todos os iniciantes deveriam tentar responder é essa: meu perfil realmente é compatível com o ambiente de alta montanha?

Abaixo propomos algumas questões para orientar essa reflexão.

Ir para a alta montanha sem ter o perfil adequado implica em sofrimento e decepção: as condições da alta montanha não permitirão que a pessoa desfrute os dias que passará nesse fantástico ambiente, comprometendo os resultados da expedição e, muitas vezes, prejudicando o trabalho dos guias e a convivência harmoniosa do grupo.

1 – Facilidade de adaptação à vida na natureza

Laguna Uchuy Pucacocha, uma das inúmeras lagoas da região da Vilcanota | Foto: marcelo Delvaux

A alta montanha pode ser definida como a natureza em estado bruto. Quem se sente desconfortável em ambientes naturais, certamente não se adaptará ao ambiente de alta montanha, onde as condições são extremas e totalmente desfavoráveis à vida humana. Atividades simples como ir ao “banheiro”, preparar uma refeição ou armar uma barraca podem se converter em algo complexo e desmotivador, dependendo do frio, do vento, do tipo de terreno, etc.

Mesmo estando em uma expedição guiada (onde a maioria das tarefas são assumidas pelos guias e demais profissionais) em locais que apresentem uma boa infraestrutura de acampamentos (por exemplo, em montanhas comerciais como o Aconcágua), quem não gosta de estar na natureza, ou se sente desconfortável em ambientes naturais, não vai se sentir nada bem.

Para estar na alta montanha é preciso, antes de tudo, gostar de (e não apenas suportar) passar alguns dias longe das facilidades e recursos existentes nas grandes cidades (incluindo a possibilidade de ficar desconectado, sem internet). Também é necessário não se importar em usar o “banheiro” ao ar livre (ou banheiros rústicos, como os existentes nos acampamentos-base das montanhas comerciais) e de passar vários dias sem a possibilidade tomar banho, sem ficar incomodado com isso.

Para o público brasileiro acostumado ao cotidiano de um país tropical, onde banhar-se diariamente, além de fazer parte da cultura nacional (costume, por sinal, herdado de nossos indígenas), é uma necessidade de higiene básica, encontrar-se em um local onde tomar uma boa ducha é algo impossível, pode ser um fator limitante que afeta o lado psicológico e a performance na expedição, por mais banal que possa parecer.

Se você não gosta de ambientes naturais, fique longe da alta montanha.

2 – Isolamento

Foto: Marcelo Delvaux

Mesmo com todas as facilidades tecnológicas disponíveis atualmente, a sensação de isolamento quando se está na alta montanha pode ser algo insuportável para muitos. Esse isolamento pode ser real (estar em um lugar sem nenhuma possibilidade de contato) ou ter um fundo psicológico. Por exemplo, alguém pode possuir um telefone satelital, que lhe permite comunicar-se com qualquer pessoa a qualquer hora, ou estar no acampamento-base de uma montanha como o Aconcágua, onde há internet, sinal de celular e dezenas e dezenas de pessoas ao seu redor, e mesmo assim, se sentir isolado e distante da “civilização”. Devido às características das expedições de alta montanha, que implicam em roteiros de vários dias ou semanas, é preciso estar psicologicamente preparado para passar longos períodos longe da família e dos amigos.

Para quem não se sente bem quando vai a algum local de difícil acesso, onde a sensação de isolamento se faz presente, a alta montanha não é o seu lugar e é preciso pensar bem antes de entrar em uma expedição desse tipo.

3 – Tolerância ao frio

Foto ; https://www.camptocamp.org

Alta montanha é sinônimo de frio. Muito frio. Quanto mais alto, mais frio. Essa é uma questão básica, mas que muitos subestimam. E é um tópico de suma importância para os brasileiros, já que as condições climáticas predominantes em nosso país não nos trazem a possibilidade de conviver com baixas temperaturas. De um modo geral, o brasileiro não está acostumado com o frio.

Quem tem pouca tolerância ao frio, não deveria buscar o ambiente de alta montanha. Mesmo estando devidamente equipado e com roupas adequadas, transitar pela alta montanha sem ter uma boa dose de resistência ao frio pode, inclusive, trazer sérios riscos à sua integridade física. Ou provocar um abalo psicológico que impossibilite um bom desempenho nas atividades da expedição.

O ambiente de alta montanha também tem algumas características que fazem com que o frio pareça menos suportável que em outras regiões: ar extremamente seco, baixa pressão de oxigênio, ventos fortes, etc. Já ouvi muita gente comentar algo como “já peguei essa temperatura antes e não senti tanto frio”. Ou antes da expedição dizer “não se preocupe, sou muito calorento” e, no primeiro acampamento, não conseguir dormir devido ao frio.

O ideal seria, antes de ir para a alta montanha, ter alguma experiência em regiões frias, fazendo alguma viagem para locais que permitam esse tipo de experiência, e ver como o corpo reage. É preciso não somente tolerar o frio, mas gostar de estar em um ambiente frio.

4 – Percepção de riscos e perigos

Trecho do Circuito Ausangate | Foto Marcelo Delvaux

Como é a sua percepção dos riscos, quando vai realizar alguma atividade outdoor? Ou mesmo durante o seu dia-a-dia, na cidade onde mora? Você é do tipo que, constantemente, deixa de fazer alguma coisa porque a considera perigosa ou arriscada?

Apesar das teorias de gerenciamento de riscos tratarem, preferencialmente, a ideia de risco de uma maneira objetiva e quantificável (e, de fato, existem riscos objetivos ou reais, na maioria das atividades que realizamos), existe um componente subjetivo fundamental que faz que um determinado tipo de risco seja percebido de distintas maneiras por diferentes pessoas. Há quem não veja nenhum risco no ambiente ou na ação que vai executar. Geralmente, são pessoas inexperientes que resolvem transitar em locais perigosos sem a devida preparação, não enxergando os riscos aos quais estão expostas. Em um outro extremo estão aqueles que percebem riscos e perigos de maneira acentuada, exagerando a probabilidade de que um risco ocorra ou o impacto decorrente de sua ocorrência.

Para a alta montanha o ideal é ter uma visão equilibrada sobre os riscos e perigos envolvidos, não tendo uma atitude totalmente destemida (não ter medo é um sinal mais de inexperiência do que o contrário), nem sendo do tipo temeroso, que vê riscos e perigos por todas as partes. Esses dois perfis podem trazer diversos problemas no decorrer da expedição, para os guias e demais participantes, afetando a segurança e o desempenho do grupo. O destemido vai questionar as ações de segurança tomadas pelos guias. E o temeroso vai reclamar que está sendo exposto a situações que poderiam comprometer sua integridade.

5 – Tolerância a riscos

Foto: Marcelo Delvaux

Outro aspecto importante em relação aos riscos existentes: qual é a minha tolerância a riscos? Independentemente de como é minha percepção (subjetiva) dos riscos, a alta montanha é um ambiente que apresenta riscos e perigos objetivos e é preciso saber conviver com essa constatação. Mesmo sendo possível mitigar alguns riscos, ou seja, adotar medidas que diminuam a probabilidade de ocorrência de um risco ou que minimizem o impacto da ocorrência de um risco, eliminar os riscos, na maioria das vezes, é impossível. Por isso, é preciso ter tolerância aos riscos envolvidos nas atividades de alta montanha.

Obviamente, existem muitas atividades de alta montanha, com diferentes níveis de riscos associados. Cada um deveria buscar conhecer quais são esses riscos e estar convicto que tem a capacidade de aceitar as probabilidades e os impactos relacionados à ocorrência de tais riscos, para escolher aquela atividade que seja compatível com seu nível de tolerância. Não basta ter uma percepção equilibrada dos riscos: também é preciso possuir uma tolerância adequada aos riscos percebidos. E, quem tem pouca tolerância a riscos, seria melhor buscar atividades em ambientes mais controlados: a experiência na alta montanha, certamente, não vai trazer nenhum prazer para pessoas com esse perfil.

6 – Paciência

Foto: Marcelo Delvaux

Alta montanha, definitivamente, não é lugar para apressadinhos. Chegar ao topo de uma grande montanha é como um jogo de xadrez, onde um movimento pouco pensado pode ter consequências desastrosas. Muitas vezes, é preciso esperar que o corpo se aclimate à altitude, que o clima melhore, etc. E é preciso saber esperar. Por isso, ao contrário do que muitos pensam, se pudéssemos quantificar os fatores envolvidos no sucesso de uma ascensão em alta montanha, pelo menos 50% desses fatores se relacionariam com aspectos mentais e psicológicos. A parte física e técnica dividiria os outros 50%. Subir uma grande montanha não é uma mera questão de força bruta e a cabeça deve trabalhar mais e melhor dos que as pernas e braços.

Ser paciente não quer dizer, necessariamente, ser lento. É saber usar a dosagem certa de energia, na hora certa. Economizar recursos, para usa-los de forma intensiva no momento adequado. Sem dúvida, a velocidade, muitas vezes, é sinônimo de segurança. Mas é preciso ser rápido no período correto, ou seja, no esperado dia de se tentar o cume, na reta final da expedição. Temos que ser “lentos” quando é preciso paciência para esperar, e rápidos quando o momento oportuno chegou.

Ultimamente, vejo uma forte correlação entre “ser apressadinho” e “ser inexperiente”, principalmente em montanhas comerciais e badaladas como o Aconcágua, onde sempre surgem pessoas que compartilham essas duas características. Tal correlação se agravou nos últimos anos com o que na Europa vem sendo chamado de “efeito Killian Jornet”.

Quem não tem a paciência entre suas virtudes pessoais, recomendo não ir para a alta montanha.

7 – Trabalho em grupo e empatia

As expedições em alta montanha envolvem gostar do convívio e do trabalho em grupo, podendo ser enquadradas no que chamaríamos de atividades de turismo ativo, durante as quais todos os membros participam das ações executadas. Mesmo em expedições de alta montanha “de luxo”, com muitos profissionais contratados para servirem aos clientes (guias, carregadores, cozinheiros, arrieiros, etc.), é preciso ter um mínimo de disposição e boa vontade para ajudar quando for preciso e empatia com esses profissionais e demais participantes.

Uma das características da alta montanha é que esse é um ambiente de recursos limitados, por mais luxuosa e bem provida que seja uma expedição, e os profissionais que atuam nesse ambiente trabalham tentando gerenciar e otimizar a escassez de recursos. Infelizmente, muitas pessoas que buscam uma expedição de alta montanha não compreendem esse detalhe fundamental, exigindo serviços como se estivessem participando de pacotes turísticos comuns, em locais em que os recursos são abundantes e onde não é preciso ter uma postura colaborativa.

É uma atividade para quem está disposto a trabalhar junto com os guias e demais membros do grupo. Quem não possui o perfil para esse tipo de convivência, melhor buscar pacotes de turismo convencional.

8 – Tolerância a privações

Essa última característica é uma consequência das anteriores: o frio, o isolamento, os rigores da natureza em sua manifestação extrema, os recursos limitados, os riscos e perigos envolvidos, tudo isso leva a uma sensação de que estamos privados do conforto que a “civilização” nos proporciona e é preciso ser tolerante para suportar esse tipo de privação. Com o tempo, a experiência vai nos mostrar que, na verdade, não estamos sofrendo privações, mas sim que estamos aprendendo a sobreviver em um ambiente inóspito utilizando somente o necessário e o suficiente.

A grande lição que levamos da montanha é essa: é possível fazer muito com pouco, sabendo fazê-lo da forma adequada. Tal lição, para quem sabe interpretá-la, pode ser aproveitada em nosso cotidiano, fazendo-nos minimizar a importância que damos a muitas coisas que, na montanha, não teriam nenhum valor. E, ao contrário, levando-nos a valorizar aquilo que realmente importa.

Para quem possui a “cultura da abundância” entranhada nas veias, não conseguindo suportar um contexto de “privação” de recursos, a alta montanha não seria o melhor lugar para passar as férias.

Para quem refletiu sobre as questões expostas no texto e pensa que possui o perfil adequado para a alta montanha, no próximo artigo vamos propor uma segunda autoavaliação, dessa vez para discutir os requisitos básicos recomendados que deveríamos preencher para uma iniciação com maiores possibilidades de êxito.

Comente agora direto conosco

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.