Como é viver de escalada na capital mundial do alpinismo

Como é, e o que é Chamonix

Chamonix fica nos Alpes franceses. O alpinismo moderno nasceu e se desenvolveu aqui desde antes da segunda guerra.

De lá para cá não só escaladores e alpinistas de toda a Europa migraram para a cidade de 10 mil habitantes, mas famílias tradicionais de guias foram se formando e consolidando uma tradição de excelência técnica quase sem paralelos em outras partes do mundo.

Graças aos teleféricos e refúgios, o alpinismo da região se especializou ainda mais, sem a necessidade de aproximações longas com muito peso.

O alpinismo daqui tornou-se então uma atividade extremamente técnica e atlética, e apesar da pouca altura em comparação às grandes cordilheiras, os Alpes com certeza tem a maior concentração de vias alpinas difíceis do mundo.

Quintal de casa | Foto: Edson Vandeira

Quintal de casa | Foto: Edson Vandeira

Essa facilidade de acesso transformou os “Chamoniards” em atletas de elite em praticamente qualquer modalidade que pratiquem: dry tooling, gelo alpino, cascata, esportiva, boulder, e corrida de montanha.

Como se diz por aqui : “em Chamonix só não fica forte quem não quer”.

Quem são os Chamoniards

Multi pitch de verão em Brévent | Foto: Edson Vandeira

Escalando o Pilar Gervassutti, no Mont Blanc du Tacul | Foto: Cissa Carvalho

Praticamente todos europeus: metade franceses, muitos ingleses, uma crescente comunidade espanhola, alguns australianos e kiwis (neozelandeses), e uns poucos latinos com passaporte europeu (meu caso).

Dentro da comunidade de escalada e seus nichos, todo mundo meio que conhece todo mundo.

E é totalmente normal escutar quatro línguas diferentes numa mesma conversa, e se existe algum traço que unifica as pessoas, é a paixão pelas montanhas.

As pessoas estão divididas em praticamente 4 grupos: escaladores, esquiadores, residentes que não praticam esportes, e turistas.

O verão é o paraíso dos escaladores, assim como o inverno é o paraíso dos esquiadores, e aqui todo mundo pratica quase todos os esportes, e num nível bastante respeitável.

A maior parte dos escaladores aqui são alpinistas e com o terreno propício, a especialização é em vias alpinas longas de rocha com muitas fissuras. Franceses são conhecidos por equiparem em excesso vias longas, e é comum encontrar grampeação perto de fissuras, mas felizmente a escola “americana” está se infiltrando e a escalada limpa está ganhando cada vez mais espaço.

Escalada esportiva por aqui é treino para a montanha, e apesar de inúmeros, os setores de esportiva não são lá essas coisas. Já para boulder tem diversos locais próximos bastante bons.

Advogados, engenheiros, designers, arquitetos, administradores, turismólogos…

Quase todo mundo por aqui tem diploma ou pós-graduação, em alguma profissão “normal” mas ninguém exerce.

Chegada da Ultra Trail du Mont Blanc, maior evento esportivo da cidade | Foto: Cissa Carvalho

Chegada da Ultra Trail du Mont Blanc, maior evento esportivo da cidade | Foto: Cissa Carvalho

Quase todo mundo trabalha em turismo: faxineira de hotel, recepção, motorista de transfer, host de chalé, bartender , garçom, cozinheiro, construção e renovação, vendedor.

Empregos normalmente com horas bem flexíveis ou, às vezes, de meio período e que permitem bastante tempo durante a semana para escalar.

E quanto a isso aqui não tem preconceito: qualquer trabalho serve para manter o estilo de vida de estar nas montanhas o máximo possível.

Meu dia a dia

Meu trabalho atualmente é de recepcionista num hotel 2 estrelas.

Ganho o salário mínimo francês, e trabalho de 35 a 42 horas por semana.

Divido apartamento num chalet com uma espanhola, mas tem gente que vive amontoada em pequenos estúdios, gente que vive em apartamentos caros no centro, gente que vive em vans.

Dry tooling no setor Zoo | Foto: Patricia Fernandez

Dry tooling no setor Zoo | Foto: Patricia Fernandez

Normalmente tenho metade do dia livre e mínimo dois dias livres por semana.

No verão, quando tem luz das 6 da manhã às 10 da noite, é comum perder a noção do tempo: da para sair do trabalho e passar algumas horas escalando numa falésia, ir para uma corrida de duas horas pela montanha e ainda chegar em casa com luz.

Se escalar rápido, da para tirar uma manhã ou uma tarde e fazer via média de 300-400 metros toda equipada, nas inúmeras faces sul do vale.

Nos dias livres é hora de ir para montanha e fazer via longa alpina ou montanhismo.

Já subi para fazer Mont Blanc num dia, desci no outro de tarde e no dia seguinte saí para correr meia maratona pelas montanhas. Ou dia que subi no primeiro teleférico, fiz duas vias e às 15:00 e já estava em Cham para cuidar da vida.

Se o tempo estiver ruim, tem inúmeros ginásios de escalada pelo vale, ou setores de dry tooling.

E corredores de montanha… esses treinam com qualquer clima.

Combinar os horários de trabalho malucos de todo mundo é complicado, mas por outro lado ajuda e estimula a conhecer pessoas novas e ter vários parceiros para escalar.

Pelas montanhas se vai conhecendo gente de todos os cantos e todos os tipos, com as mais diversas histórias. Cham é o centro do mundo do alpinismo, e atrai o ano inteiro os maiores nomes do esporte.

No final de abril tem a entrega do Piolet D’Or, Oscar do alpinismo mundial, que traz para cidade, entre jurados e indicados, os maiores nomes da atualidade.

Ja perdi a conta de quantos grandes nomes da escalada mundial já cruzei por aqui:

  • Marc Andre LeClerc, Will Gadd e Paul McSorley durante o ArcTeryx Alpine Academy Film Night
  • François Damilano guiando um cliente bem atrás de mim na Aresta dos Cosmiques
  • Simone Moro e Killian Jornet na noite seguinte num refúgio
  • Ueli Steck e Jon Griffith apresentando um filme
  • Mikel Zalbaza (um dos maiores 8.000 “milistas” espanhóis); Catherine Destivelle numa pizzaria
  • Além de atualmente morar na casa onde morou Jordi Tosas, que fez parte de uma das duas únicas expedições que escalou a dificílima Magic Line no K2.

Vez ou outra você encontra esse pessoal e muitos outros pela rua, ou escalando por aí, ou nos bares, ou na casa de amigo.

Etapa da Copa do Mundo de Escalada | Foto: Cissa Carvalho

Etapa da Copa do Mundo de Escalada | Foto: Cissa Carvalho

Conhecer e trocar ideia com essas pessoas, e mesmo com os não tão famosos, torna palpável os feitos e traz para realidade coisas que no Brasil a gente está acostumado a ver só em filme.

Todo mundo aqui é de carne e osso, e claro, apesar de europeus terem tido oportunidades muito melhores, essas pessoas também se dedicam bastante para estar no nível onde estão.

Essa dedicação se traduz muitas vezes em viver de maneira paupérrima, e com pouquíssimo dinheiro, para poder escalar o máximo possível.

Tem muito escalador que trabalha o inverno inteiro para só escalar no verão, assim como os esquiadores fazem o oposto.

Mas no final da contas, a grande maioria vive de salário em salário, com um eventual bico para cobrir alguma despesa.

Também é verdade,no entanto, que muita gente que mora e trabalha aqui não escala tanto quanto gostaria, afinal às vezes é difícil fazer coincidir o dia de folga com uma janela de bom tempo.

Multi pitch de verão em Brévent | Foto: Edson Vandeira

Multi pitch de verão em Brévent | Foto: Edson Vandeira

Por essas e outras muita gente forte nunca sai do vale para escalar em outras regiões (falta de dinheiro mas infinitas opções de qualidade por aqui).

E fato que aqui na Europa é possível e comum escolher viver para escalar, e estando aqui é difícil pensar em levar outro tipo de vida.

Chamonix vista de Flégere | Foto: Cissa Carvalho

Chamonix vista de Flégere | Foto: Cissa Carvalho

Estilo de vida utópico? Totalmente.

Mas vivenciar a escalada diariamente te faz não pensar no (burocrático) futuro.

Não pretendo passar o resto da vida aqui, mas neste momento da minha vida não preciso de luxo, e não tenho nada me prendendo a qualquer outro lugar, então vejo esta estadia como um privilégio e oportunidade única de me refinar como escaladora e alpinista, além de fazer parte de uma comunidade de montanha de tão alto nível.

No topo: Aproximando a Ponte Lachenal | Foto: Edson Vandeira

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