Quando se fala em peregrinações, grande parte das pessoas se lembram do Caminho de Santiago, um percurso que mistura trekking, religião, misticismo, tratamento psicológico e turismo. Embora seja de conhecimento geral, existem vários trajetos do Caminho de Santiago.
Desde a descoberta do suposto sepulcro do apóstolo de Jesus na Galícia, cada viajante pode fazer seu próprio caminho. Costuma-se dizer que o verdadeiro Caminho de Santiago é da porta da sua casa até Santiago de Compostela.
No ano de 1993, a Unesco incluiu o Caminho de Santiago na lista de patrimônios mundiais e decidiu conceder a distinção ao Caminho Francês, o mais transitado desde a Antiguidade. Inegavelmente foi um longo tempo para se consolidar a rota, desde que Gotescalco, arcebispo de Le Puy, que partiu da Aquitânia no ano 950 acompanhado de uma grande comitiva, até os dias de hoje.
Dois dos doze apóstolos de Jesus tinham o nome de Tiago. Um era o apóstolo Tiago, filho de Alfeu, e o outro era chamado de Tiago, filho de Zebedeu. Do primeiro não se sabe praticamente nada sobre sua história e biografia. Porém o segundo, conhecido como Tiago, o velho, é justamente por ele que o Caminho de Santiago existe.
O início
Hispânia, foi o nome dado pelos romanos à Península Ibérica. A conquista romana da região foi iniciada em 218 a.C. em Ampúrias e concluída quase 200 anos depois, com as guerras Cantábricas (29 a.C. a 19 a.C.). Ou seja, muito próximo ao nascimento de Cristo.
Ao longo de cerca de 700 anos a Hispânia fez parte do Império Romano. A administração romana manteve-se até 409, quando o império Romano entrou em colapso e foi confrontado com as invasões bárbaras da Península Ibérica, que foi uma série de migrações de vários povos distintos, exteriores ao Império Romano.
Para entender as peregrinações medievais a Santiago de Compostela, devemos partir da tradição que fala da obra evangelizadora de Santiago nas terras da Hispânia romana. Sabe-se que após a morte de Cristo, Tiago, filho de Zebedeu (citado nos Evangelhos como sendo o pai dos apóstolos de Cristo João e Tiago), inicialmente foi quem continuou a obra apostólica em Jerusalém.
Mais tarde, Tiago pôde embarcar para fora da região até chegar a algum porto da Andaluzia (região costa sul da Espanha). A região possuía comunicação comercial com a Palestina, da qual eram recebidos mármore, especiarias e objetos elaborados.
A missão evangelizadora de Tiago começaria no sul da Hispânia e depois se deslocaria para o norte, através das terras portuguesas, chegando a Iria Flavia, Galiza (comunidade autônoma no noroeste da Espanha). Frustrado ao ver que seu objetivo não foi cumprido, decidiu voltar a Jerusalém.
Para a sua volta a Jerusalém, o apóstolo Tiago foi para o leste da península Ibérica, para depois partir novamente a partir da costa mediterrânea espanhola. Ao chegar à Palestina e depois de desobedecer a proibição romana de pregar o cristianismo na região, foi decapitado a mando de Herodes Agripa, rei da Judeia de 41 até 44 d.C.
Os discípulos de Tiago, Atanásio e Teodoro, recolheram o corpo do apóstolo e o levaram secretamente em um barco para os lugares de sua pregação no norte da Espanha. Os dois desembarcaram em Ría de Arousa, na Galícia, no porto de Iria Flavia, e colocaram o barco em um rochedo (o qual da origem à Villa de Padrón, que hoje pertence ao Caminho Português) e foram pedir permissão para enterrar o corpo do apóstolo Tiago.
A área onde eles atracaram estava sob domínio do Reino Pagão da Rainha Lupa, que vivia na vila de Lupariou, muito perto de onde hoje conhecemos como Santiago de Compostela. A princípio resistente, uma onda de milagres atribuídos a Tiago acabou por convencer a Rainha Lupa de enterrá-lo na região.
A peregrinação na Idade Média
Nos séculos seguintes, a trilha da sepultura foi esquecida. No ano de 813 d.C., o eremita Pelayo viu, por muitos dias, uma “chuva de estrelas cadentes” em uma colina. A lenda diz que em uma noite o próprio apóstolo Santiago apareceu para Pelayo em um sonho e revelou que a localização das luzes indicava o local onde estava sua sepultura.
O abade foi ao local e removeu a terra que se acumulou por séculos e descobriu a sepultura. Pelayo então comunicou a descoberta ao bispo Teodomiro de Iria Flavia. Este comunica ao Rei Alfonso II das Astúrias, o casto, e é o monarca quem caminha para Santiago para verificar os fatos.
Foi assim que, historicamente falando, Rei Alfonso II se torna o primeiro peregrino de Oviedo a Santiago pisando no que é agora conhecido como Caminho Primitivo. Ao chegar, Rei Alfonso II verifica que o sepulcro encontrado é realmente do apóstolo e confirma oficialmente a veracidade da informação.
Foi então que é ordenada a construção de uma pequena igreja no lugar onde foi encontrada a tumba, por volta de 847 d.C. Ao longo dos séculos, um povoado começa a se construir e, anos mais tarde uma Catedral é construída. O povoado se torna a cidade que leva o nome de Santiago de Compostela. O nome Compostela é vindo do latim Campus Stellae (campo de estrelas).
A Ordem de Cluny nasceu em um momento delicado do século X, onde a própria Igreja Católica estava entregue ao materialismo. Com o objetivo de trazer novamente os homens à espiritualidade por meio de uma reforma monástica (Reformas cluníacas). O movimento começou na Abadia de Clúnia em 910 d.C. com o duque Guilherme I.
Crescendo em popularidade, logo ecoa o prestígio de Compostela e durante o século XI promove peregrinações a Santiago. Em troca, os reis cristãos faziam doações generosas aos seus mosteiros.
Ao longo do século XI, intensifica-se o afluxo de peregrinos e começa um trabalho de organização entre os reis para facilitar o trânsito das pessoas. Pontes e hospitais foram construídos nos pontos necessários. Uma rota principal começa a ser formada, assim como suas respectivas estações, a qual é conhecida hoje como “Caminho Francês”.
No ano de 1073, começa a construção do terceiro templo consecutivo na tumba do apóstolo, sob o mandato do Bispo Peláez. Será a grande catedral românica que conhecemos hoje. Segundo documentos da época era para ser um “magnífico templo de peregrinação românica”.
O apoio definitivo ao Caminho de Santiago como uma grande rota de peregrinação dos séculos XII e XIII é a concessão de Roma dos anos sagrados de Compostela, com a possibilidade de os peregrinos obterem indulgência plenária. Na doutrina católica, Indulgência é a remissão, total ou parcial, da pena temporal devida, para a justiça de Deus. Em outras palavras, realizar o caminho de Santiago poderia converter-se em um perdão de algum pecado.
Nesta época, em plena Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C), a decisão de fazer a peregrinação foi em geral uma decisão livre e pessoal para pedir alguma graça divina, realizar alguma escolha pessoal ou até mesmo uma busca de íntima e religiosa. Em muitos casos, o Caminho de Santiago também foi usado como punição imposta por um juiz ou como penitência para algum confessor por pecados “particularmente graves”. Os ricos poderiam enviar uma pessoa para fazer a peregrinação por conta própria.
Crescimento do Caminho de Santiago
A necessidade de serviços ao redor do Caminho de Santiago foi aumentada devido ao afluxo de peregrinos. Pouco a pouco, foi criada uma rede de apoio para quem caminhava até Santiago de Compostela, com igrejas, mosteiros, casas, hospícios, hospitais, casas de hóspedes, etc.
Vilas e cidades nasceram ao longo do Caminho e estradas e pontes foram construídas para dar suporte aos peregrinos. A proteção religiosa dos peregrinos contra os assaltos aos bandidos foi, durante muito tempo, de ordens religiosas diferentes: entre elas pela Ordem dos Templários (organização existiu durante cerca de dois séculos na Idade Média de 1118 a 1312).
Em 1668, o príncipe italiano Cosme de Médicis empreenderia uma das primeiras jornadas de peregrinação turística documentadas no Caminho de Santiago. Acompanhado de 40 pessoas, Cosme de Médicis visitou Santiago e seguiu por via marítima até as Ilhas Britânicas.
No século XVIII, começou um declínio gradual do Caminho de Santiago. A maioria das estruturas de hospedagem foram abandonadas e muitas outras mudaram de uso.
No ano de 1987, o Conselho da Europa declarou as estradas que conduzem a Santiago “Primeiro Itinerário Cultural Europeu”, graças ao seu papel de “impulsionador do desenvolvimento em seu caminho”. Esta declaração forneceu recursos financeiros para reformar adequadamente o caminho, reestruturar lugares e construir abrigos para abrigar peregrinos.
A recuperação do Caminho de Santiago começou nos anos 1980 do século XX. As setas amarelas que unificam os Caminhos de Santiago, e que se transformaram em seu ícone mais universal, começaram a ser pintadas na década de 1980, quando o Caminho de Santiago era um grande desconhecido e quase não havia estudos sobre essa tradição. A ideia das setas amarelas foi de Elías Valiña, padre de O Cebreiro, e Andrés Muñoz, presidente da Associação de Amigos do Caminho de Navarra,
Uma contribuição decisiva foi a visita do Papa João Paulo II a Santiago em 1989, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude. Na ocasião, meio milhão de jovens de todo o mundo foram a Santiago e foi a maior concentração de peregrinos já registrada até então.
Desde então, o fluxo de peregrinos tem aumentado gradualmente, mesmo nos meses de verão. Muitas vezes são criadas situações de superlotação nos abrigos existentes, apesar das estruturas temporárias adicionais organizadas pelos municípios, paróquias e associações.
No ano de 1993 A UNESCO declarou o Caminho Francês como Patrimônio Mundial. Hoje, o Caminho de Santiago é uma das grandes rotas de peregrinação. Embora existam várias motivações para tornar o Caminho de Santiago religioso e turístico, pode-se afirmar que se tornou um grande motor cultural e econômico da região do norte da Espanha.
Muita coisa mudou o modelo dos peregrinos desde o Rei Alfonso II, o casto. Atualmente podemos fazê-lo a pé, de bicicleta, ou a cavalo. O caminho de Santiago pode ser realizado tanto individualmente, quanto em grupos. Quem percorrer o Caminho de Santiago pode ganhar um certificado de chegada (chamado de Compostela), o qual é emitido pelo Escritório dos Peregrinos.
Somente no ano de 2018, mais de 300.000 peregrinos passaram pelo Caminho de Santiago. As rotas mais conhecidas para a peregrinação a Compostela são:
- Caminho Francês: Saint- Jean- Pied-de Port (França) a Santiago de Compostela – 775 km
- Caminho Aragonês: Samport (França) a Santiago de Compostela – 940 km
- Caminho Português: Lisboa (Portugal) a Santiago de Compostela – 634 km
- Caminho do Norte: Irún (Espanha) a Santiago de Compostela – 823 km
- Caminho Primitivo: Oviedo (Espanha) a Santiago de Compostela – 314 km
- Caminho Inglês: Ferrol (Espanha) a Santiago de Compostela – 120 km
- Caminho La Plata: Sevilla (Espanha) a Santiago de Compostela – 977 km
- Caminho Le Puy: Velay (França) a Santiago de Compostela – 1.518 km
- Caminho do Inverno: Ponferrada (Espanha) a Santiago de Compostela – 264 km
- Caminho Finisterre: Santiago de Compostela a Finisterre (Espanha) – 89 km
Livros
Com a popularização do Caminho de Santiago e seus vários caminhos Compostela, a partir da década de 1980, foram publicados uma infinidade de guias, romances, ensaios e tratados sobre o fenômeno. Mas, de uma forma ou de outra, todas as publicações bebem na mesma fonte: o estudo mais rigoroso e detalhado livro já feito sobre o tema.
O Livro “Las Peregrinaciones a Santiago de Compostela” (As peregrinações a Santiago de Compostela), é uma obra literária escrita por três estudiosos medievalistas de prestígio internacional: Luis Vázquez de Parga, José María Lacarra e Juan Uría Riu.
Publicada pela primeira vez em 1948, a obra contém três volumes que se transformou em fonte indispensável para o estudo das peregrinações no Caminho de Santiago.

Formado em Engenharia Civil e Ciências da Computação, começou a escalar em 2001 e escalou no Brasil, Áustria, EUA, Espanha, Argentina e Chile. Já viajou de mochilão pelo Brasil, EUA, Áustria, República Tcheca, República Eslovaca, Hungria, Eslovênia, Itália, Argentina, Chile, Espanha, Uruguai, Paraguai, Holanda, Alemanha, México e Canadá. Realizou o Caminho de Santiago, percorrendo seus 777 km em 28 dias. Em 2018 foi o único latino-americano a cobrir a estreia da escalada nos Jogos Olímpicos da Juventude e tornou-se o primeiro cronista esportivo sobre escalada do Jornal esportivo Lance! e Rádio Poliesportiva.