Acidentes, Escolhas e Liberdade na Montanha

No início da semana passada começaram a chegar por diversas mídias, grupos de mensagem e redes sociais notícias do desaparecimento dos escaladores brasileiros Leandro Ianotta e Fabricio Amaral. A dupla desapareceu durante uma tentativa de escalar a via “Franco-Argentina” no Fitz Roy, uma montanha de cerca de 3.400 metros na Patagônia argentina. Entre mensagens quebradas, relatos incompletos e notícias desmentidas, tínhamos pouca informação de fato sobre a dupla e detalhes do que poderia ter acontecido. Acidentes em vias técnicas de alta montanha têm particularidades cruéis, entre elas a dificuldade de se localizar e acessar o local exato onde os escaladores estão, ou poderiam estar.

Com escassez de informação e possibilidades de contato, os grupos de resgate acabaram tendo que depender de testemunhos de outros escaladores, análise de imagens precárias, lunetas ou voos de helicóptero. Tudo isso fica mais complicado ainda com condições climáticas desfavoráveis. Na Patagônia os resgates bem-sucedidos são extremamente raros.

Vias do Fitz Roy

A localização geográfica das montanhas que circundam a cidade de El Chaltén, entre elas o Maciço do Fitz Roy (que compreende também cerca de 12 montanhas e agulhas menores), traz implicações enormes sobre o clima que os escaladores encontram nessas empreitadas. As montanhas situam-se à beira do Campo de Gelo Patagônico Sul, o maior corpo de gelo do hemisfério sul fora do continente Antártico. A região simplesmente apresenta um dos sistemas mais instáveis de clima do mundo. Mesmo no verão patagônico, a época com as melhores e maiores janelas de bom tampo para escalada, é comum ter períodos de 10, ou mais, dias de tempo fechado, com tempestades que podem se formar repentinamente e se dissipar na mesma velocidade, ou se manter por dias com ventos fortíssimos e neve.

Em geral, temos mais dias de tempo ruim na temporada de escalada do que dias de tempo bom. A estrutura de previsão do tempo na Patagônia não se compara aos caríssimos sistemas de última geração, que encontramos em expedições comerciais a montanhas como o Monte Everest (8.848 m). A tragédia de 1996 contada por diversas publicações, entre elas “No Ar Rarefeito” de Jon Krakauer, mostrou a importância da previsão climática para estas expedições. Com clientes pagando de US$ 60 a 100 mil, as empresas tem capacidade para arcar com os custos elevados de sistemas e profissionais de ponta, analisando mapas climáticos 24 horas por dia passando informações em tempo real por satélite aos guias, que assim podem traçar a melhor estratégia para os seus clientes.

O mesmo, infelizmente, não acontece na Patagônia. Praticamente sem montanhismo comercial e um número muito menor de tentativas na temporada, os escaladores dependem de análises menos avançadas repassadas por Guarda Parques, ou outros escaladores, com um atraso muito maior entre uma previsão ser feita e a mesma chegar a ciência dos interessados.

Croqui Completo da via “Franco-Argentina”

O Fitz Roy (3.359 m) não tem vias fáceis de acesso, todas as suas faces possuem paredes verticais e não há uma “Via Normal”. Todos os jeitos de se alcançar o cume são extremamente técnicos e difíceis. Tanto em termos de escalada, quanto em termos de logística e planejamento. Mesmo a “Franco-Argentina”, que está entre as vias mais “acessíveis”, demanda pelo menos 10 enfiadas longas de escalada entre o 5º e o 7º grau, algumas poucas enfiadas de menor grau e mais 250 metros de neve e rocha. Sempre com uso intenso de proteções móveis e naturais. Isso sem contar na aproximação através da “Brecha dos Italianos”, travessia da La Silla, escaladas que envolvem rocha e gelo em uma crista afiada. Isso tudo somente para encostar na parede do Fitz onde começa de fato a via “Franco-Argentina”. A linha de rapel não é exatamente a mesma da subida e demanda algo em torno de 14 rapéis para se chegar a base. Depois de escalar e rapelar, finalmente voltar por um caminho de 20 quilômetros entre trilhas e glaciares para El Chaltén

A presença constante de fendas no granito que formam estas montanhas, apresenta uma oportunidade para escaladas de altíssimo nível mas também apresentam riscos bem maiores de se ter entalamento das cordas na descida à medida em que puxam as mesmas entre um rapel. Rapel este que demanda manobras por vezes arriscadas e demoradas. As paradas e proteções podem ser precárias, as vezes conjuntos velhos de cordeletes ao redor de um bico de pedra, exigindo abandono de equipamento da dupla. Simplesmente seguir a linha do rapel numa parede com as magnitudes das paredes do Fitz, sem desviar para um lado ou outro, saindo da linha principal, já é trabalho árduo com a melhor das condições climáticas.

O sucesso de qualquer tipo de escalada depende de tomadas de decisões e a capacidade de se adaptar a mudanças. Desde um simples boulder até as mais complicadas escaladas acima de 8.000 metros. O que varia muito é a quantidade de fatores que esse processo deve levar em consideração. Varia também o quão severo o erro neste processo pode ser. Em uma via esportiva no Rio de Janeiro, nossa tomada de decisão empreende basicamente fatores técnicos e físicos do escalador e da via com baixas implicações climáticas e consequências não muito severas em caso de erro (consigo escalar essa via com segurança? Quantas costuras vou precisar? As proteções estão em bom estado? Consigo abandonar caso não chegue até o final? Tenho equipamento e conhecimento suficiente? Se eu cair o que vai acontecer? Vai chover?).

Já em escaladas técnicas de alta montanha, as tomadas de decisão empreendem uma gama muito maior de fatores com consequências muito mais severas.

Na altitude os escaladores devem desenvolver uma estratégia de ataque considerando todos fatores possíveis que possam ser relevantes aquela escalada. Pensar em sistemas de vestimentas que funcionem em tempo bom e tempo ruim. Devem pensar em quais equipamentos levar, quantas peças para proteção dos lances carregar e o que deixar para trás, quanta comida levar, quanta água levar, se esta água congelar ou acabar se consegue produzir mais água a partir de gelo ou neve? Existe a possibilidade de avalanche? Caso o tempo feche se conseguirá progredir ou terá de se abrigar? Se existem pontos de bivaque na via? Se estão carregando equipamentos e suprimentos suficientes para esperar o mau tempo passar? Se a via pode ser abandonada pelo mesmo caminho que escalaram? Existe possibilidade de resgate?

Estas entre muitas outras perguntas e decisões não só devem ser revistas antes da escalada começar mas devem sempre ser repensadas e questionadas, sempre buscando antecipar ao invés de remediar. Qualquer queda tende a ser mais severa, uma alteração mesmo que pequena de vento e temperatura pode fazer com que uma escalada de média dificuldade se torne dificílima se o escalador tiver de usar luvas. A presença de gelo pode deixar muito mais arriscado um trecho que outrora seco seria seguro, e pode preencher fendas e exigir o uso de equipamentos e técnicas diferentes das planejadas pelos escaladores, como o uso de piquetas, crampons e técnicas artificias de progressão. E assim por diante.

A combinação de isolamento, alto grau de dificuldade e instabilidade climática não só faz com que todas escaladas nessa região sejam consideradas empreendimentos sérios e arriscados mas demandam dos escaladores uma logística de planejamento e tomadas de decisão extremamente apurado e sem muita margem de erro. Estas escaladas são planejadas em relação a janelas de bom tempo e a segurança depende fundamentalmente do tempo de exposição dos escaladores ao clima. O grande problema desta conta é que quanto mais preparados e equipados os escaladores estejam para aguentar mudanças de qualquer e aumentar a segurança da escalada, mais pesados e lentos eles se tornam.

O desenvolvimento de técnicas novas e preparo físico mais apurado, equipamentos mais modernos e leves, maior conhecimento das vias e melhor previsão climática tem possibilitado a escalada de montanhas extremamente complicadas, que outrora demandavam semanas de trabalho, de serem escaladas em dias ou horas. No entanto tal desenvolvimento aumentou muito a exposição dos escaladores e vemos muitos acidentes ocorrendo por conta disto. O montanhismo patagônico tem se caracterizado por escaladas rápidas e arriscadas em meio a curtas janelas de bom tempo.

Eu nunca conheci o Leandro Ianotta pessoalmente, mas acompanhava e era fã incondicional de seus feitos e do trabalho que fazia como guia na Cachoeira do Tabuleiro. Já o Fabrício Amaral, eu havia cruzado algumas vezes na cidade de Huaraz enquanto nos preparávamos para escaladas distintas na Cordillera Blanca ano passado e batemos papo em algumas ocasiões, falando de experiências, das condições das montanhas e de planos. Ambos era escaladores absurdamente fortes e excepcionais, com muitas vias extremamente duras no currículo e já veteranos de temporadas patagônicas com diversas escaladas e tentativas nas agulhas ao redor de El Chaltén.

Existe uma grande necessidade nos dias de hoje de apontar culpados, ou erros ou acontecimentos definitivos quando as coisas não dão certo. Ouvimos opiniões que são elevadas a fatos como “estavam mal equipados”, “não tinham experiência suficiente”. Isso tudo é bobagem e especulação. No montanhismo de ponta atual simplesmente não existem fórmulas certas para se alcançar cumes como o do Fitz Roy. Tudo se torna relativo nessa gama enorme de possibilidades, escolhas e consequências. Cada dupla de escaladores vai desenvolver a sua própria estratégia baseada nessa serie enorme de fatores que vai desde autoconhecimento, clima, logística, preparo físico, experiência e muitas outras coisas, até sorte.

Se olharmos para a história do montanhismo veremos exemplos inacreditáveis onde feitos dificílimos foram bem-sucedidos nas mais adversas situações. Veremos também histórias tristes de escaladores absurdamente competentes e experientes que se acidentaram e acabaram ficando na montanha. Nada é garantia de sucesso. Se olharmos para acidentes que ocorreram ao longo dos anos vemos com clareza que escaladores raramente morrem por conta de um único fator ou acontecimento; em geral vemos uma serie de decisões e acontecimentos que perante a realidade encontrada se tornam catastróficas.

A análise de acidentes é fundamental no nosso meio. Publicações como a “Acidents in North American Mountaineering” do American Alpine Club anualmente revisitam friamente ocorrências e buscam não só compreender o que aconteceu mas fundamentalmente buscam informar e dar mais ferramentas para escaladores em futuras empreitadas. Estas análises no entanto dependem da existência de fatos e não de especulações. Será de grande importância em um momento oportuno buscar todos os fatos possíveis deste acidente com os brasileiros, buscar entender como foi o processo de tomada de decisão deles, o que levaram, o que deixaram de levar, que horas saíram e que horas pretendiam voltar, se houve de fato um acidente, uma queda na escalada, uma rocha ou bloco de gelo que pode ter atingido algum deles, uma falha de equipamento, até onde chegaram na tentativa, se tentaram baixar ou se simplesmente se abrigaram para escapar do mau tempo, se tinham localizadores ou instrumentos de comunicação, entre muitas outras coisas.

Infelizmente muitas dessas perguntas só poderão ser respondidas com uma repetição da via por outros escaladores ainda nesta temporada e que estejam dispostos a colher informações do ocorrido. Com fatos na mão e debates sem sensacionalismo será possível ajudar e muito futuros escaladores que busquem não só o Fitz Roy mas qualquer montanha técnica de altitude, não buscando necessariamente erros mas o conjunto de escolhas e acontecimentos que levaram ao desfecho final. Agora não é o momento para se tirar conclusões.

Não me recordo ao certo o contexto exato nem o ano em que pela primeira vez eu vi um vídeo onde o Leandro Ianotta escalava a via “Sinos de Aldebaran” (8c brasileiro) na Serra do Cipó. Não sei se estava procurando informações sobre a via “Learning to Fly”, que pretendia escalar na Pedra do Baú, ou se estava procurando clipes do Pink Floyd. Esses algoritmos do YouTube que misturam os seus interesses com a busca que está fazendo magicamente me fizeram aparecer este vídeo, onde vi um cara magrinho escalando uma via esportiva duríssima e também uma das mais bonitas do mundo num final de tarde indescritível no Cipó.

Na medida que escalava, e escalava com uma leveza, uma precisão, com controle absoluto de todos movimentos, musicas seguidas do Pink Floyd iam tocando no fundo, entre elas a bela “Learning to Fly”. Ao final víamos ele sorrindo cansado, feliz no topo. No final do ano passado o mesmo “Mr Bean” (apelido carinhoso dado pela sua semelhança com o humorista inglês) encarou a mesma “Sinos de Aldebaram” mas desta vez em solo, sem corda ou cadeirinha carregando apenas um saquinho de magnésio.

Por vezes os montanhistas são vistos como malucos, como pessoas viciadas em risco e que não medem as consequências dos seus atos. Todos os dias escolhas são feitas, desde a hora que acordamos até a hora que vamos dormir. Estas escolhas por vezes podem ter consequências leves ou podem acarretar grandes mudanças nas nossas vidas. Nós montanhistas vivemos isso da mesma forma. Somos almas irrequietas por natureza. Escolhemos. Escolhemos o estilo da nossa escalada, a rota que vamos escalar, escolhemos ir sozinhos ou com parceiros que vamos dividir a corda, e escolhemos as pessoas que irão ficar para trás torcendo por nós. Escolhemos o que faz sentido e que nos faz feliz na vida.

Nenhum escalador vai para a montanha para morrer, ele vai para montanha para viver e ser livre. A musica “Learning to Fly” fala exatamente disso, de escolher aprender a voar, de ousar sair do chão, de perceber que as coisas as vezes podem não estar dando certo, de tentar sair dessa e de encontrar a vida dessa forma. Seja nas montanhas ou na cidade estamos todos na mesma, tentando, buscando algo maior para amanhã, e quanto mais tentamos mais escolhas teremos de fazer e maior será a possibilidade de errar. Isso é liberdade e escalar é a forma que alguns encontraram para se expressar.

O Bean e o Amaral, assim como muitos outros como Bernardo, Vitor, Mozart, Othon e Alexandre escolheram, se prepararam, ousaram e partiram, em algum lugar algo deu errado. Devem ser celebrados para sempre e onde erraram ou se erraram não deve passar de especulação.

Está acontecendo uma vaquinha online para ajudar os familiares do Mr Bean a irem para El Chaltén fazer uma despedida na montanha. Participem!

https://www.vakinha.com.br

There are 13 comments

  1. Marcelo Carvalho

    Sou cunhado do Leandro(Mr. Bean). Vejo o que minha esposa, irmã dele, e toda família vem sofrendo com essa agonia que não acaba. Desde que esse pesadelo começou foi a primeira matéria que vi, que relata bem os acontecimentos.
    Penso, agora sofrendo pela perda do meu cunhado, que algumas regras de segurança deveriam ser obrigatórias. Como rádio, sinalizadores, gps, etc.
    O que nos resta é apoiar qualquer iniciativa, que não faça uma familia sofrer o que estamos sofrendo. Parabéns pela matéria. Consciência pra vocês e contem com a gente pro que precisar.

  2. Mariza Oliveira Lara

    Texto claro!! Narrativa deliciosamente bem elaborada. Ao Lê lo proporciona uma verdadeira viagem neste mundo, novo para mim, do montanhismo. Leandro, meu sobrinho, mesmo se querer ou saber, está levantando muitas questões que certamente contribuirão para minimisar os riscos neste desafiante esporte! Próprio dele!? muito obrigado Fernando Abdalla.

  3. Carolina Duarte

    Texto técnico mas extremamente elucidador, você tem muito conhecimento e sensibilidade no que escreve.
    Sou amiga de infância do Amaral e a tristeza é grande! O que conforta a alma é que ele estava fazendo o que mais amava no mundo além disso, há um grande alívio ao ler um texto como o seu!
    Que Deus te abençõe, um abraço de irmã
    Carolina

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