A história de uma grande polêmica: A “via do compressor”

Tecnicamente falando, uma polêmica é a prática de provocar disputas e causar controvérsias em diversos campos discursivos, como religião, filosofia, política, arte, literatura e, por que não, montanhismo. Ao contrário que as pessoas acreditam, uma polêmica é algo necessário para o avanço do conhecimento nos campos citados.

Geralmente quem é mais conservador com costumes e culturalmente sedentário possui ojeriza de qualquer polêmica que o faça pensar e refletir. Para estas pessoas, que são conhecidas como reativas (rege sem pensar), é mais confortável ofender, praguejar e, como sempre, acusar o veículo. Para estas pessoas reativas, pensar e refletir não faz parte do cotidiano.

Importante salientar que polêmica não é sinônimo de brigas ou discórdia hostil. Cada polêmica é importante para a reflexão de cada indivíduo a respeito do mundo que o cerca. Lembrando que a reflexão é a concentração que o indivíduo faz sobre seus próprios conhecimentos para atingir uma maturidade.

Talvez o mais atento (a) leitor (a) esteja se perguntando: por que devo parar para refletir sobre as experiências que vivenciei ou sobre as polêmicas que chegam a você? A resposta é simples: para que não acabe entrando no piloto automático e comece a agir sem refletir, sem considerar as consequências, as suas prioridades e valores.

O montanhismo, que é uma área em que os egos engrandecidos de praticantes falem sempre mais alto que a razão, sempre existiu polêmicas. A principal delas, que demonstra como os os montanhistas se comportam quando se irritam com os haters e bullying dentro da comunidade, foi protagonizada por Cesare Maestri em 1970.

Quem foi Cesare Maestri

Cesare Maestri foi um montanhista e escritor italiano, que nas Dolomitas se destacou como excelente escalador. Nascido em Trento (Itália) em 1929, Maestri, perdeu a mãe aos 7 anos.

Seu pai, Toni Maestri, era um ator errante, mas no final da Primeira Guerra Mundial acabou trabalhando como funcionário da administração pública.

Em 1943, após a ocupação alemã do norte da Itália, Toni Maestri foi condenado à morte por “atividade anti-austríaca” e Toni e seu filho Cesare fugiram para Ferrara. Ambos retornaram a Trento quando a polícia local recebeu ordens para prender Toni Maestri.

Na cidade de Trento, Cesare Maestri juntou-se a um grupo de partidários comunistas, com quem participou na guerra de libertação da Itália. Após a guerra, Cesare foi enviado por seu pai a Roma para estudar história da arte. Lá ele participou novamente da vida do Partido Comunista Italiano e depois de dois anos voltou a Trento.

Cesare Maestri, procurando uma forma de canalizar o estresse decorrente da experiência da guerra, começou a escalar e desde então se dedicou quase exclusivamente a esta atividade. Maestri repetiu muitas vias famosas da região, muitas vezes escalando-as em solitário e em livre (estilo pouco usado à época).

O italiano também conquistou muitas novas vias das mais difíceis, pelas quais foi apelidado de “Aranha das Dolomitas”. Cesare se tornou guia alpino em 1952. Seus solos notáveis ​​incluem a rota “Solleder na Civetta”, a “Solda-Conforto” na Marmolada e a crista sudoeste do Matterhorn no inverno.

Cerro Torre

Na década de 1950, as montanhas da Patagônia começaram a chamar a atenção de famosos montanhistas de todo o mundo. Uma delas em especial, que desafiava e despertava muitas paixões a respeito de sua dificuldade, era Cerro Torre (3.128 m) uma das montanhas mais espetaculares dos campos de gelo do sul da Patagônia.

A escalada do Cerro Torre foi considerada impossível não só por causa das paredes verticais de granito, mas também pelo tempo instável da Patagônia. Sua primeira ascensão é posterior ao Monte Everest (8.848 m), conquistado em 1954.

Em 1959 quando o experiente montanhista italiano Cesare Maestri anunciou que iria tentar a primeira escalada completa ao Cerro Torre, a comunidade de escalada ficou em polvorosa. Como explicado, era o pico dos sonhos da Patagônia Argentina e possuidor de uma das paredes mais difíceis e exigentes do mundo.

A escalada de Maestri seria malsucedida e acabou tornando-se até mesmo trágica. Durante a descida, seu companheiro, Toni Egger, morreu em uma avalanche. Maestri sobreviveu milagrosamente, conseguindo chegar sozinho ao pé da parede, onde exausto permaneceu imóvel até que seu amigo e companheiro de expedição, Cesare Fava, o resgatou alguns dias depois.

A partir de então foi quando a comunidade de escalada mostrou seu poder de bullying com Cesare Maestri. Montanhistas colocaram em dúvida a escalada do italiano e chegaram a ridicularizá-lo dentro da comunidade. Seria o equivalente, em dias de hoje, ao linchamento virtual que é tão comum em grupos de WhatsApp.

A extrema dificuldade do percurso escolhido por Maestri e Egger, aliada à inexistência de imagens ou indícios do cume, fez com que outros montanhistas experientes como Reinhold Messner, o primeiro homem a conquistar os 14.8 mil e protagonista do primeiro cume sem oxigênio no Monte Everest, afirmou e defendeu publicamente que tal ascensão não era possível.

Entre os que duvidam estão muitos montanhistas conhecidos, incluindo Carlo Mauri, que não conseguiu escalar a montanha em 1958 e em 1970, Reinhold Messner, e Ermanno Salvaterra. A crítica também foi feita pelo montanhista e escritor britânico Ken Wilson, editor da Mountain.

Depois do bullying

Com sua honra questionada e com uma carreira de sucessos sendo nublada pela sombra escura do Cerro Torre, em 1970 ele decidiu retornar. Um detalhe que mudou a história da montanha poucos perceberam: o patrocínio para realizar a expedição veio de uma empresa norte-americana Atlas Copco, um grande fabricante de compressores de ar.

Desta vez equipado com uma furadeira compressora de mais de 80 quilos. O plano era costurar uma escada de parabolts de mais de 400 metros, a qual tornaria possível uma subida simples.

A expedição saiu da Europa contando com um compressor de ar acoplado a uma furadeira, especialmente desenvolvida pela empresa para a conquista da via. Cesar Maestri esperava-se abrir sem dificuldade os furos para colocação dos parabolts necessários à escalada.

Todo o processo seria, ao menos em teoria, mais rápido, um detalhe fundamental para uma escalada no instável tempo da Patagônia. A utilização do compressor gerou ainda mais polêmicas no mundo do montanhismo. Maestri, que já estava cansado do “mimimi” que havia no esporte à época, pouco se importou.

Maestri e a equipe iniciaram a conquista de uma nova via, já no inverno de 1970. De acordo com o montanhista esta seria muito mais segura e com predominância de escalada em rocha. O ataque ao cume seria feito pela face leste do Cerro Torre.

A via não foi concluída no inverno e toda a expedição voltou no verão de 1970/1971 e a concluiu arrastando os 75 kg de compressor. O compressor foi levado desmontado em três partes, sendo que cada uma na mochila de um escalador da expedição.

Após conquistada a via, Maestri deixou o compressor pendurado na parede próximo ao final. Desde então, cada escalador que passa por lá retira uma peça como lembrança.

Demorou mais de 7 anos até que os norte-americanos Dave Carman, John Bragg e Jay Wilson fizeram a primeira ascensão em verdadeiro estilo alpino ao Cerro Torre (embora não fosse por meio da via do Compressor). Os primeiros a completar a mesma via foram as lendas do Yosemite Jim Bridwell e Steve Brewer, tenham usado técnicas de escalada artificial para completar parte da subida.

O desrespeito dos norte-americanos à comunidade

A instalação do compressor gerou polêmica e muita discussão na comunidade de montanha. Parte dos detratores de Cesar Maestri aumentaram o tom das críticas. O italiano pouco se declarou em relação a isso

Anos mais tarde, em 2007, foi convocada uma reunião em El Chaltén, município ao qual pertence Cerro Torre. Cerca de 40 personalidades do mundo do montanhismo foram mencionadas em nome de países como Espanha, Estados Unidos, Alemanha ou Suíça, além de uma infinidade de países sul-americanos como Venezuela, Argentina e Brasil.

Sobre a mesa uma única pergunta: debater se uma equipe formada por Josh Wharton e Zach Martin iria até a parede para eliminar a longa fila de parabolts colocada pela equipe de Maestri. Na ocasião, 30 dos 40 convocados votaram pela sua continuidade das peças na parede.

Porém, mesmo estabelecido pela comunidade, dois escaladores norte-americanos se sentiram empoderados para passar por cima dela. O norte-americano Hayden Kennedy e o canadense Jason Kruk, decidiram por conta própria retirar os grampos de Cesari Maestri, desrespeitando a ética local da região, apagando toda a via que o italiano abriu quatro décadas antes.

Ambos afirmaram “ter escalado a rota do compressor em bom estilo alpino”, embora não em freestyle e como ficou conhecido mais tarde, com a ajuda da colocação de cinco novos parafusos, embora evitando todos os usados ​​por Maestri. Posteriormente ver-se-ia que não ascenderam pela verdadeira rota do Compressor, mas que utilizaram variantes e brechas.

Quando a comunidade de escaladores que estavam em El Chaltén ficou sabendo do ocorrido, Hayden Kennedy e Jason Kruk tiveram de se esconder em um locutório para se esconder de um suposto linchamento. Protegidos por Rolando Garibotti, e posteriormente escoltados pela polícia, tiveram de ser retirados rapidamente de El Chaltén e voltar a seus países. Algumas queixas na polícia foram realizadas, porém sem grandes consequências jurídicas para os dois.

Jason Jruk anunciou uma ida a El Chaltén anos mais tarde, mas foi considerado Persona Non Grata pela cidade. Após o anúncio, que foi difundido rapidamente pela internet, o canadense acabou mudando de ideia e cancelou sua viagem. Inimigos históricos de Cesari Maestri faziam parte do Piolet D’Or, tentaram indicar a Kennedy e Kruk para o prêmio.

Pela falta total e irrestrita de ética na escalada, além de um desrespeito sem precedentes à população de escaladores de El Chaltén, houve um grande mal-estar entre os jurados e patrocinadores do prêmio. A confusão foi tanta que naquele ano, não houve premiação.

David Lama e o Cerro Torre

Também em 2012, David Lama, um dos melhores montanhistas da história, compartilhou tentativas com Kennedy e Kruk. Poucos dias após o cume por eles alcançado, David Lama completaria a primeira subida em verdadeiro estilo livre e repetindo a ‘via do Compressor’ do início ao fim, mas sem instalar ou usar qualquer um dos produtos químicos na parede.

Porém, a ascensão não foi livre de polêmica. O jovem austríaco decidiu colocar mais de 40 novos parabolts na montanha, nos poucos trechos onde o italiano não havia inserido nenhum. Ele não os usaria para subir nem estariam nos trechos críticos do percurso.

Lama os colocou alguns metros à esquerda com o único propósito de proteger e ancorar o equipamento de gravação que o acompanhava. Como as críticas não demoraram a chegar, o próprio David se desculpou publicamente alguns meses depois.

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