A história da polêmica via "Biographie" que foi rebatizada para "Realization"

Umas das polêmicas mais antigas da escalada esportiva é a “mudança” do nome “Biographie” para “Realization” do primeiro 9a+ francês do mundo.

Polêmica é a prática de provocar disputas e causar controvérsias em diversos campos discursivos. A escalada e montanhismo não está livre desse tipo de discussão inútil a respeito de um tema que, à luz da razão, não possui muita importância.

Culturalmente o povo latino (mais particularmente o brasileiro) possui uma aversão acentuada a respeito de polêmicas. Há um bom tempo que no século XXI, toda e qualquer polêmica começou a incomodar quem possui um determinado status quo. Assim, algumas ideias e comportamentos deixaram de serem discutidos e analisados.

Com o tempo, criar polêmica passou a ser sinônimo de ofensas a outra pessoa. Este não é o caso da polêmica no esporte. No caso da escalada, o nome de determinadas vias (assim como o seu grau de dificuldade) são sempre motivos de polêmicas entre os praticantes do esporte.

Era uma vez em Céüse

Céüse é uma montanha nos Hautes-Alpes departamentais da França, de altura de 2.016 metros. Está situada nos territórios das comunas de Manteyer, Pelleautier e Châteauneuf-d’Oze. Uma falésia calcária da região é o lar de um dos locais de escalada mais importantes da França.

No ano de 1989, Jean-Christophe Lafaille, renomado escalador e montanhista francês vislumbrou uma linha na parede da falésia. A partir disso, Lafaille grampeou a via (com chapeletas) e, quando terminou de grampeá-la em 1990, a batizou de “Biographie”. A via possuía 40 metros de comprimento e uma inclinação negativa de 30°.

Completamente natural (sem uma alça de corte), pode ser dividida em uma primeira parte de 8c+ francês (11b brasileiro) e uma segunda parte em 8b+ francês (com um crux de boulder cotado em V9). Ao todo, a via exige 60 movimentos.

A primeira parte de 8c+ francês foi encadenada em 1996 por Arnaud Petit (vencedor no mesmo ano do mundial de escalada), que acrescentou uma ancoragem de parada no meio do percurso. Com o passar dos anos, a via ganhou a fama de mito. Houve quem a comparou à lenda Arturiana de Excalibur.

Por volta de 2007, as correntes da parada que marcavam o percurso que Arnaud Petit escalou foram retiradas da parede.

Um jovem chamado Chris Sharma

No final dos anos 1990, a escalada em rocha era muito popular nos EUA e, após suas muitas ascensões, Chris Sharma tornou-se o escalador da mídia. A partir de 1998, ele foi regularmente seguido em suas escaladas por Brett e Josh Lowell, diretores e fundadores da extinta Big UP Productions (atualmente a empresa foi comprada pela Sender Films).

Sharma presente em muitas produções da Big UP, como a série de filmes Dosage , Free Hueco e Pilgrimage. Nesse mesmo ano, ele criou a fundação Sharmafund, uma instituição de caridade que tenta apresentar a escalada a crianças carentes.

Como parte de seu modelo de negócio como escalador, Chris Sharma e a equipe da Big UP decidiu fazer a primeira ascensão da Biographie, via que começou a trabalhar 1997. No auge de sua forma física, em 18 de julho de 2001, Sharma concluiu a ascensão da via, que geralmente é considerado o primeiro 9a+ francês do mundo. Entretanto, Chris Sharma ‘rebatizou’ a via como “Realization”.

A decisão de Chris Sarma possuía “justificativa” de que nos EUA a tradição é que quem realiza a primeira ascensão é quem dá nome às vias. Na França, assim como quase que no mundo inteiro, é o conquistador. Em outras palavras: Um norte-americano praticou um costume de seu país em um território francês.

Este foi o principal motivo que criou-se polêmica a respeito da escalada. Para deixar a situação mais delicada, a imprensa norte-americana, como se fizesse para provocar, anunciou largamente como “Realization”. O “novo” nome foi estampado em revistas, sites de internet e, inclusive, no próprio filme da Big UP.

Anos mais tarde, em 2010, o norte-americano explicou em uma entrevista ao site britânico UKCimbing:

Chamei esse caminho de “Realization” porque a primeira parte, “Biographie”, terminava no meio e eu queria diferenciar os dois. Os franceses ficaram chateados quando mudei o nome.

Depois de ter conversado com alguns amigos franceses, entendi a história da via e a tradição na França de deixar para o conquistador o cuidado de batizar seu caminho. Então eu disse a eles que não precisava me preocupar e iria manter o nome da biografia .

Na maioria das vezes, durante minhas palestras, falo sobre a via com o nome de “Biographie”. Acho que não ficou claro por causa desse relé intermediário e não queria desacreditar essa primeira parte ou usar o mesmo nome.

Pessoalmente, acho que as pessoas podem chamar a via do que quiserem. Batizar é só diversão. A perfeição do caminho fala por si. Este pedaço de pedra estava lá muito antes de nós, então discutir sobre o nome é um pouco ridículo.

Na época, não havia nenhuma via com cotação acima de 9a francês até então. Por isso foi rapidamente estimada em 9a+ pela imprensa especializada em escalada, tornando-a a primeiro desse nível, e a mais difícil do mundo fora do polêmico “Akira”.(anunciado 9b francês em 1995 e nunca repetido).

A via somente foi repetida novamente três anos depois por Sylvain Millet. Ao todo, somente 16 escaladores até hoje conseguiram encadenar a via.