A cachuera e o Matuto
Deu dó de vê aquela bitelona morreno de sede
Nem me atinei que fosse uma cachuera
Pensei que era só uma parede.
O silêncio que a bichinha fazia era ensurdecedô
Nem um barulhim de correnteza, nada
Paricia velório do interiô
Pensei em chorá por riba dela
Mas não sei se isso ia adiantá
Se adiantasse chorava treis sol e treis lua
Só pra mode ela se acontentá
Lhe sobrô só um restim de água
De longe quase não dava pra enxergá
E com esse poquim que restô
A danada ainda nos refrescô
Sem nadica de nada nos cobrá
Já roguei pro hómi lá do céu
Que dela tenha compaixão
E que do cantin do seu zoio
Deixe uma lágrima caí aqui no chão
E com essa gotinha milagrosa o chão vai se encharcá
O povo todo vai ser salvo de novo
E a cachuera nunca mais vai se aperriá.
Um simples poema amador, apenas palavras soltas de um apaixonado pela natureza, como seriam as palavras de um pai lamentando a dor da prole.
Espero que com elas consiga transmitir um pouco do que senti.
Algo precisa ser feito
Quem me conhece sabe: todo fim de ano me dedico um pouco mais às montanhas, o grande amor da minha vida. Então viajo por aí com alguns amigos que partilham do mesmo afeto que tenho por elas.
Dentre os destinos dos quase seis mil km que percorremos, de 24 de dezembro a 10 de janeiro, estava a Chapada dos Veadeiros, em Goiás.
E foi lá que conhecemos o senhor Graciliano, figura singular, responsável por receber, há anos, pessoas de todo Brasil e do mundo, que vão até a Chapada para conhecer belezas pitorescas como a Cachoeira do Abismo, o Salto de 120 e a cachoeira do Garimpão, juntamente com toda paisagem surreal que o serrado Goiano proporciona.
As palavras que usei no poema acima não são minhas, tomei-as emprestadas do Sr. Graciliano e de tantos outros matutos que vivem junto à natureza de uma forma tão próxima e intensa que parecem poder se comunicar diretamente com ela.
O Sr. Graciliano, assim como todo bom caipira que já encontramos pelo meio do mato em nossa incessante procura por montanhas, traz um jeito peculiar de falar, bem como a pele desgastada pelo sol, aparentando quase sempre mais idade do que verdadeiramente tem.
Pessoas menos sensíveis à natureza humana diriam que eles falam errado; já outro grupo, no qual me incluo, acredita que eles reinventam as palavras.
O cantor e compositor Zé Geraldo que, assim como eu, nasceu lá nas Minas Gerais, às margens do recém-assassinado Rio Doce, anunciou certa vez, numa de suas canções, que os matutos, roceiros ou cafuçus “na hora do amor não fazem um cafuné, pois a mão calejada poderia arranhar a mulher.”
Conversando ali com o Sr. Graciliano pude observar que suas palavras além de destoarem daquilo que arrogantemente chamamos de português coloquial correto, pareciam também lhe arranhar a garganta, quando ele nos relatou em tom de desabafo, já com a voz embargada e os olhos na iminência de marejar, que, tendo nascido e crescido ali, em 59 anos, nunca tinha visto nem imaginado ver tal cena ,a cachoeira do Abismo sem uma gota d’água sequer escorrendo por sua parede.
- Aristóteles já previa
Numa citação feita por volta de 350 a.C. O filósofo profetizou:
“O homem pode fazer adoecer a natureza porque, agindo sobre ela, poderá impedi-la de cumprir com excelência as finalidades que ela, sem o homem, cumpriria com facilidade.”
Para reflexão
Como uma cachoeira se transforma numa parede?
Ou como um rio se torna pura lama, sem vida?
Haverá alguma forma de agir sobre a natureza sem adoecê-la?
Amém.
“Estamos só no fim do começo, não estamos no começo do fim ainda.“
– Winston Churchill
Mini Glossário da linguagem do Interior
- Acotenta – Contentar, ficar satisfeito, se alegrar
- Aperria – Aperrear, aborrecer, atormentar
- Atinei – Acertei, adivinhei, notei
- Bitelona – Grande, vistosa, alta
- Cafuçu – Quem vive no mato, sertanejo, caipira
- Homi – homem, senhor, cidadão
- Matuto – Quem vive no mato, sertanejo, caipira
- Mode – Fazer com que, para que
- Nadica – Nem um pouco, absolutamente nada
- Riba – Acima, por sobre, la do alto
- Roguei – Implorei, insisti, supliquei
- Treis lua – Três luas, três noites
- Treis sol – Três sois, três dias
- Zoio – olho
Rui Paulo é escalador, formado em educação física e trabalha como Personal trainer na região metropolitana da cidade de São Paulo
Muito bom!