Sozinha em uma Kombi: Constatações assombrosas de uma escaladora pela América do Sul

Por Natalia Giavelli

Não posso me lembrar exatamente quando foi que nasceu em mim, a ideia de viajar de Kombi. Acredito que sonhava até mesmo antes de ser escaladora e querer viajar pelo mundo escalando. Era estes sonhos que possuímos uma vez, ou outra, ao longo dos anos, até que um dia já não sabia mais se era um sonho ou uma lembrança. Algo que já tinha passado. Sentia como se tivesse estado na minha história, que iria ser assim.

Comprei uma Kombi brasileira, do ano de 1987 no dia 27 de janeiro de 2018, sem saber nada de mecânica. Fiz uma troca de óleo, comprei um chuveiro solar, coloquei um crashpad, equipamento de escalda esportiva, tradicional e gelo, além de outros para montanhismo, em cima do bagageiro dois dias depois que tinha comprado. Logo já me encontrava a caminho de Piedra Parada, na Argentina.

Para escalar. Sozinha.

Foto: Natalia Giavelli

Queria conhecer lugares no sul do Chile e Argentina, os quais nunca tinha escalado antes.

Tinha passado várias temporadas apaixonada por El Chaltén, portanto a ideia era ir a qualquer lugar, menos onde já tivesse ido antes.

El Bolsón

Dirigi pela Ruta 5 de Chile, à velocidade da paisagem. Entrei a Temuco para comprar e a Kombi apresentava alguns defeitos. A primeira oficina que encontrei era de um argentino de Neuquén, com quem compartilhamos um mate, limpamos equipamento mecânico e, na hora do almoço, já estava de novo no rumo do sul da América. Cheuei a Ososrno nesta mesma tarde e dormi ao lado do Lago Puyehue. Logo de manhã cruzei a fronteira rumo a Bariloche. Logo que cruzei o lago Gutierrez, a segunda marca da Kombi não entrava mais. Desta maneira cheguei a El Bolsón, somente com primeira, terceira e quarta marchas (além da ré, claro).

Enquanto raciocinava todas as possíveis soluções., além da situação a qual me encontrava, me lembrei de uma frase que saiu da minha boca uma semana antes a amigos e a meu pai. Eles argumentavam que estava louca, por ter comprado uma Kombi para ir viajar sozinha sem saber nada de mecânica. Eu, na ocasião, tinha respondido “Então! Prefiro estar com problemas em El Bolsón que em Santiago do Chile, sentada sem fazer nada”.

Foto: Natalia Giavelli

Fiquei em El Bolsón dois dias e conheci a três mecânicos da cidade. Fiquei no Rio Azul e pesquisei sobre a possibilidade de pedir peças de uma caixa de câmbio de kombi de Bariloche, Buenos Aires, Osorno e Santiago. Como estava chegando um final de semana prolongado, decidi ir por uns dois dias até Lago Puelo, para meditar sobre a minha decisão.

Saí para correr pelos bosques, nadei no lago, pratiquei yoga e naveguei até a fronteira com o Chile, onde testemunhei o nascimento das cores do Rio Puelo. Até que uma manhã, enquanto dirigia pela cidade, tive uma intuição e engatei a segunda. E ela entrou! Tomei isso como um sinal do Universo, neste momento dobrei na primeira esquina rumo ao sul, para carregar gasolina no primeiro vilarejo próximo chamado “El Hoyo”, decidida que tinha que ir até Piedra Parada.

Piedra Parada

Foto: Natalia Giavelli

Logo ao final do dia cheguei esgotada até Piedra Parada. Estacionei ao lado do rio que depois conheci como El Calamar. Comi uns capatis e fui dormir. No outro dia as 7:00 da manhã já estava tomando café e organizando o equipamento. Cruzando o rio, por volta das 8:00 da manhã, escuto uma pessoa gritar: “Ei! Vai escalar?”.

Desta maneira conheci a primeira companhia de escalada e amigo que a Buitrera me presenteou. Fiquei algumas semanas escalando muito, sem repetir muitas vias de escalada, pois queria escalar de maneira variada. Subi meu grau de escalada à vista! Até igualar meu grau de vias trabalhadas! Não podia acreditar em tudo o que tinha aprendido.

Estacionada ao lado do Rio Chubut, a vida era simples. Passei os dias aproveitando o que de melhor da comunidade de escalada e a arte rupestre da Piedra Parada. Não queria ir embora nunca, mas três semanas depois voltei a entrar no Chile por Futaleufú.

Cerro Castillo

Foto: Natalia Giavelli

Passei pela Carretera Austral em velocidade de paisagem, observando cada florzinha da selva que me rodeava, acompanhada de múltiplos mochileiros e bicicleteiros. Cada um na sua aventura. Até que cheguei a Cerro Castillo. Um pequeno vilarejo de montanha, rodeado por rochas, bosque e gelo. Me lembrou El Chaltén há 10 anos. Apesar da vontade que tinha de escalar, armei a mochila para caminhar.

Por três dias caminhei por Cerro Castillo. O guarda parque me deixou entrar gratuitamente em troca de encher três bolsas de lixo (as quais enchi já no estacionamento, por isso pedi mais três). Caminhei por três dias, me alimentando das frutas da floresta (framboesas, calafate, chaura e mirtilo) e admirando o majestoso Cerro Castillo. Lá pude contemplar seu gelo e as arestas pontiagudas.

Quando cheguei ao lugar, me falaram do setor La Chabela e para lá fui. Ficando muito perto da parede que deve usar capacete até para dormir. Isso sem falar da escalada. Lá há de tudo um pouco: positivos, agarrões, diedros, vias boulderísticas, regletinhos, etc. Que lindo é a vida escalando! Melhor ainda com aquela vista!

Quando comecei a organizar-me para ir ao norte, duas semanas depois não via nenhuma razão para seguir fazendo isso. Viver em uma kombi e estacionar nos setores de escalada. Chamei minhas companheiras de universidade, com as que alugava uma casa de campo em Pirque. Subloquei meu quarto a um amigo e me instalei um mês no Valle de Los Cóndores para passar o outono. Foi aqui que começou a verdadeira história.

Valle de Los Cóndores

Foto: Natalia Giavelli

Apesar de escalar por quase 10 anos, nunca havia escalado no Valle de Los Cóndores até o ano novo de 2018. Me impressionou o lugar. A diversidade dos estilos de escalada, as estranhas formações geológicas do lugar, a força da água e as cachoeiras. Mas sobretudo a flora. Pouca gente sabe que a Cordilheira dos Andes é as zonas com mais biodiversidades do Chile e do Mundo.

Claro! A simples observação a vegetação se destaca! As plantas da cordilheira são muito pequenas. Ficam perto do solo para se proteger do frio, vento e evitar a seca. Mas se observar mais de perto, encontra coisas assombrosas. São as únicas plantas que conseguiram adaptar e evoluir para suportar as particulares condições desta cordilheira. Por isso que não são encontradas em nenhuma outra parte do mundo.

Foto: Natalia Giavelli

Como engenheira agrônoma especializada em gestão ambiental, sempre imaginei que os escaladores como uma poderosa ferramenta para levantar informação sobre lugares longínquos e inóspitos. Lugares os quais é muito difícil um cientista chegarem. Enquanto caminho pelas montanhas, sonho com um dia que estejamos todos coordenados, o mundo da ciência e a comunidade de escalada. Uma coordenação para levantar informação biológica de lugares remotos e rebuscados. Como as frestas de algumas paredes do Valle de Los Cóndores e Torres Del Paine.

Entretanto o que vi no ano novo em Valle de Los Cóndores estava muito longe disso. Ao mesmo tempo que me maravilhava com a quantidade de orquídeas no solo, me espantava de como as pessoas sequer as olhava. Caminhavam e acampavam sobre elas como se fossem grama comum de uma praça pública. Claro! Neste momento as orquídeas não tinham folhas, a flor ainda não tinha aberto e a maioria das pessoas não sabiam que estavam pisando em orquídeas. Eu observava tudo com profunda dor e constrangimento.

Foto: Natalia Giavelli

Durante minha viagem ao sul do Chile, pude presenciar várias situações similares, não somente com a flora nativa, mas também com o uso da água, com lixo e com excrementos humanos. Evidentemente existem escaladores que organizam limpezas de setores “banheiro”, levando lixo que não são deles e tentam deixar o lugar melhor do que encontraram.

Mas também existem escaladores que deixam de tudo na montanha, sobretudo quando ninguém os está olhando, como no momento de necessidades fisiológicas.

Foto: Natalia Giavelli

Fui testemunha disso em Abril, quando participei do primeiro encontro feminino de escalada realizada no Chile: Rockeras. Encontro organizado no Valle de Los Cóndores. Reunimos 30 mulheres para escalar, conversar, instalar letreiros e limpar.

Recolhemos sacos e sacos de papéis com fezes. Encontramos sacos de lixo enterrado com fezes dentro e o papel higiênico fora. Nos olhávamos perplexas e pensamos: “qual parte da mensagem havia sido mal compreendido deste tanto”.

Deserto do Atacama

Foto: Natalia Giavelli

A primeira nevada me deu o sinal de continuar viajando até o norte do Chile. Desta maneira cheguei até o deserto para descobrir setores de escalada que nunca tinha imaginado. Os clássicos setores equipados para escalada esportiva do Deserto do Atacama estavam fechados, devidos os conflitos de escaladores com a comunidade local. Principalmente pelo tema do papel higiênico. Me permita ser bem clara quanto ao que está acontecendo lá: qualquer pessoa pode entrar no lugar, seja ela local, guia, estrangeiro, etc. MENOS os escaladores.

É muito forte, como escaladora, ser testemunha de algo assim. Pessoalmente a escalada transformou a minha vida inteira e principalmente através do contato com a natureza. Até minha primeira viagem de escalada a Cochamó, estava especializada em enologia. Foi precisamente a escalada que me levou a mudar de área e ir para a Gestão Ambiental. Me apaixonei pela natureza e sentia a necessidade de estuda-la e protege-la. Entretanto, neste momento, me encontrava de frente a um setor de escalada fechado, porque a vista das comunidades indígenas, nós escaladores, não sabíamos respeita-la.

Escutei que as verdadeiras viagens respondem perguntas que a pessoa ainda não tinha se perguntado. Neste momento da viagem, foi exatamente isso que aconteceu. Como não pude escalar, me dediquei a passear pelos lugares sem a corda. Caminhar pelo deserto e sua antiga história. Como uma tela, que por ausência de chuva, nunca é pintada e sua história queda parada e petrificada, para quem quer quiser usa-la.

Passei cidades em ruínas entre sal e areia, restos de cerâmica, pontas de flechas, pequenas casas e câmaras de pedras em partes do Altiplano, onde antes somente tinha visto fendas perfeitas. Direcionando meu olhar para ao redor, observei com horror que as casas estavam justo debaixo de uma fenda que as estava destruindo. Eu mesma já havia escaldado aí antes, sem reparar que estas pedras, dispostas de forma aleatória, talvez tivessem algum tesouro arqueológico.

Me lembrei de escaladores escutando música e acampanando pelo lugar. Foi então que me simpatizei com os indígenas. Seus antepassados tinham vivido aí. A água, plantas comestíveis e medicinais que eles usavam, além da sua cultura viva, nasceram ali. Este lugar para eles era sagrado e para nós um parque de diversões. Comecei a voltar a Santiago com uma só certeza: os escaladores não são ruins, mas desinformados. Uma pessoa que realmente conhece a cadeira de consequências de destruir a natureza, seguramente não o faria.

É imprescindível que a comunidade escaladora obedeça a um “Manual de boas Práticas Ambientais e Culturais de Setores de Escalada em Chile”, para difundir esta filosofia entre os praticantes. Receber os novos escaladores, aos que estão aprendendo a escalar em ginásios, aos que estão saindo pela primeira vez a acampar em setores de escalada. Atualizar hábitos de escaladores mais antigos, porque ninguém é perfeito! Assumir responsabilidade como comunidade e ensinar a escalar a natureza, sem afetar o resto dos seres que vivem e habitam este lugar. Ou que habitarão no futuro.

Hoje, dois meses depois de voltar desta viagem, estou estacionada ao lado de um rio em Cajón del Maipo. Embaixo de enormes paredes de rocha listradas, escrevendo e dando forma a um “Guia de Flora Nativa e Medicinal dos Setores de Escalada de Chile”. Para dar força a esta mudança no escaladores, para que não mais sejamos os humanos que chegam a impactar mais profundamente, mas sim os que conhecem e protegem. Acredito que assim, e somente assim, poderemos seguir escalando na natureza durante muitos anos mais.

There are 5 comments

  1. Eduardo Prestes

    Excelente o relato e a iniciativa, Natalia ! Nossa América do Sul tem montanhas e lugares mágicos, vale a pena conhecer o que pudermos. Positive vibrations em suas andanças ! Passando em Torres e nos cânions, você sempre estará em casa.

  2. Andréa Baltazar Barros

    Impressionante toda essa vivência. Assombrosa tbm é a tua coragem ao se lançar dessa forma pelos caminhos. Lamentável esse comportamento humano em relação ao convívio com a natureza. Simplesmente não sabemos cuidar. Nem de nós, nem do outro, nem do meio em q estamos. Que a tua determinação não cesse. Força, paz e bem.

  3. Gabriel Bernardo

    Este é um dos textos mais belos que já li. Muito inspirador, de fato! Ouvir essas experiências me fez sentir como se eu próprio estivesse lá, nos locais descritos. Fez-me entender mais ainda como preciso me conectar mais à natureza, como preciso senti-la mais, compreender.
    É necessário preservar nosso meio-ambiente e amar nossos animais, e isso deve ser reforçado em nossa cultura. Parabéns pela iniciativa.

  4. Denise

    Que matéria inspiradora! Parabéns! Temos que nos esforçar para conscientizar todos sobre lixo e preservação à natureza. Acho totalmente chocante uma pessoa amar a escalada, viabilizada pelo que a natureza nos dá, e não ter o bom senso de respeitar o ambiente.

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