Dia 6 no Tour du Mont Blanc: De Rifugio Bonatti ITA (2.025 m) a La Fouly SUI (1.610 m)

Pela primeira vez eu começava um dia já com sensação de nostalgia porque depois de quase um ano planejando, eu já havia trilhado mais da metade do Tour du Mont Blanc e ficava uma sensação de “está acabando”. Tirando essa sensação nova, a manhã parecia como outra qualquer pegando as roupas que não estavam exatamente secas, o café da manhã básico coletivo, pegar o piquenique e o tetris na mochila. Quando apareceu a primeira diferença: eu não tinha mais a sensação de estar sozinha.

Eu estava terminando de fazer as minhas tradicionais trancinhas no banheiro quando a Chloe apareceu e perguntou se eu queria que ela, Danielle e Lannie me esperassem. Respondi em negativo, mas mesmo assim lá estavam elas me esperando em frente ao refúgio em um dia particularmente frio. Logo antes de eu colocar a cabeça para fora do refúgio já pronta para andar, a equipe do Rifugio Bonatti informou: está muito frio e com chance de neve no col. Eu, boba, não dei bola. Em cinco segundos que eu estava fora do refúgio aquecido, percebi que aquele frio não era normal. O dia estava bonito com o céu azul e algumas nuvens, porém o ar estava realmente congelante.

Foto: Thaís Cavicchioli Dias

Voltei para dentro e já coloquei algumas peças de roupas a mais que o normal: um fleece fino e bem justo ao corpo, o anoraque que protege dos ventos e um lenço para cobrir/ esquentar as orelhas. A primeira dica para proteger do frio é cuidar bem de extremidades como dedos, orelhas, nariz, etc. Neste primeiro ponto, me preocupei com as orelhas. Mal sabia eu que precisaria de muito mais proteção ao longo do dia.

Além da companhia das outras três trilheiras solitárias, este dia foi repleto da companhia de corredores da UTMB completa. Eles haviam começado a correr lá em Chamonix no dia anterior às 18:00 e desde por volta de 5:00/6:00 da manhã eles estavam cruzando o Refugio Bonatti (2.025 m) . Difícil entender o esforço físico destes corredores, desde o vencedor que fez em menos de 20 horas (o que eu levei 11 dias), até os outros que correram por mais de 24h, 36h… Ao menos, como não estávamos no começo da corrida, os atletas já haviam se dispersado cada um em seu ritmo e não impactavam tanto no nosso dia. Quando um deles se aproximada, uma das meninas gritava “runner” (corredor em inglês) e por alguns segundos nós abríamos o espaço para ele passar.

O dia começou tranquilo com quase quatro quilômetros quase planos com sobe e desce sem desníveis consideráveis até que enfrentamos a primeira descida. Eram pouco mais de 200 metros, porém ficaram mais difíceis porque a temperatura caía e começava a garoar. Aproveitamos o vale onde tinha outro ponto de checagem dos corredores para complementar ainda mais as nossas roupas. Nesse ponto eu vesti a calça e as luvas impermeáveis: foco em me manter seca! O frio já era muito grande e se alguma parte do corpo ficasse úmida, teria problemas com chances de hipotermia.

Foto: Thaís Cavicchioli Dias

Devidamente agasalhados começamos a grande subida do dia que somaria quase 800 metros de aclive. Para quem já havia enfrentado quase o dobro em um único dia, não deveria ser um grande desafio, mas o frio realmente suga energias e eu estava mais cansada do desafio extra do dia anterior. Começava então a indecisão de São Pedro se ele iria realizar o meu sonho de ver nevar ou não. As meninas que viviam em cidades que nevava, ficavam debatendo se naquele instante o que tínhamos era neve ou garoa. Na dúvida, todas eram apenas garoa. Para nossa sorte, após mais ou menos um terço do aclive, existe o Rifugio Elena (2.062 m) que é uma boa opção para quando o Rifugio Bonatti está lotado. Aproveitamos para entrar e nos esquentar. Comi boa parte do meu sanduíche de presunto e queijo com um chocolate bem quente e partimos para a parte mais pesada da subida.

Foi nesse trecho que eu entendi que andar fora da trilha no dia anterior havia realmente exigido mais do meu corpo. Para variar, a subida estava muito íngreme e exigindo da panturrilha que pela primeira vez em seis dias, apareceu dolorida. Estava realmente difícil manter algum ritmo, mesmo que lento naquela subida. A dor atrapalhava muito, mas não era possível considerar muitas paradinhas porque o corpo esfriaria rápido demais. Foi então que “São Pedro das Montanhas” mandou uma salvação para minha subida: começou a nevar!

Foto: Thaís Cavicchioli Dias

Neste ponto (aproximadamente 2.300 metros), as meninas já tinham me deixado para trás e pude curtir como se ninguém estivesse olhando. Para a pessoa que nunca tinha visto neve, aquele momento foi muito mágico e mais especial ainda, perceber que os floquinhos de neve são realmente como nos desenhos animados. Essa empolgação me deu um gás a mais e criei uma brincadeira para mim mesma enquanto subia para distrair da dor: iria contar quantos floquinhos de neve perfeitos eu veria no chão próximo à minha bota… Comecei a contar 1…2…3…4…5…6… e a conta foi indo.. Às vezes eu recomeçava do zero. O importante não era o número, mas a distração perante o desafio. Conforme eu ia subindo o desafio ia ficando mais difícil porque a neve ia caindo cada vez de forma mais rápida e intensa.

Quando dei por conta, tudo ao meu redor estava tomado de branco! (aproximadamente 2.450 metros) Todo o chão, plantinhas, céu. Enfim, eu estava tomada por um grande branco de gelo. Apesar de estar lindo, fazia realmente cada vez mais frio e cada vez ventava mais, o que tornava difícil de ficar de olhos abertos com os floquinhos de neve batendo na cara. Aquele era realmente o momento mais tenso que eu já passei em uma montanha. Se não fosse pelos corredores que de vez em quando apareciam, eu realmente estaria sozinha ali. Senti um pouco de medo e preocupação e tentei ponderar se estava fazendo tudo que precisava ser feito. Eu ainda tinha mais um casaco, mas enquanto eu me mantivesse andando, eu poderia seguir daquela forma. Continuei olhando para baixo mantendo o meu caminho.

Foto: Thaís Cavicchioli Dias

Pouco depois cheguei ao Grand Col Ferret (2.537m). Este seria um dos pontos mais bonitos e marcantes do Tour du Mont Blanc porque não é um col qualquer, mas o col que marca a divisa entre a Itália e a Suíça. Porém, eu não conseguia ver absolutamente nada em nenhum dos lados. Na verdade, em nenhuma das direções do que deveria ser uma vista 360° fenomenal. Os poucos segundos que parei ali já me mostraram que eu precisava me agasalhar melhor e então coloquei a jaqueta de pluma e aproveitei para colocar os óculos de sol que iriam me ajudar a não precisar olhar para baixo. Complementei o visual com mais um lencinho, dessa vez, cobrindo nariz e boca.

Estava me sentindo tão quentinha e confortável que o corpo relaxou e veio uma vontade gigante de fazer xixi. E agora, o que eu faço ? Não precisava me preocupar com alguém me vendo porque ninguém ali conseguia ver muitos metros à frente, mas como fazer xixi em meio a uma nevasca? A minha estratégia foi “simplesmente vai lá e faz”. Me afastei um pouco de onde estavam as pessoas, abri o espaço por todas aquelas jaquetas para acessar as calças, baixei elas, me agachei… e…. Além do extremo frio na bunda, eu não sentia mais nada! O frio era tão grande que eu não sentia meu corpo eliminando o xixi. Só percebi que terminei quando, visualmente, constatei. Tirei a luva, me limpei, guardei o papel no lixinho que carregava comigo e fiquei me perguntando: Se a bunda já congela a -9°C, como será quando eu estiver em alta montanha?

Foto: Thaís Cavicchioli Dias

De novo quentinha, era hora de “curtir” a fronteira entre os países. Tentei fazer meu tradicional vídeo, mas falar com aquele vento todo era muito difícil. Também não tinha muito o que mostrar não é mesmo? Faltava apenas a minha foto de saltito. Ontem eu já havia ficado sem e agora haviam pessoas ao meu redor, porém elas estavam correndo e com BEM menos roupas que eu. Estava começando a achar que ficaria mais uma vez sem a foto de saltito, até que um corredor espanhol pediu para que eu tirasse uma foto para ele. Não perdi a oportunidade de já ter um corredor parado, passando frio e interagindo comigo e pedi para que ele tirasse a foto. Ele riu bastante dos meus pulinhos, ao menos pude dar um pouco de boas energias naquele trajeto que estava sendo difícil para todos.

Era hora de partir e comecei a dar os primeiros passos para dentro da Suíça. Ainda bem que haviam os corredores naquele dia porque não sei como faria para achar o caminho no meio da nevoa e chão congelado se eles não tivessem já marcado por onde passar. Seguindo o tradicional do Tour du Mont Blanc, essa era uma descida bastante íngreme e, rapidamente, eu fui perdendo altitude. Eu já estava começando a sentir calor pela atividade e abrindo um pouco os zíperes para aliviar, quando em um passe de mágica, o tempo abriu. Quer dizer, uma linha bem demarcada dividia o céu: para cima tudo branco, feio, neve, vento, enquanto embaixo havia lindas montanhas e árvores verdes mostrando a Suíça. Só faltavam as vaquinhas!

Bem rápido, eu terminei de descer os mais de 400 metros desde o col até La Peule (2.071 m) para uma sucessão de gratas surpresas! Primeiro, o meu trio de amigas estavam lá dentro tomando um chá enquanto me esperavam e foi muito gostoso ver o sorriso delas ao me ver a salvo da nevasca. Lá dentro estava realmente quentinho e eu pude tirar quase todas as camadas que eu tinha de casacos. Apesar de eu não visto nenhuma vaquinha, eu estava dentro de mais uma fazenda de queijos e decidi aproveitar. Em vez de comer o restante do meu sanduiche, pedi logo uma espécie de misto quente só que o pão é aberto e o queijo gratinado. O melhor pão-presunto-queijo de toda a minha vida não apenas pelo sabor, mas porque enquanto eu saboreava ele, alguns senhores locais tocavam musicas tradicionais e dançavam com os trilheiros que chegavam da nevasca.

Foto: Thaís Cavicchioli Dias

Estava realmente uma tarde gostosa, mas precisava continuar. Depois de tudo que o corpo já havia sofrido (além das dores do dia anterior), ainda tinham 7 km e 500 m de declive para continuar. Na hora de sair do restaurante do refúgio-fazenda, não estava nevando, mas o tempo estava feio mesmo nas altitudes mais baixas e seguiram assim até La Fouly. Tenho que ser sincera que foi a primeira vez que eu me arrastei por uma parte do Tour du Mont Blanc. Mesmo com a companhia das três meninas, nenhuma vista, ficar parando para corredores passarem, tudo meio molhado com risco de escorregar prejudicaram um pouco o psicológico que, aliado ao corpo que já havia sofrido, não aguentava mais e queria que chegasse logo.

Sendo sincera, nesse momento eu nem sabia mais quais das rotas eu estava fazendo. Existe uma pequena variante chegando perto de La Fouly e um dos caminhos deveria ser com mais trilha e verdes enquanto a outra rota pega mais estradas. Eu só seguia as placas “La Fouly” e rezava para chegar rápido. Depois verifiquei pelo GPS que acabei fazendo a rota normais mais bonita, mas quem conseguia ver beleza no dia feio quando se está sem paciência alguma… A chegada ao primeiro vilarejo suíço também não ajudou porque o meu refúgio ficava alguns quilômetros para trás no outro caminho e eu havia chego direto bem no centro (1.610 m) ao lado do refugio das meninas. Estava tão cansada que não teve vídeo de chegada neste dia.

A escolha do refúgio Maya-Joie não havia sido fácil. Não tem muitas opções de refúgios no centro de La Fouly e os mais famosos eram repletos de avaliações negativas de como as pessoas eram rudes e tratavam mal. Até fiquei com medo dos suíços. O Maya Joie tinha mais cara de uma pousadinha, era menor, mas repleto de elogios de como as pessoas tinham se sentido em casa ou até parte da família. Eu tinha até anotado que aqui era o lugar para provar fondue ou raclette, dois dos três pratos que um grande amigo que morou na Suíça tinha me dado a dica de provar.

Chegando lá, algumas frustrações apareceram porque os suíços não são tão organizados quanto a fama que os precede. Em La Fouly estava uma das principais bases de apoio do UTMB e muitas das famílias dos corredores estavam hospedadas ali. Como eles não seguem mesmos horários nem costume dos trilheiros, o tradicional jantar coletivo não seria servido naquele dia. Mesmo que eu já tivesse reservado. Caso eu quisesse, eles poderiam preparar o tal fondue especificamente para mim e fiquei de dar o retorno depois do banho.

Novamente não sei se foi algum erro de planejamento deles, mas eu acabei ficando em um quarto privativo mesmo tendo outros coletivos. Foi ótimo porque tudo que eu precisava naquele final de tarde era poder esparramar minhas coisas, tomar um bom banho quentinho e me esparramar. O banho não foi tão gostoso quanto se espera após uma nevasca porque era daqueles chuveiros que fecham automaticamente e eu precisava fazer ginástica para manter ele sempre aberto e a água quentinha rolando. Não foi relaxante e quando cheguei no quarto, fui buscar alguma coisa entre as coisas jogadas pelo chão e acabei ficando por ali também.

Foto: Thaís Cavicchioli Dias

Saí do meu estado de lezera quando chegou mensagem das meninas para jantarmos lá no refúgio delas. Como eles também tem um restaurante aberto ao público, eu poderia escolher entre o menu dos trilheiros ou outros itens do cardápio. Como eles tinham fondue, cancelei o do meu refúgio e corri para lá. Foi uma noite bem gostosa com as meninas e a Chloe me ensinou que fondue de queijo, normalmente, harmoniza com vinhos brancos. A maior parte dos brasileiros harmoniza qualquer queijo com vinho tinto, dias frios então… Nem pensar em vinho branco, mas foi sensacional e fez todo o sentido. Já que eu estava esbanjando, como um presente a mim mesma por ter sobrevivido à nevasca, eu me dei uma super sobremesa com suflê e Grand Marnier (licor de laranja francês).

Com a pança cheia e mais revigorada, acompanhei as meninas a dar força aos corredores da UTMB que ainda chegavam por ali. Era surreal pensar que eles estavam correndo há quase 30 horas e estavam passando pela nevasca durante a noite com bem menos roupa do que eu estava. Eles realmente mereciam muitas palmas. Eu continuava na esperança de cruzar com algum brasileiro, em especial o Edinho Ramon do “Sua Casa é o Mundo” que havia respondido algumas das minhas mensagens durante o planejamento.

Ninguém apareceu e eu estava voltando a ficar cansada. Decidi que iria acompanhar a passagem de mais 3 corredores e então iria dormir. Não foi então que o último corredor era um brasileiro! Ao avistar a bandeirinha junto ao número do Cristiano Marcelino, gritei o meu tradicional “Vaaiiii Brasil” e o semblante cansado daquele homem se transformou em um sorriso. Nos cumprimentamos e comecei a caminhar em direção à ladeirinha que levava à minha pousada quando eu escuto um alto “Brasileira”. Ao virar para trás, vejo o Cristiano correndo em minha direção porque ele não havia encontrado os familiares dele e estava na esperança que eu tivesse notícias. Alguém me explica de onde ele tirou mais energia para correr atrás de mim?

Segui os meus passos e fui dormir quentinha para recuperar um pouco as energias daquele dia ainda mandando boas vibrações para o Edinho. Saberia só alguns dias depois que realmente não iria cruzar com ele porque teve que abortar e ele que me contaria que a sensação térmica que enfrentei era de -9°C com ventos de até 80 km/h. Haja gelinho voando na cara!

Que experiência para uma primeira neve…


Leia os relatos anteriores

[metaslider id=”63257″]


6º dia em números (valores aproximados)

Distância total 20 km
Aclive 900 metros
Declive 1.400 metros
Cols 1 (Grand Col Ferret)
Variantes 0
Duração 9h30 (Paradas extras: 2 lanches para aquecer)
Fronteiras 1
Corredores Ultra 200
Temperatura Mínima Sensação -9°C e Ventos 80km/h

Gastos

Descrição Valor
Piquenique € 10,00
Hospedagem (com café da manhã) € 35,00
Jantar
Café da Manhã
Lanche especial com refrigerante € 18,00
Vinho + fondue + sobremesa € 60,00
Total € 123,00
Total ACUMULADO € 517,00

There is one comment

Comente agora direto conosco

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.