Saiba como funciona uma expedição de alta montanha

Sempre que comento sobre minha expedição ao Everest as pessoas se surpreendem quando conto que foi uma expedição de quase 70 dias.

Creio que as respostas que esperavam era de que tinha demorado uma semana…

Então neste artigo vou contar como funciona uma expedição a uma montanha de mais de 7.000 metros.

Existem duas maneiras de se escalar uma grande montanha, a chamada escalada alpina onde os escaladores saem do campo base e partem para o cume levando tudo o que precisam sem voltar ao campo base para reabastecimento ou descanso.

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Esse estilo de escalada recebe este nome pois foi como as principais montanhas da Europa foram conquistadas.

Este estilo não da chance para mudanças inesperados de clima ou para qualquer outro imprevisto e é, nas grandes montanhas do Himalaia, de altíssimo risco por razões óbvias.

Com muito mais frequência nestas montanhas usa-se o estilo chamado “cerco” onde se estabelece um campo base abastecido para uma longa estadia e se “constroem” campos de altitude a intervalos variáveis, mas com frequência entre 500 a 800 metros de ganho vertical entre um e outro, sendo que o último campo está normalmente a 1.000 metros verticais do cume.

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Foto: Manuel Morgado

No Everest, por exemplo, o campo base está a 5.300 metros, o campo 1 a 6.000 metros, o campo 2 a 6.300 metros, o campo 3 a 7.300 metros, o campo 4 a 8.000 metros e o cume a 8.850 metros.

Os escaladores fazem vários ciclos de aclimatação onde dormem progressivamente em altitudes cada vez maiores, voltando em seguida para o campo base para descansar e se recuperar.

A razão disso é que não existe aclimatação propriamente dita acima de 6.000 metros.

Poderíamos falar com mais propriedade em uma adaptação a altitudes maiores.

Nosso organismo não consegue funcionar por períodos longos acima de 6.000 metros, necessita voltar a uma altitude mais amena para recuperação.

Tipicamente, em uma montanha acima de 8.000 metros, se faz 2 ou 3 ciclos de aclimatação e um ciclo de cume. Acrescido a isso o tempo que se leva para chegar ao campo base e o trekking de volta além da espera pela “janela” de bom tempo chegamos aos 70 dias que comentei acima.

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Foto: Manuel Morgado

Um cronograma de escalada ao Everest seria, então, mais ou menos assim (vou usar o Everest como exemplo):

  • Do dia 1 ao dia 3 – Tempo preparatório em Katmandu para organizar o equipamento, descansar do longo voo, reunir a equipe e fazer a reunião com as autoridades responsáveis pelas permissões de escalada.
  • Do dia 4 ao dia 13Treking de aproximação à montanha. Este treking é exatamente igual à caminhada que os trekkers fazem quando percorrem este trekking. Tanto trekkers como escaladores têm de ganhar altitude gradualmente para se adaptar à atitude. A regra é não dormir mais do que 400 metros acima da noite anterior e a cada 1000 metros de ganho dormir uma segunda noite na mesma altitude.
  • Do dia 14 ao dia 19 – Escalada de alguma montanha de 6.000 metros para ajudar na aclimatação. No meu caso escalamos o Island Peak, uma bonita montanha de quase 6.200 ao sul do Everest. Isso ajuda na aclimatação e evita uma passada na temida cascata de gelo, o trecho entre o campo base e campo 1.
  • Do dia 20 ao dia 23 – Preparo do equipamento no campo base, fazer o puja, a cerimônia budista para pedir permissão aos deuses para adentrar sua morada, ritual sem o qual nenhum sherpa começaria a escalada.
  • Do dia 24 ao dia 25 – Primeiro ciclo de aclimatação onde os escaladores sobem ao campo 1, dormem uma noite lá, no dia seguinte tocam o campo 2 e voltam ao campo base.
  • Do dia 26 ao dia 28 – Descanso e recuperação. Nestes períodos de descanso se recomenda o que chamamos de recuperação ativa, ou seja, fazer pequenas caminhadas ou se entreter fazendo escalada em boulders ou em paredes de gelo para manter o corpo e a mente ativos.
  • Do dia 29 ao dia 32 – Segundo ciclo de aclimatação onde os escaladores sobem diretamente ao campo 2, dormem lá duas noites, sobem para dormir uma noite no campo 3, descem ao campo 2 para mais uma noite e no dia seguinte voltam ao campo base.
  • Do dia 33 ao dia 36 – Descanso e recuperação. Uma vez concluídos estes dois ciclos, os escaladores estão prontos para partir para o ciclo do cume, mas quando isto acontecerá será decidido pela montanha. Para tal é necessário que os ventos fortíssimos que normalmente sopram acima de 8.000 metros acalmem para que se possa escalar com segurança.. Este é um período de muita angústia, pois pode demorar até 15 dias e o escalador pode sentir que está “perdendo” sua aclimatação, que está perdendo sua forma física, que sua saúde está se deteriorando no ambiente agressivo do campo base.
  • Do dia 37 ao dia 49 (no meu caso) – Espera pela “janela” de bom tempo. Mais do que bom tempo, no sentido a que normalmente associamos a esta expressão, o que se espera é a diminuição dos ventos que normalmente são de mais de 100 km por hora para um dia de menos de 50 km por hora, de preferência ao redor de 20 a 30. Se estiver encoberto ou mesmo nevando não tem muito problema, desde que o vento esteja fraco.
  • Do dia 50 ao dia 57 – Ciclo de cume. Parte-se do campo base diretamente para o campo 2 onde se dorme por duas noites. De lá, uma noite no campo 3, a 7.300 metros. Na manhã seguinte, escalada ao campo 4, a 8000 metros, onde se descansa por 6 ou 7 horas e ao redor das 21 horas parte-se para o cume. A previsão normal é fazer a escalada até o cume em ao redor de 10 a 12 horas e a descida em ao redor de 4 a 5 horas. A não ser que o escalador esteja muito forte, o normal é dormir esta noite no campo 4 e descer ao campo 2 no próximo dia e ao campo base no dia seguinte. Notem que o dia de cume na realidade não é do campo 4 ao cume e sim do campo 3 de onde se sai pela manhã chegando-se ao cume, uma escalada de 1500 metros verticais em 24 horas!! Este esquema se repete com pequenas variações em outras montanhas de mais de 8000 metros.
  • Do dia 58 ao dia 60 – Descanso no campo base e preparo do material para voltar a Katmandu.
  • Do dia 60 ao dia 64 – Caminhada de volta a Katmandu.
  • Do dia 65 ao dia 68 – Debreefing junto às autoridades e preparo para a volta.
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Foto: Manoel Morgado

Outro tema que gostaria de esclarecer é o papel desempenhado pelos sherpas.

A palavra “sherpa” se refere a duas coisas.

Com “S” maiúsculo se refere à etnia de imigrantes tibetanos que, há 500 anos, cruzou o Himalaia e se estabeleceu nos vales próximos ao Monte Everest.

Com “s” minúsculo se refere a carregadores de altitude que, desde as primeiras expedições britânicas ao Everest nos anos 20, foram contratados para este trabalho.

A enorme maioria das expedições, comerciais ou não, utiliza os serviços de sherpas para carregar equipamentos montanha cima, montar os campos de altitude e até colocar as cordas fixas.

Com certeza, a montanha fica muito mais difícil sem a ajuda inestimável dos sherpas.

Cordas fixas são cordas estáticas (não elásticas como as cordas de escalada) que são fixadas à montanha em intervalos de ao redor de 50 metros com estacas de neve ou parafusos de gelo.

Apesar de, normalmente, as montanhas de 8000 metros não serem tecnicamente muito exigentes, fazer qualquer tipo de escalada técnica em altitudes extremas é muito difícil, por isso o uso de cordas fixas, que ajudam muitíssimo na escalada, além de deixá-la muito mais segura.

No caso do Everest, além de cordas fixas, os sherpas também colocam as escadas para atravessar as enormes cravasses (fendas) entre o campo base e o campo 1 na temida cascata de gelo(Kumbu Ice Fall).

Como se pode ver, uma expedição a uma das 14 montanhas com mais de 8.000 metros é um investimento considerável de tempo, treino, dedicação e financeiro.

E, claro, a compensação em termos de realização para qualquer escalador é imensa.

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