Reflexões sobre a técnica na escalada – De que vale toda força do mundo aplicada de maneira errada?

Gosto de escutar outros escaladores. Gosto porque o escalador, como qualquer desportista, busca através de sua vivência desvendar os motivos para estagnação. Engraçado, mas ainda estou para ver o que me diz “Não estou me movimentando bem o suficiente”.

Já repeti aqui algumas vezes. Temos uma atmosfera do physique. Quantas barras você faz, quão longe alcança no campus, quão pequeno o reglete que você segura. E sua prancha? Não deixe de pensar na “blocada”. Quais ângulos você treina de isometria? 90°, 135°?

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Esses questionamentos se refletem também nos pedidos de exercícios: “Peixe, que exercícios você sugere para ganhar mais força de puxada?”. “Peixe, sabe o que é… meu tríceps é meio fraco”. “Peixe, e quanto ao finger?”

Pois bem meus caros, nada disso. Se querem pensar em melhorar que tal pensarmos em “qualidade de movimentação”? De que vale toda força do mundo, mas mal aplicada?

Corpo: Máquina de Especialização

“Mas Davi, eu simplesmente não consigo “copiar” a movimentação de alguns colegas mais experientes. Por quê?”

Nosso cotidiano é cruel. Submetemos nosso corpo a mesma posição (sentado) por horas a fio, seja para estudar, seja para trabalhar. Durante esse tempo não fazemos muito para descansar: alongamentos, caminhadas, intervalos. Encaramos uma tela de computador ou um professor por horas.

Quando o corpo cansa, continuamos. Afinal, são 8 horas de jornada, são 5 horas de aulas. Nos rendemos a uma posição “mais cômoda”, no qual relaxamos os músculos posturais. “Deitamos na cadeira”.

Nosso corpo responde se tornando especializado. “Já que tenho que ficar 8 horas nessa posição, vou fazer da maneira mais econômica possível!”, pensa nosso inteligente sistema. O resultado? Músculos são desativados, atrofiados. Estruturas musculares são encurtadas, outras estiradas. Os ligamentos se adaptam para suportar essas extenuantes rotinas.

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Mas aí, conheço a escalada.

Começo a prática. Escalo sem metodologia, com pouca orientação. Normalmente pautada na ideia de que todos somos “particulares”, que nosso corpo aprende sozinho e que a escalada se desenvolve naturalmente.

Novamente, cruel.

Acabo submetendo meu corpo especialista na arte de sentar a uma outra atividade. Essa atividade exige um serrátil anterior saudavel para manter a escápula junto as costelas, exige uma escápula móvel e saudavel com propriocepção dos músculos que a movimentam e com a musculatura a pleno vapor, exige uma flexibilidade de quadril e dos ombros adequada, de modo a permitir adaptação aos diversos tipos de movimentos que passarei a fazer.

Não bastasse, escalamos como se não houvesse amanhã. Ficamos viciados e gastamos 2, 3, 4 horas ininterruptas escalando. A exigência da atividade extenuante não encontra musculatura, articulações e ligamentos, inteligentes, treinados, fortes, adaptados.

Nosso corpo, novamente, tem que se “virar nos 30”. Diante das situações extremas e altamente variáveis a que o submetemos, nosso corpo utiliza as armas que tem. “Ora, se a região do trapézio inferior não é desenvolvida o suficiente para esse movimento, vou recrutar o trapézio superior. Será que funciona?” E funciona! Nosso corpo compensa as fragilidades encontradas com as fortalezas disponíveis.

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Mas o preço vem. A falta de um corpo funcional, com equilíbrio entre os músculos e a atuação adequada das estruturas cobra seu preço com os anos. Pode vir na forma de lesão ou simplesmente na forma de estagnação. Atingimos platôs de evolução, passamos a ter cada vez mais visitas ao fisioterapeuta, terminamos por ter que recomeçar.

E pode parecer que o problema só ocorre aos “especialistas em ficar sentados”, mas não é bem assim. Cada atividade promove “especialistas”. As especificidades desportivas são tantas, que a transferência não é integral entre esportes. O nadador não aguenta correr, o ciclista não aguenta jogar futebol, o “calistênico” não aguenta escalar. Pelo menos não na mesma proporção. E a especialização de uma parte do corpo vai ao custo da “desativação” de outra.

Tão diferentes assim?

Somos da mesma espécie. Pode ser que alguém aí seja “super diferente”, muito mais alto, muito mais forte, muito mais qualquer coisa. Mas o funcionamento do corpo, via de regra, é o mesmo. Podemos ter particularidades, e teremos, mas essas particularidades não são extensas e significativas o suficiente a ponto de desconsiderarmos que somos todos “iguais”; não são agudas a ponto de desconsiderarmos a forma como os músculos agem, como as articulações se movem, como os ligamentos atuam.

As articulações, os ligamentos, os músculos, o esqueleto. O funcionamento do corpo segue uma lógica. A mobilidade das articulações, a função dos músculos, a atuação dos ligamentos já foram desvendadas.

Se podemos definir funções para o corpo e determinar finalidade para as diversas partes, então não parece razoável admitir que o corpo evoluiu para favorecer determinados movimentos, determinadas posições?

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O corpo possui uma mecânica própria, uma biomecânica. Podemos pensar que o corpo é mais forte em algumas posições, que o recrutamento de determinados músculos favorecem movimentos específicos, que o POSICIONAMENTO permite o corpo a operar como ele evoluiu para fazê-lo. É tudo uma soma de vetores, uma aplicação da física, um entendimento dos vetores.

Tecnicamente, podemos lembrar que uma das funções do peitoral menor é deprimir (abaixar) a escápula. Lembrar que esse não é o único músculo que faz isso. E lembrar que a escápula, por exemplo, é primordial para a estabilização do ombro.

Esse conhecimento permite pensarmos como um movimento de ombro tem que ser executado para resguardar a articulação, como deve ser nosso POSICIONAMENTO para melhorar nossas chances de cadena, como devemos nos MOVIMENTAR.

Diferentes Estilos

“Mas, volta um pouquinho Davi”. Sempre ouvi falar que escalada era muito particular, muito pessoal, muito “eu”. Isso está errado? O que acontece com o ESTILO de cada escalador então?”

Pergunto: podemos chamar ‘má técnica’ de estilo?

Se pretendo fazer um movimento de ombro: por má postura, mau treinamento, má adaptação, péssimo aprendizado e todos os outros motivos que levaram um escalador a se movimentar como se movimenta, recruto meu trapézio superior, forço a cabeça do úmero pra fora da cavidade glenoide da escápula, sobrecarrego o redondo menor e acabo favorecendo uma luxação acromioclavicular. Em miúdos: forço o corpo de um modo inadequado e favoreço lesões.

Isso é o significado de estilo?

E se decido escalar lentamente, gastando 1-2 segundos “blocado” a cada movimento, chegando estaticamente em todos as agarras que faço em uma via, desconsiderando minha capacidade de recrutar as fibras rapidamente (força de contato) e fazer movimentos mais dinâmicos (técnica de Deadpoint), o que me levaria a uma melhor eficiência energética. Também posso concluir que estilo é estilo, técnica é técnica?

Temos que estreitar a definição estilo. O estilo não pode ser justificativa para o mau posicionamento, desperdício de energia, ineficiência motora. O estilo não pode ser culpado pelo mau aproveitamento mecânico (biomecânico) do corpo.

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O estilo me parece justo quando tratamos daquelas diferenças anteriores. Aquelas particularidades que citei, presentes para nos diferenciar, mas ainda pequenas demais para nos classificar como espécies distintas.

Se minha formação genética, meu histórico esportivo, meu estilo de vida favorece a constituição de fibras musculares de contração rápida, a capacidade de explosão, a habilidade de desempenhar lançamentos longos e botes, é razoável pensar que meu estilo vai ser mais jogado, e que eu tenderei a favorecer esse tipo de habilidade. Mas efetuar em todo lançamento de mão um bote, desperdiçar o uso dos pés e ignorar movimentos mais “estáticos” em detrimento dos saltos; e por fim dizer que é “meu estilo”, não é muito esperto, certo?

Temos que pensar em eficiência, sim, mas também em funcionalidade. O corpo é uma ferramenta que deve ser usada adequadamente. A aplicação correta para o momento correto. Uma blocada, por exemplo, pode ser uma ferramenta interessante para movimentos mais delicados, sutis. Facilita para ajeitar a mão, facilita acertar o bidedo. Mas blocar a cada agarrão remonta a uma habilidade que é útil, mas que claramente está sendo mal aplicada.

A lista de exemplos é interminável.

E existe um método? O que treinar…

No cerne da técnica está a biomecânica e o controle motor.

A ênfase na mecânica biológica permite desenvolvermos os músculos da forma como eles, em tese, evoluíram para serem usados. Podemos prever as situações mais comuns, e também podemos transferir tal habilidade para movimentos menos comuns, mas semelhantes.

Atente-se a escápula. Sabe quando parece que os ombros encostam nos ouvidos? Isso mesmo: ao fazer uma “barra”, um campus, uma puxada. Ao lançar as mãos, ao segurar na agarra acima, o quão longe seus ombros estão das orelhas?

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A musculatura que movimenta a escápula tornando-a saudavel e forte permite que a força de puxada se desenvolva. Também protege a articulação do ombro, estabilizando-a e evitando luxações.

E quanto a mobilidade de seu quadril? Um quadril móvel permite a transição de peso entre mãos e pés e entre um pé e o outro de forma econômica. Permite um alcance maior de agarras, a percepção de soluções diferenciadas, o recrutamento de mais partes do corpo para te ajudar.

No que tange o controle motor, embora não tenha o tratado a fundo, este é um fator preponderante para a técnica. Por enquanto podemos nos ater a ideia de que o controle motor está relacionado a coordenação, a precisão, a perfeição. Sabe aquele coleguinha que sempre acerta o bidedo, nunca erra a agarra, faz botes duplos, não precisa de duas tentativas para acertar o micro-pé? Pois bem, controle.

Por isso, pergunto: Como anda o seu Deadpoint?

Um pouquinho de física. Jogamos uma pedrinha pra cima. Ela sobe, sobe, sobe e, quando finalmente não sobe mais, ela para. Sim, aquele momento que ela ainda não começou a cair, mas também já parou de subir. Pois bem, esse é o ponto morto (Deadpoint). E esse é exatamente o momento que você deve acertar a agarra.

Esse momento passa rápido. É necessário muita precisão, controle e repetições para garantir que você acerte o momento. Vejo muita gente que vai demais, outros que vão de menos. Portanto, seja preciso.

Mas apenas isso? E que exercícios?

Gostaria que fosse tão simples. Se você tem me escutado, vai lembrar que digo que uma avaliação é importante. É importante porque cada um de nós é um “especialista” em algum coisa e “adaptados” a atividades mil. Isso quer dizer que você pode ter compensações diversas, e sugerir algum exercício pode estar agravando essa compensação.

A discussão sobre técnica ainda se estende. Aspectos como controle motor e a definição de técnicas básicas ainda permitem muita reflexão. A definição de métodos para desenvolvimento dessas técnicas ou mesmo estratégias para lidar com isso. Cabe a nós questionar fatores sociais também, como a cultura do “aprenda sozinho” que “naturalmente você aprende”.

De qualquer forma, pense e reveja sua movimentação. Fuja da ideia de que a forma como você se movimenta é própria e não tem que ser corrigida. A técnica diz respeito a qualidade, e o treino tardio pode retirar inúmeros talentos do cenário nacional e mundial.

Treine inteligente

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