Porque você não precisa de Campus Board – Como treinar os dedos com sabedoria

Ah, o Campus Board

Excelente ferramenta, e usada cada vez mais precocemente. Infelizmente não necessariamente da forma mais sábia.

História

davi-fantino-00O Campus Board foi criado por Wolfgang Güllich e herdou o nome da academia na qual foi instalado (“Campus”), que curiosamente nem era uma academia de escalada. Campus era na verdade uma academia de fitness e as ripas de madeira com seus pockets (“bidedos”) ainda hoje podem ser encontradas em suas instalações.

Güllich precisava de uma ferramenta para treinar explosão e pliometria já que almejava escalar vias extremamente duras, e o resultado de seu treinamento foi a cadena das famosas Wall Street e Action Direct, respectivamente os primeiros 8c fr e 9a fr do mundo.

Você precisa de Campus?

Ok, chega de aula de história e vamos ao que interessa. Você precisa de Campus Board?

O Campus Board é uma ferramenta. É importante lembrar disso, porque parece cada vez mais frequente a quantidade de treinos que são desenvolvidos priorizando o Campus Board. E lembre-se: uma ferramenta não pode substituir o principal, que no nosso caso é travar!

Portanto, tudo começa na análise do escalador. Uma correta análise de fraquezas e fortalezas permite apurar se, de fato, o Campus Board se faz necessário. E existe apenas um deficiência que me leva a um bom treino de Campus Board: Explosão!

Foto: Lucas Castor | http://www.lucascastor.com

Foto: Lucas Castor | http://www.lucascastor.com

A grosso modo, podemos definir explosão/potência como a capacidade do músculo de contrair rapidamente. Sabe quando você bate no reglete, mas parece que a mão não fecha? Em contrapartida, quando tenta segurar no mesmo reglete de baixo você simplesmente “sobra”? Esse microssegundo de contato entre seus dedos e a agarra é o tempo disponível para que seus músculos “raciocinem” e contraiam a tempo. Se for tarde demais, queda.
Nesse caso, precisamos de um pouco mais de potência.

A falta de potência nas mãos é fácil de notar. Mas também podemos imaginar o escalador que sofre em dinâmicos. Não é raro vermos escaladores com movimentação demasiada lenta, e que quando precisam fazer um movimento mais dinâmico parece que o corpo está preguiçoso, vagaroso, pesado.

Aí entra o Campus Board.

Nesses casos o Campus Board pode sim ser uma ferramenta extremamente válida. Isso porque temos uma simulação de movimentos executados durante a escalada (especificidade), mesmo que consistam em movimentos extremamente simples e executados com uma técnica duvidosa (sem os pés). No entanto, a utilização do próprio peso como carga e a necessidade de segurar nas ripas, cada qual com profundidade desafiadora (progressividade), permite que o corpo se adapte a ter respostas cada vez mais velozes.

Mas, como todo exercício, a técnica da execução é deveras importante.

Se queremos treinar potência, não há de se pensar em fazer movimentos lentos no Campus Board. É necessário imprimir velocidade, de modo a forçar adaptações neurais e fisiológicas que se assemelhem ao tipo de habilidade que queremos desenvolver. Também devemos escolher sabiamente a profundidade da ripa. Se notarmos que o problema de falta de potência se restringe aos dedos, podemos usar o campus com ripas menores, respeitando o nível do escalador. Também temos que aliar o tamanho da ripa com a velocidade de movimento, já que uma ripa demasiada pequena não permitirá que o escalador efetue movimentos com velocidade elevada.

Quando a falta de potência passar pela “puxada” do escalador, me parece mais interessante o uso de ripas grandes ou até agarrões. Note que nesse caso, queremos incentivar outros grupos musculares, algo que não seria possível se ficarmos apenas nas ripas pequenas já que o gargalo tende a ser as mãos.

Outro aspecto fundamental no treino de Campus Board é que menos é mais; qualidade, não quantidade.

O ganho de potência é relacionado majoritariamente a adaptações neurais. Nesse tipo de adaptação, o cérebro precisa “aprender” a velocidade com que a musculatura deve atuar, que no nosso caso é a maior possível. Sendo assim, ao efetuar o movimento de Campus Board várias vezes, com baixo intervalo de descanso, a velocidade do movimento tenderá a ser cada vez menor a cada repetição devido a fadiga, gerando conexões neurais ineficientes.

Mas nem tudo são flores…

Identificada a deficiência, e entendendo a finalidade da ferramenta, precisamos de uma base. Por base, entendo uma adaptação física e técnica mínima para permitir que o treinamento no Campus Board seja executado de forma eficiente. Sem uma base adequada, podemos colocar o escalador em risco, ou simplesmente ferir os requisitos técnicos mínimos necessários para uma boa sessão de campus.

Sendo assim, por necessitar de velocidade, o escalador precisa ter anteriormente uma força de puxada já consideravelmente alta. Afinal, o Campus Board exige a projeção do próprio corpo no ar, almejando atingir as ripas mais distantes possíveis. Isso coloca um alto grau de stress nos ombros, cotovelos e dedos podendo levar a sérias lesões. Também não há de se pensar em gerar arranque grande suficiente sem uma força de puxada inicial adequada. Um escalador que mal consegue fazer 8 puxadas, não há de se aventurar no Campus, por exemplo.

Foto: Lucas Castor | http://www.lucascastor.com

Foto: Lucas Castor | http://www.lucascastor.com

Poderíamos sanar a falta de força de puxada com o uso de pés. Mas, novamente, me parece uma tentativa de pular etapas.

Um escalador incapaz de sustentar o próprio corpo em puxadas simples deve enfatizar exercícios e ferramentas que favoreçam o ganho de força máxima. Mesmo porque, a bibliografia aponta que treinamentos de força geram incrementos significativos na potência, mas treinos de potência não possuem essa reciprocidade em igual proporção. Portanto, parece mais inteligente enfatizar outras habilidades e ferramentas antes do Campus Board.

Outro ponto relevante é o nível do escalador e a prevenção de lesões. Um escalador que não consegue fazer um número razoável de puxadas muito provavelmente não possui tempo de escalada e, consequentemente, não possui maturidade física para ter como principal deficiência a falta de explosão. Mesmo se for um praticante assíduo e com longo histórico na escalada, com articulações e tendões já inteiramente adaptadas a prática esportiva, o impacto que exercícios de potência tem sobre essas estruturas é enorme, e o uso do Campus Board conclui-se como demasiado.

E o que não fazer no Campus Board ? O resto.

ladder_rotPois é, rotinas longas e repetitivas no Campus Board são extremamente desinteressantes. E temos inúmeros motivos para isso.

Poderíamos pensar em treinar Campus Board para melhorar nossa resistência ou mesmo nossa power endurance. Para tal poderíamos fazer circuitos de subir e descer (ladder) ou mesmo vários lançamentos de subir e descer consecutivos nas mesmas ripas (Up-down).

Essas rotinas falham no aspecto mais básico de um treinamento: especificidade. Ao subir e descer repetidas vezes, o tempo de cada movimento não se assemelha ao tempo que demoramos em cada movimento durante uma escalada de Via ou Boulder. O tempo que mantemos nossas mãos em contato com a parede durante uma escalada na pedra é bem mais longos devido à complexidade dos movimentos, enquanto numa rotina de Campus Board o tempo normalmente é mais rápido por se tratar de movimentos mais simples, sem complexidade.up-down_easy_rot

Na escalada, portanto, a característica de movimentação gera gastos energéticos diferenciados, além de exigir um nível de atenção maior. Embora uma rotina longa no Campus Board possa elevar nossos batimentos cardíacos e gerar a impressão de que estamos trabalhando “resista”, a falta de especificidade gera um descompasso entre o treinamento e a capacidade de transferência esperada para a escalada.
Outro ponto pertinente é a diferença entre a técnica utilizada no Campus Board e a técnica necessária para ascensões de escaladas de dificuldade. Alguns exercícios no Campus são executados de forma a enfatizar lock offs ou movimentações lentas, técnicas que são deveras duvidosas de serem aplicadas na escalada. Também existem exercícios que enfatizam várias repetições sequenciais (como o Ladder), o qual é feito com o cotovelo praticamente a 90° durante todo exercício – extremamente distinto da escalada de fato. Por fim, a falta de uso dos pés durante o exercício gera um vício de movimentação que é fator limitante para níveis mais altos de escalada. Não se engane: escaladores de alto rendimento possuem formidavel habilidade de utilização dos pés.

Ok. Concluímos que nossa deficiência se encontra na potência de mãos (ou costas). Também já temos os requisitos de força mínimos. Que exercícios devo fazer então?

davi-fantino-02Podemos fazer Alcance Máximo:

O alcance máximo permite trabalharmos nossa amplitude de movimentação. Também, por se tratar de nosso “máximo”, podemos colocar o máximo de energia possível, alinhando um ganho técnico com o ganho físico almejado (mais potência).

Também podemos fazer o Alcance Máximo com início em desnível:

O movimento se assemelha ao “Alcance Máximo”. O que muda é a posição das mãos, começando desniveladas ao invés das duas mãos iniciando na mesma ripa.

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Esses dois exercícios me parecem os ideais para se trabalhar no Campus Board. Isso porque o ganho não é apenas físico, mas permite o aprimoramento técnico de um movimento com grande relação com a escalada.

Quanto a metodologia, faça poucas repetições. Você pode executar lançamentos de mãos 3 ou 4 vezes, com intervalos de 30 segundos entre cada lançamento, e de 4 minutos entre séries. Dessa forma você consegue garantir lançamentos de mãos mais precisos e qualificados. Claro que o treinamento de explosão deve ser cuidadosamente incorporado em um planejamento planificado, mas não gostaria de falar, falar, falar e não dar nenhuma sugestão…

Um detalhe importantíssimo: faça os movimentos apenas para cima! Nada de retornar a mão para a ripa de início…

No treino de Campus Board, é comum vermos o retorno para a ripa de início para novamente lançar a mão acima (exemplo no exercício Up-Down). Esse movimento de retornar a mão não apenas não faz sentido como também é perigoso. Não faz sentido porque não é um movimento utilizado na escalada(não parece esperto escalarmos para baixo, certo?), e perigoso porque o ombro é colocado em uma posição extremamente desvantajosa, expondo a articulação e os tendões a uma possível lesão.

Um argumento frequente em favor do retorno da mão refere-se a função pliométrica do Campus Board. Em suma, o treinamento pliométrico visa valorizar o ciclo alongamento-encurtamento, visando maximizar a produção de força explosiva. Em outras palavras, esticar o músculo e em seguida encurtar o músculo, em alta velocidade. No campus, a queda (o retorno de uma ripa mais alta para uma mais baixa) geraria a aceleração do escalador, obrigando o mesmo a trabalhar a força excêntrica (frenagem da queda) e a posterior contração concêntrica (novo lançamento de mão), gerando o efeito pliométrico no treinamento.

Mesmo que o intuito de se movimentar para baixo seja maximizar o ganho de potência através de um movimento supostamente pliométrico, o risco de lesão é muito grande. Além disso, precisamos ponderar que o Campus Board é erroneamente tratado como uma ferramenta de Pliometria. M. Thevenet (2006) encontrou indícios da incapacidade do Campus de ser considerado uma ferramenta para esse tipo de treino devido a velocidade com que o exercício é executado. No caso do Campus Board, em alguns tipos de exercícios, a velocidade da fase excêntrica para a fase concêntrica não é rápida o suficiente. Se a velocidade não é alta o suficiente, as premissas da Pliometria não se aplicam.

Foto: Lucas Castor | http://www.lucascastor.com

Foto: Lucas Castor | http://www.lucascastor.com

O treinamento pliométrico melhoraria a capacidade de reação do sistema neuromuscular e de armazenamento da energia elástica durante o pré-alongamento, para que esta seja utilizada na fase concêntrica do movimento. No entanto, se a velocidade de execução não é rápida o suficiente, o sistema nervoso consegue regular o movimento através da intervenção dos antagonistas e do reflexo motor, impedindo o desenvolvimento da alta potência decorrente dos treinamentos pliométricos (BOMPA, 2004).

E o que isso quer dizer? Quer dizer que continuamos treinando potência, mas com resultados mais acanhados e benefícios menores que os existentes em treinos de pliometria. O fato do Campus Board não ser um estímulo pliométrico para alguns exercícios não invalida seus benefícios.

Enfim, cuidado com o Campus Board. Excelente ferramenta, de fato, mas com uma finalidade muito específica e, definitivamente, não é adequada para todos.

Analise bem sua escalada, avalie seu desempenho, pergunte-se: o Campus Board é realmente o que preciso?

Bibliografia

  • M. THEVENET (2006) Coordinations Interarticulaires Au Cours D’un Mouvement Dynamique Quadrupedique Vertical: Le Jete. Tese de mestrado, Universidade de Lyon.
  • BOMPA, T.O. (2004) Treinamento de Potência para o esporte. Tradução de Juliana de M. Ribeiro e Juliana P. de Souza e Silva. São Paulo: Phorte.

beta-escalada

There are 2 comments

  1. Felipe

    Concordo com tudo, mas não 100% com isso: “Não faz sentido porque não é um movimento utilizado na escalada(não parece esperto escalarmos para baixo, certo?)”, as vezes pode ser necessário “escalar pra baixo” numa via trad caso tenha errado a via, ou precise recuperar um equipamento, ou ainda abandonar…mas sem problemas, creio que o artigo fale de escalada esportiva somente, e também seria muito mais sensato treinar desescalada em uma via normal ao invés de um campus.

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