O pufe, o Dedo de Deus e o Mont Blanc – Reflexões a respeito de escaladas e desafios

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho.

No meio do caminho tinha uma pedra.

 – Carlos Drummond de Andrade

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No meio do caminho tinha um pufe – Tinha um pufe no meio do caminho

Há aproximadamente uma década e meia, a pouca idade ainda impedia que meu filho ficasse em pé. Eu o observava rastejando pelo chão e o via sempre em confronto corpo a corpo com um insuspeito pufe que interceptava seu caminho.

Atitude semelhante observei em minha afilhada alguns anos depois e por ultimo na pequenina Heloisa, minha filha mais nova. Percebi que elas também não temiam interagir, empurrar ou subir em coisas desconhecidas e maiores do que elas, quando impediam o seu caminho.

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E desde então concluí algo fascinante:

Não aprendemos a escalar.Essa condição nos foi dada e, em algum momento bem lá atrás no passado, esse dom nos foi tirado.

Recordemos que enquanto crianças e engatinhando, nos deparávamos com um pufe, cadeira, sofá ou outro objeto qualquer  que impedisse o nosso progredir, contorná-los ou mesmo retroceder raramente era uma opção. Ao invés disso, interagíamos com eles, porque o medo do desconhecido, do arriscado e do perigo ainda não fora incutido em nós. 

Esse zelo exacerbado só nos foi incrustado mais adiante, com a falsa premissa de nos proteger nos poupar de flagelos e intempéries.

Tornamo-nos, então, escravos de nossos próprios medos, aprisionados apenas por tornozeleiras de fios de barbante e amordaças de papel de seda.

É possível, no entanto, num ínfimo ato de coragem, sermos capazes de romper essas amarras e libertar nossas mentes e nossos corpos dessa escravidão. Logo que a vida acontece, naquele segundo em que nossa mente devaneia, o real se confunde com o inconcebível e o medo se disfarça de “eu posso”. E essa fagulha de felicidade pode perpetuar-se e nos fazer felizes novamente ao simplesmente recordarmos daquele segundo.

No meio do caminho tinha um monte nevado – Tinha um monte nevado no meio do caminho

O Monte Branco (em francês, Mont Blanc e em Italiano, Mont Bianco), fica exatamente na fronteira entre França e Itália. Uma das maiores, belas e imponentes montanhas dos Alpes com seus 4.808 metros.

A historia da primeira ascensão do Mont Blanc, datada de 08 de agosto de 1786, e´considerada por muitos o marco inicial da escalada mundo a fora e e´ repleta de mistérios e desacertos que ate hoje geram controvérsias.

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Os dois heróis do feito foram impulsionados por motivos distintos. O caçador de cristais e guia de montanhas Jacques Balmat vislumbrava a recompensa em dinheiro e o reconhecimento como renomado guia de montanha. Já o médico, botânico e alpista Michael Paccard, ansiava por realizar experimentos até então nunca empreendidos em tal altitude, o que o tornaria um cientista reconhecido da época.

A partir do momento em que os dois franceses optaram por não retroceder, nem contornar a montanha e sim escalá-la, eles comungaram do mesmo sentimento, o medo. Mas o ímpeto de atingirem o que nenhum outro homem ainda havia feito foi maior e alcançaram o cume do Mont Blanc, valendo-se de pouquíssimos recursos físicos e técnicos, levando apenas a coragem, que não significa ausência de medo, mas a supremacia sobre ele.

No meio do caminho tinha uma Montanha – Tinha uma Montanha no meio do caminho

O Dedo de Deus é menor que o Mont Blanc, é bem verdade, porém, não menos enigmático ou amedrontador. Símbolo do montanhismo brasileiro, estatelado a 1.692 metros de altitude na linda Serra dos Órgãos Teresópolis-RJ, é considerado uma das mais importantes montanhas do Brasil, figurando sempre entre a lista das montanhas mais belas de todo o mundo.

Provavelmente o marco inicial da escalada e montanhismo no Brasil e´sua primeira ascensão, a 8 de abril de 1912, pelo grupo teresopolitano capitaneado pelo ferreiro José Teixeira Guimarães juntamente com Raul Carneiro e os irmãos Acácio, Alexandre e Américo Oliveira. E isso aconteceu depois de algumas investidas fracassadas de grupos estrangeiros bem mais experientes.

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Meu encontro inusitado com essa gigante se deu a mais ou menos três anos, quando tinha apenas alguns meses de escalada e sequer sabia da importância, do comprometimento exigido e da dificuldade dessa empreitada.

Ao me deparar com um dos lances que me levaria ao cume do Dedo de Deus, denominado Maria Cebola, percebi que o substantivo “Cebola” agregado a Maria muito provavelmente tinha relação com a palavra choro. Não me couberam as lagrimas, no entanto talvez por falta de tempo, pois tinha que me assegurar de que transformaria todo o medo que me fora embutido durante anos, em coragem e, mais ainda, teria que confiar, que e´ quando acreditamos em algo sem a certeza absoluta de que dará  certo.

Nessa passagem delicada da escalada perde-se contato visual e verbal com nosso parceiro. E ao entrarmos numa rampa de aderência que nos possibilita somente o entalamento de mão esquerda, isto quando ela cabe na canaleta (rsrsrs), começa o sufoco. Para baixo o que se vê e’ um abismo sem fim, uma queda ali daria facilmente 20 metros ou mais entre pêndulos e rebatidas na rocha, pra depois ficarmos dependurados no vácuo.

Felizmente minhas investidas em confiar na montanha, surtiram efeito e desde então desenvolvemos uma relação de amor e confiança. Depois de mais alguns lances expostos e algumas chaminés claustrofóbicas, alcançamos o cume do Dedo de Deus.

A vista lá de cima e´surreal e valeu a pena cada centímetro que ascendemos.

Acredito que crianças ajam por instinto ao enfrentar seus obstáculos, e posteriormente são induzidas por nos adultos a reconsiderarem tanto ímpeto, em nome de uma tal ‘’segurança’’.

Mas tanto eu, um humilde aspirante a escalador, quanto os alpinistas franceses, o ferreiro José Teixeira e seus quatro comandados, ou qualquer outra pessoa em sua atividade de predileção temos que enfrentar nossos próprios medos, transformá-los em coragem e confiar.

Palavra que segundo o próprio Drummond significa ‘’um ato de fé e dispensa raciocínio’’, pois só assim alcançaremos o topo de nossas próprias montanhas.

Sempre haverá uma pedra no meio do caminho.

O medo me fascina

 – A.Senna

There are 8 comments

  1. Rosemary Oliveira

    Texto fantástico!!! Como fantástico é subir ao Mont Blanc, bom foi de teleférico; mas a emoção foi imensa, local lindíssimo. Indescritível imaginar o homem chegando ao cume, escalando. Precisa de muita coragem, vontade e amor a esse esporte.

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