O buscador e o dia mundial das montanhas e o banquete

Era uma vez um buscador¹. Como nômade, vagabundo ou peregrino, de tanto buscar, enfim um dia encontrou.

De longe as viu ali, amontoadas num canto, pareciam remanescentes de bombardeios, atingidas pela fúria do Enola gay², mas não só por alguns dias de agosto, e ele não estava do outro lado do mundo.

Notou-as vasculhadas e reviradas feito os bairros de Saigon retorcidos pela prepotência yankee.

Foto: http://www.aol.com/

Aproximou-se e, num toque mais acentuado e desprovido de cautela, despedaçaram-se como que tomadas por lepra. Percebeu que estavam ali há algum tempo, discriminadas dentre suas co-irmãs perfeitas e virgens. Agora ex-donzelas, que sucumbiram ao horror do estupro, sequeladas, mas ainda de pé.

Lembraram-lhe Cinderelas desoladas abandonadas até por Lúcifer, mas sem os dois sapatos, que agora não encontrariam mais seu par. Até os bichos que as namoravam tiveram que ir, por medo, desabrigo.

E quem lhes pediria agora a mão nesse estado deplorável, pensou. Sem dotes, pureza ou formosura, mutiladas, saqueadas e exploradas até quase não mais se sustentarem.

Como num remake trash de horror antigo que via quando criança com seu velho pai, imaginou-as usurpadas de suas riquezas, feitas escravas e arrancadas de seu lar, despedaçadas de dentro pra fora, arremessadas em navios negreiros sob rodas, todos ferozes baforando fumaça suja pelas ventas.

Triste, partiu perseguindo o barulho das buzinas e sirenes que ouvia logo ali, tão perto e tão longe.

Algum tempo depois encorajou-se e regressou até la num dia de sol, dia do sol (domingo),e era dia de visitas. Havia agora pessoas portando proteções na cabeça, que talvez ainda as recordasse de seus algozes do passado. Mas no lugar de pás, picaretas e dinamites, traziam cordas coloridas, ganchos e braços fortes a abraçá-las e enfeitá-las.

Foto: Horst Faas | https://namvietnews.wordpress.com

Alegrou-se pela primeira vez em tempos, pois se antes estavam esquecidas, feito traste inútil, sem mais valia, agora foram adotadas por loucos artesãos suspensos a repará-las. E que, com o cuidado de cirurgiões que operam em cama de campana, lhes penduravam adornos, como se fossem brincos e piercings, além de correntes e fitas que imitavam pulseiras ou colares, para que ninguém nunca  mais ousasse chamá-las de perigosas ou feias.

O que antes fora mutilado e extorquido por humanos em troca de um tal progresso, agora era amparado por outros, sabe-se lá em troca de quê.

Ali, quase contente, observando a alegria daqueles que encontravam paz em meio ao caos pós guerra, e tão perto da metrópole, imaginou então se um dia uma montanha nunca mais seria transformada à revelia em uma pedreira.

Dia mundial das montanhas

No próximo dia do sol (domingo) 11 de dezembro, será comemorado o dia mundial das montanhas. Resolvi então homenagear a mais preterida dentre elas, a Pedreira. Não podemos esquecer que, não fossem as pedreiras, talvez não houvesse as grandes metrópoles, não do jeito que as conhecemos.

Foto: Acervo pessoal Rui Paulo

Eu subo montanhas desde os oito ou nove anos de idade, talvez menos. Mas aprendi minhas primeiras técnicas de escalada em  montanhas há 196 finais de semana atrás, numa montanha de pseudônimo Pedreira, a Pedreira do bom e velho Dib. Um buraco encravado no alto da cidade de Mairiporã-SP, reduto de rapeleiros, slacklines e escaladores.

Com suas imensas paredes de granito retorcidas e esburacadas pela ação de dinamites durante os tempos em que foi explorada, um grande lago que se formou no meio dela, pequenas árvores, plantas e flores que teimam em crescer nos entremeios de suas paredes, é lá que encontramos paz e experienciamos o prazer de estar onde gostaríamos.

Foi lá também que pude contribuir com esse esporte que chamo de estilo de vida, participando da abertura de minha primeira via de escalada.

Abrindo uma via de escalada

Foto: Rui Paulo

A história toda começou quando Alex Vianna e Luís Albuquerque, que foram meus parceiros naquela trip insana no Espírito Santo, em que ficamos 2 dias embrenhados na montanha,me mandaram um “whats”, perguntando se eu ainda tinha um jogo de chapeletas ganhas no festival de escalada de Araxá-MG, um ano atrás. Como minha resposta foi positiva, marcamos para o dia 8 de outubro abrirmos uma via de escalada na Pedreira do Dib. Aproveitando a oportunidade chamamos alguns amigos que já vinham participando de um rateio para comprarmos a furadeira (martelete) necessária para a peleja, e combinamos um café da manhã comunitário por lá.

Logo após o café, começamos a feita e no estilo tradicional, de baixo pra cima, na base dos clifs, estribos, fifis e outros penduricalhos cujo nome nem sei. Tudo exigia muito equilíbrio, concentração e fé para não cairmos, pois equilibrar-se, segurar furadeira e furar a rocha ao mesmo tempo não e´ tarefa das mais fáceis.

Alex Vianna começou a brincadeira e cravou a primeira chapa na rocha. Na sequência subi guiando pra ver como ficava, e o grande bloco que seria a alavanca pra subir e costurar, simplesmente cedeu e despencou. Agora o lance ficaria muito exposto, então fixei uma chapa intermediária pra que ficasse mais seguro e inacreditavelmente esse lance se tornaria o crux da via.

Depois que Alex Vianna fixou mais duas chapas, nós nos demos conta de que não tínhamos parafusos suficientes para o término da via e, por volta do meio dia, decidimos ir até a cidade de Guarulhos procurar os tais parabolts. Sob olhares desconfiados e curiosos para o meu traje habitual (calça de lycra preta), recebíamos um “não” atrás do outro, até encontrá-los numa pequena casa de material de construção.

Foto: Rui Paulo

Foi quando Alex Vianna lembrou que não tínhamos levado também o equipamento para assoprar o pó de dentro do buraco da rocha, que e´ encontrado em farmácias e atende pelo singelo nome técnico de ducha anal (rsrsrs). Por motivos óbvios eu não desci do carro em nenhuma das investidas fracassadas do Alex Vianna em consegui-la. Assim, mesmo sem o artefato de nome e utilidades constrangedoras retornamos ao Dib e, por incrível que pareça, ainda tinha comida do tal café da manhã entre amigos. Após comermos, prosseguimos nos trabalhos de abertura da via.

Depois de muita tensão, esforço físico, técnico e psicológico, encontro com marimbondos, Luís Albuquerque despencando alguns metros, além de equipamentos de poder aquisitivo relativamente alto caindo montanha abaixo, finalizamos a via – uma das poucas dentre as mais de 60 vias da Pedreira do Dib abertas de baixo pra cima.

O Banquete

O que seria um simples café da manhã entre amigos tornou-se um genuíno banquete regado a guloseimas, gargalhadas e histórias de montanhas.

O Banquete também nomeia o célebre livro de Platão, datado de 385 aC, que descreve Eros (amor). Somente a paixão, dita finita e passageira, não seria capaz de fazer com que nos movêssemos com tanto afinco, perseverança e resiliência.

Foto: http://www.pantagruelista.com/

A via então recebeu o nome de “O Banquete”, seu grau está sendo sugerido pelos amigos escaladores que já entraram nela, entre um 5° sup e 6° grau, tem aproximadamente 25 metros com lances técnicos, que exigem boa leitura e até um esticãozinho pra dar uma adrenada.

Parabéns às Montanhas, muito obrigado por existirem e nos propiciar instantes de vida boa. Gratidão a todos que participaram do rateio da furadeira, ou que do seu jeito contribuem com a escalada nas montanhas. Gratidão também aos Srs. Alex Vianna e Luís Albuquerque por me permitirem acompanhá-los.

Foto: Acervo pessoal Rui Paulo

   “A perfeição é uma montanha impossível de escalar que deve ser escalada um pouco a cada dia”

    – Código Samurai

Glossário

  • Buscador¹ – Em algumas regiões do mundo é alguém que busca. Não necessariamente alguém que encontra ou que saiba o que está buscando. Simplesmente alguém cuja vida é uma busca.
  • Enola Gay² – Nome dado ao bombardeiro B-29 que lançou bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945.
  • Saigon Principal cidade e centro financeiro do Vietnã, trucidada pela guerra durante 40 anos.
  • Yankee – Em muitos países e nos mais variados idiomas se refere ao cidadão oriundo dos Estados Unidos da América.
  • Lúcifer – Nome do gato de Cinderela no clássico desenho animado de 1950.
  • Navios negreiros  – Navios de carga para o transporte de escravos, vindos especialmente da África.
  • Dia do sol – Sunday em inglês, o primeiro dia da semana. Dies Dominicus (dia de domingo) em latim.
  • Pedreira Tipo de mineração a céu aberto de onde rocha ou minerais são extraídos.

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