“No Fio da Navalha” – O relato de uma conquista de uma via de escalada tradicional

Para os amantes da Escalada Tradicional, entrar numa via recém aberta é sempre uma experiência incrível, e quando se trata de uma via com grau de dificuldade avançada e exposta, sempre ficamos imaginando como foi o perrengue da conquista da via.

Por isso, pedimos ao amigo e monstro da escalada Edemilson Padilha, que abrisse a “caixa preta” da Fio da Navalha, uma via dura e cheia de peculiaridades aberta na Pedra do Fio do Espírito Santo.

Além disso, trazemos em primeiríssima mão para os leitores da Revista Blog de Escalada o croqui da via!

Apertem os cintos, ou melhor, as cadeirinhas e vamos acompanhar de perto a aventura do trio de conquistadores!

Primeira vista das montanhas de Castelo, ES. Foto: Edemilson Padilha

Primeira vista das montanhas de Castelo, ES. Foto: Edemilson Padilha

Texto: Edemilson Padilha

4H30min da madruga, nós tínhamos conquistado 350 metros de via no dia anterior, e o Val acordou com um insight – mudar a estratégia. Na verdade, acho que ele não conseguiu dormir pensando nos reboques e decidiu encontrar uma alternativa mais “alpina”. E assim, seguindo sua inspiração divina, mudamos a estratégia e deu no que deu…

A incredulidade estava estampada no olhar de nosso novo parceiro de grandes paredes, o Élcio Muliki, enquanto organizávamos os equipamentos. Porque eu e o Valdesir Machado estamos acostumados a organizar uma quantidade enorme de equipos, entre friends, stoppers, cliffs, chumbaheads, cordas, costuras…

Mas o que parece exagero torna-se o necessário no final da escalada, quando já não sobram costuras e faltam friends.

A estratégia a ser usada nesta escalada foi uma incógnita desde o princípio, pois tínhamos parcas informações a respeito do tamanho da parede, da inclinação, da quantidade de fissuras, da existência de platôs e de quanto o sol iria nos fustigar. De maneira que levamos o que tínhamos para podermos decidir lá no pé da pedra o que carregar para cima.

Na viagem, ao som de muito rock’n roll, íamos teorizando qual estratégia seria melhor, se subir com os porta ledges, ou fixar cordas, ou se subiríamos jumareando com as mochilas nas costas ou rebocando um tambor que levávamos.

Ed abrindo o largo #12, no quarto dia de escalada. Fissura perfeita de 55 metros. Foto: Valdesir Machado

Ed abrindo o largo #12, no quarto dia de escalada. Fissura perfeita de 55 metros | Foto: Valdesir Machado

Toda essa discussão é importante para podermos estar bem inteirados de todas as possibilidades e chegarmos à alternativa perfeita para obter sucesso na escalada. Se formos analisar há tantas variáveis que a chance de algo dar errado é muito grande.

Depois de 19 horas de viagem paramos sob a tápia. Eram 14H30min da tarde e o sol já não iluminava a face tão desejada. Estava um pouco tétrico, a verticalidade e o tamanho da parede nos assustava. O pensamento que nos assaltou foi o de que daria muito trabalho.

Com o auxílio do Felipe, morador local, demos uma volta por lá para escolher o nosso caminho pra cima. Depois de muitos espinhos na sola do pé, escolhemos iniciar por uma faixa branca que parecia um pouco mais recortada de agarras e fissuras. O plano inicial, era no primeiro dia de escalada fixar o que tivéssemos de cordas para depois decidir a estratégia.

E eis que o grande momento chegou, e às 4H30min do sábado estávamos acordando no refúgio da família Spilare. Quando amanheceu, já estávamos equipados para iniciar a escalada. Ainda com aquele estranhamento dos primeiros metros e a confusão de cordas, furadeira, equipamentos móveis e tudo o mais.

Ed guiando o terceiro esticão. Foto: Valdesir Machado

Ed guiando o terceiro esticão | Foto: Valdesir Machado

Pelo perrengue já nos primeiros metros, percebi que a rapadura não ia ser doce, nem mole. Tentei aproveitar cada fissurinha que encontrei pelo caminho e consegui abrir 3 esticões batendo apenas duas chapeletas, fora as de parada. Veio o Val e conquistou mais duas bem trabalhosas; eu e o Élcio tínhamos de cuidar dele e lembrá-lo de bater chapa antes de chegar em algum local em que não pudesse puxar a furadeira. Acho que é a idade.

Depois o Élcio pegou a “punta caliente” da corda e já entrou numa aderência dura para colocar em prova suas habilidades graníticas. Ao final do dia tínhamos 350 metros de via e uma visão não muito animadora de nosso futuro. O dedo era extremamente vertical e parecia não ter tantas fissuras quanto imaginávamos. Além disso, o platô para dormirmos era vertical também, sem nenhuma parte plana. Descemos felizes e angustiados até o refúgio.

Jumareando no segundo dia de escalada, dia em que subimos de mala e cuia. Foto: Edemilson Padilha

Jumareando no segundo dia de escalada, dia em que subimos de mala e cuia. Foto: Edemilson Padilha

Sempre levo o violão para fazer um som, mas nestas expedições a gente fica tão concentrado na escalada, que não da ânimo de tocar, e nessa noite não foi diferente. Nossa estratégia, amplamente discutida durante o jantar, era a insossa ideia de rebocarmos porta ledges e um tambor cheio de água, mas parecia não haver outra solução.

Nos muitos anos trabalhando com administração de empresa, percebi que sempre há uma solução mais simples e mais perfeita para um problema, e que muitas vezes aceitamos uma solução mais ou menos por não termos encontrado esta perfeita. Eu já estava até conformado com as muitas horas de reboque, mas durante a noite, em seu sono angustiado, o Val teve uma iluminação divina e acordou eufórico.

Suas palavras: “parem com essa ideia de carregar muito peso, nós já dormimos em lugares piores que aquele platô e já carregamos muito peso nas costas jumareando em rampas, vamos usar uma estratégia mais leve”. Isso… era isso que precisávamos, mudar a maneira de encarar o desafio. Não precisou falar mais nada, tomamos café e partimos.

Élcio no delicado esticão de número 6. Foto: Edemilson Padilha

Élcio no delicado esticão de número 6. | Foto: Edemilson Padilha

Algumas horas depois estávamos de mala e cuia no final das cordas fixas; com mais um esticão de corda chegamos a um platô um pouco melhor. Dali pra cima seguia uma fissura perfeita e dura que o Val guiou com maestria. Eu fiquei tentando fazer uma terraplanagem na nossa nova casa, mas não obtive muito sucesso; meus parceiros desceram já estava escuro e reportaram que para cima a coisa complicava.

Terceiro dia de parede, horário de sempre, 4H30min, sobem eu e Élcio, meu parceiro continua o 10º esticão, leva uma queda, corta o dedo e o queixo e desce. Subo eu, tento em livre, sem sucesso, começo os furos de cliff, um estoura e me esborracho contra a parede e também corto a mão. Mas não tinha o que fazer, engoli o choro (rs) e terminei o serviço.

Progresso lento e no final do dia chegamos na base de uma bela fenda, todavia ainda distante do cume. No bivaque o menu foi comida liofilizada (feijão), água racionada e uma noite de agonia, porque se o próximo dia rendesse mal talvez não atingíssemos o topo, pois já estávamos com a água no limite.

Valdesir Machado enfrentando a fissura para cima do platô de bivaque. Foto: Edemilson Padilha

Valdesir Machado enfrentando a fissura para cima do platô de bivaque. Foto: Edemilson Padilha

Às 4 da madruga o galo cantou. Café de saquinho, umas bolachas pra dentro e coloquei os jumares nas cordas fixas. Uma jumareada no vazio, mais duas outras bem verticais e aportei na base de imensa fenda. Desde o princípio vi que faltariam peças grandes e fui usando e voltando buscar; por 55 metros lutando, em muitos trechos tendo que limpar a fenda cheia de terra até por fim bater uma parada pendurada para machucar um pouco mais as nossas pernas que já estavam cortadas de tanta verticalidade.

Élcio novamente na ponta, fenda larga, offwidth e chaminé, nas suas palavras “interminável”. A chaminé, na verdade, era uma laca encostada na parede, vazada dos dois lados com extensão de 60 metros aproximadamente. Em alguns pontos tinha apenas alguns centímetros de espessura, o que dava um pouco de medo. Outra parada pendurada e o Val pega a corda para nos levar até o topo, numa batalha para encontrar fissuras na parte final, muitas delas cheias de terra devido à vegetação do topo.

Lá pelas 3 da tarde pisamos o topo do dedo da Pedra do Fio. Fotos, últimos goles de água e iniciamos os rapéis. Parecia que uma tormenta nos atingiria, ficou tudo escuro, mas só não choveu em nós, porque víamos chuvas por todos os lados. Foi um suplício descer tudo aquilo sem água, mas às 23:00H adentramos o refúgio.

Val pronto para escalar a fissura perfeita do largo #9. Foto: Edemilson Padilha

Val pronto para escalar a fissura perfeita do largo #9 | Foto: Edemilson Padilha

No final, o sucesso da empreitada se deveu à estratégia adotada. Se não fosse a insônia do Val, talvez tivéssemos nos atrasado e perdido a janela de bom tempo. Estratégia correta, escalada perfeita!

Batizamos a via de No Fio da Navalha, pois é por onde andamos naqueles últimos 4 dias de vida intensa, em que, como sempre a parceria dos amigos foi fundamental, valeu… Roberto Teles, Naoki Arima do Espirito Santo pelas informações, e o empréstimo de equipos Willian Lacerda e Alessandro Xerife Haiduque!

A chaminé final era uma laca de 60 metros de altura encostada na montanha, formando uma chaminé. Foto: Edemilson Padilha

A chaminé final era uma laca de 60 metros de altura encostada na montanha, formando uma chaminé. Foto: Edemilson Padilha

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Ufa, grande empreitada da galera e mais uma delícia de via à disposição dos malucos de plantão e como sempre, ficamos com as lições que a escalada e especificamente abrir vias novas nos traz.

Como a importância de planejar a ação, avaliar cada situação que se apresenta, administrar bem o tempo, contar com uma equipe com as competências e habilidades necessárias, gerenciar os riscos, ser rápido na tomada de decisões, conhecer bem o acesso ao pico, ter bom relacionamento com o pessoal local, mudar a estratégia se necessário, e é claro, ter os amigos por perto para dar aquela forcinha extra!

Foto no topo: Edemilson Padilha

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