Montanhismo e construção de sentido: restituindo nossa capacidade de assombro

“Mantenhamo-nos em alerta frente ao máximo perigo que existe, a saber: que a vida se torne para nós uma coisa trivial. Qualquer que seja a matéria que temos que dominar e os meios que se encontram à disposição, não se deve perder aquele calor no sangue que nos põe em contato imediato. O inimigo que o possui vale mais que o amigo que o desconhece”.

Essa advertência foi escrita nos anos 20 do século passado pelo alemão Ernst Jünger, um filósofo pouco conhecido no Brasil, mas cujas reflexões são bastante importantes para compreendermos o sentido das atividades humanas que poderiam ser enquadradas em uma categoria que, genericamente, chamaríamos de “aventura”, onde incluiríamos o montanhismo e os demais esportes realizados em ambientes naturais.

Jünger foi um crítico do poder da técnica e de seu domínio no mundo contemporâneo e suas intuições filosóficas antecedem em muitos anos os problemas que estamos vivenciando no atual contexto tecnológico e globalizado. Para Jünger, um dos grandes problemas do mundo da técnica é que nos faz perder nossa capacidade de assombro: “Fé, piedade, audácia, capacidade de entusiasmo, de estabelecer um vínculo amoroso, qualquer que seja seu objeto, em resumo, tudo aquilo que esta época há revelado contundentemente como uma bobagem, ali onde o percebamos, nossa respiração se tornará mais ligeira (…). Tudo isso se relaciona com aquele estado simples que eu denomino assombro, aquele fervor na recepção do mundo e o grande prazer de abraça-lo como uma criança que olha uma bola de cristal”.

Mas o que seria o “assombro” de Jünger?

Assombrar-se é maravilhar-se, é perceber o mundo de uma maneira singular e perceber aquilo que é singular no mundo. O mundo técnico é padronizado, massificado e controlado, opondo-se ao mundo natural pela imprevisibilidade e diversidade deste. O montanhismo é uma atividade que nos permite um retorno ao mundo natural e, pela intensidade das vivências proporcionadas por esse tipo de atividade, nos restitui nossa capacidade de assombro. Na montanha, quantas vezes nos maravilhamos com um pôr-do-sol que nos parece sem igual! Com as linhas e nuances de uma parede rochosa, cujo jogo de cores é formado por uma conjugação particular entre sol e nuvens! Com a vista peculiar desde um cume que poucos seres humanos tiveram! Com as múltiplas tonalidades de luz e sombra que variam conforme a hora do dia e nossa posição: em um vale profundo, subindo por uma aresta exposta, na verticalidade de uma encosta…!

Foto: Marcelo Delvaux

Em suma, nossa capacidade de assombro se reflete na possibilidade de percepção de aspectos únicos, singulares e não repetíveis da realidade. E isso faz bem, porque ajuda a construir um sentido para nossa existência, sentido que, muitas vezes, é transcendente, ou seja, está além da linguagem e dos conceitos que utilizamos para representar o mundo e nos comunicarmos. Percebendo aspectos singulares, construímos um sentido também singular, que somos capazes de compreender, mas não de transmitir. Se para alguém faz sentido subir uma montanha, para outras pessoas não fará sentido algum.

Talvez por esse motivo Jünger chame o risco da vida se tornar uma coisa trivial de “perigo máximo”: porque assim perdemos vitalidade, ao não conseguirmos construir relações de sentido para aquilo que percebemos na realidade, que não mais se revela em sua singularidade, mas sim como algo banal. Ao nos restituir nossa capacidade de assombro, o montanhismo nos traz vitalidade, ajudando-nos a estabelecer um sentido para nossa presença no mundo.

Na montanha nos sentimos mais vivos do que nunca, ao contrário do que pensa o senso comum, e voltamos cansados, mas ébrios de energia vital e repletos de novas ideias e projetos. Quanto mais exercitarmos nossa percepção dos aspectos singulares da existência, maior será nossa capacidade de produção de sentido, ajudando-nos a viver gozando da plenitude do mundo.

Obs.: as citações de Ernst Jünger foram extraídas de seu livro “Anotaciones del día y de la noche“, livremente traduzidas ao português por mim.

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