Menino com paralisia cerebral escala montanha nas Dolomitas

Por: Katrina Rast

Getulio nasceu há 14 anos com paralisia cerebral, condição que os médicos reportaram à família e o deixaria paralisado por toda a sua vida.

Aos quatro anos de idade, ele foi aconselhado a começar a usar uma cadeira de rodas e que imediatamente recusou. Getulio disse aos médicos, e à sua família, que iria aprender a andar. Os 5 anos vieram e nada. Aos 6 anos, nada. Aos 7 anos, Getulio deu o seu primeiro passo. Isso já seria uma conquista que ninguém imaginaria ser possível, mas como reverberam suas próprias palavras, “o impossível não existe”.

Sua determinação inspirou pessoas ao redor do mundo, dando esperança às que a tinham perdido. Eu tinha visto alguns vídeos sobre ele, que falam sobre sua vida e as realizações incríveis que ele havia feito, mas nada poderia me preparar para o que estaria por vir nos próximos dias.

Em 17 de abril de 2019, viajamos de Chamonix, na França, para Milão, na Itália, para conhecer a equipe da Lyfx que chegaria ao aeroporto naquela tarde. Getulio também estava chegando naquela noite e, em seguida, todos nós iríamos juntos para La Villa, nas montanhas Dolomitas, ao norte da Itália. O objetivo era escalar a Punta Penia, na Marmolada, o ponto mais alto das Dolomitas e um dos pontos mais altos dos Alpes.

Quando Pedro McCardell nos perguntou se queríamos fazer parte da equipe da expedição, instantaneamente pensamos que deveríamos aceitar. Eu cresci nas montanhas e sabia que havia muita neve para esta época do ano, então pensei que escalar não seria realmente possível.

Foto: Katrina Rast

Mesmo para uma pessoa em forma, sem deficiência, seria difícil. No entanto, compartilhar as montanhas com eles já seria o suficiente.

A primeira vez que nos encontramos com Getulio, o vimos à distância, com um grande carrinho de malas, empurrando-o enquanto arrastava os pés de maneira laboriosa. Eu pensei, por que ninguém estava ajudando ele? Na próxima semana, isso seria respondido. Imediatamente, o garoto se apresentou com tanta confiança e sinceridade, nossos corações se derreteram. Os vídeos eram verdadeiros! Ele agradeceu a todos do fundo do coração pela oportunidade e com tal crença, todos nós tivemos uma lágrima em nossos olhos. Não nos importava se ele subisse a montanha; ele já era um sucesso.

Chegamos em La Villa muito tarde, depois da meia-noite, o que deixou todos exaustos. O grupo, que era principalmente do Brasil, vindo de cinco horas para trás, e não tendo dormido no voo, estava exausto. Mas o tempo ainda nos empurrava uma outra questão prioritária. Os escaladores tinham uma janela de oportunidade de 10 dias para a investida, mas a única janela real de oportunidade climática iria aparecer nos dias seguintes. Se não agíssemos naquele instante, seríamos recebidos com semanas de ventos fortes, mais neve e tempo ruim.

Getulio foi rapidamente equipado por Pedro no dia seguinte, e deu seus primeiros passos em uma pequena colina para um teste, aprendeu sobre o equipamento de segurança e conheceu seu guia Alessio Nardelotto.

Escalar a Marmolada envolve cruzar uma geleira com enormes fendas e gretas, depois, uma escalada íngreme, as vezes em 90 graus, que exige cordas, crampons e piqueta. Só para aumentar a dificuldade, havia uma camada de neve profunda fazendo a caminhada quase impossível, e muita neve congelada cobrindo os cabos que deveriam ajudar na escalada e que não mais existiam.

Para tentar ajudar na caminhada na neve profunda, eles usavam raquetes de neve (uma grande plataforma de plástico para evitar que você afunde na neve), o que seria muito difícil de ser utilizado por alguém que não pode levantar os pés normalmente. Resumindo, em uma hora, Getulio progrediu apenas 50 metros. Se ele fosse fazer o cume, ele teria que andar nesse ritmo por 40 horas seguidas, e a subida só ficaria mais difícil do glacial para a frente. Todos que estávamos no grupo de apoio pensamos que era simplesmente impossível.

Entristecidos, todos tentamos esconder nossas emoções de Getulio na noite anterior. Pedro conversou por algumas horas com Getulio e voltou com a notícia de que eles estavam determinados a continuar e iriam em frente com o plano.

Estávamos todos nos preparando mentalmente para o pior. Em grupo, pegamos o antigo “elevador” até Pian Dei Fiacconi, nosso acampamento base, onde passaríamos a noite antes de fazer uma tentativa no dia seguinte. Até estávamos familiarizados com a rota, vista apenas por mapas, mas não para o que ela nos tinha preparado como realidade. Chegando ao acampamento base, um infinito e profundo campo de neve branca se estendia até a geleira, muito mais comprida e íngreme do que parecia nas fotos, seguido por um penhasco muito íngreme e congelado, por onde eles deveriam subir. Como poderia um menino, que não consegue levantar os pés, possivelmente subir esta montanha? Comecei a sentir um pavor esmagador e me perguntei por que eles haviam escolhido esta montanha.

Naquela noite, vimos um Getulio sombrio. Eu acho que a realidade do que ele estava querendo alcançar pesou muito sobre ele naquele momento. Muitas discussões foram abordadas para possíveis rotas de fuga, mapeamento de áreas de avalanche, e resgates com o helicóptero.

Queríamos muito que eles conseguissem, mas como isso poderia acontecer? Eles haviam levado 1 hora para andar 50 metros na neve a onde não era muito inclinado, e seriam confrontados com uma parede de gelo muito, mas muito mais íngreme e um aumento de 700 metros de elevação os levando para os 3.343 metros e o ponto mais alto das Dolomitas, o patrimônio mundial da UNESCO!

Às 4 e poucos da manhã, alguns de nós acordamos. Às 5:30, Getulio Felipe e Pedro McCardell entraram na área do café, concentrados e falando minimamente um com o outro, e calmos. A seguir entraram o guia Alessio Nardelotto, o alpinista Alberto Benchimol e o fotógrafo Stefano Fabris.

Eles sairiam à primeira luz do dia, esperando que o intenso frio da noite anterior trouxesse uma camada de neve mais compacta. O rosto de Getulio estava distante, possivelmente de tanta concentração.

Todos nós os conduzimos até os que os primeiros passos fossem dados em direção a montanha, com muita esperança em nossos corações. Pedro trabalharia com Alessio auxiliando Getulio o tempo todo, enquanto Alberto e Stefano trabalhariam como uma equipe de apoio, separada, para segurança e captação de algumas imagens. Com a face de pura determinação e poucas palavras, Getúlio, Pedro e Alessio, partiram, um passo de cada vez, desaparecendo rapidamente da nossa vista.

O restante do grupo voltou para contemplar o nascer do dia. Nós íamos escalar a crista oeste para não interferir na expedição e tentar filmar a investida com um drone, principalmente a etapa da parede que levaria à crista, antes dos cume de Punta Penia.

Partimos uma hora depois, esperando que eles ainda estivessem próximos e esperançosamente em algum lugar na aproximação para a geleira. Mas não conseguimos encontrá-los. Então nós subimos pela cordilheira oeste, onde já era muito alto, estávamos quase nivelados com a parede íngreme e distante onde eles deveriam atingir em algum momento. E para nossa surpresa, quando chegamos a parte mais elevada do monte, lá estavam eles, apenas 100 metros abaixo da parede de gelo! Nenhum de nós poderia acreditar, mas víamos com nossos próprios olhos! Mesmo para chegar a este ponto, já era uma conquista incrível, então pensamos que se eles pudessem chegar à base da parede de gelo, isso já seria o suficiente, e poderiam voltar. Pelo rádio, Pedro nos passava algumas informações sobre as condições de saúde e segurança da equipe, mas pelas poucas e intensas palavras, eles pareciam exaustos. Nós só podíamos imaginar o que Getulio estaria passando. A equipe sugeriu retornar uma ou duas vezes, mas Getulio dizia que estava bem, feliz e queria continuar.

Às 11:00, chegaram ao início da enorme Via Ferrata coberta pelo gelo, esse era o horário limite para continuar. Eles provaram que todos nós estávamos errados. A velocidade em que caminharam até lá e a pura determinação da equipe tinham um efeito quase alucinante sobre nós. A neve estava muito solta e perigosa, onde víamos pequenas avalanches acontecendo, e a parte seguinte, ainda estava a mais de 100 metros de desnível acima daquele enorme penhasco. O grupo se reuniu e ofereceu a Getulio que se ele quisesse, poderiam voltar e criar uma nova oportunidade. Mas Getulio recusou! “Não! Nós subimos! ”. Ouvir isso no rádio fez todo mundo gritar de alegria! Até mesmo escrever isso agora traz lágrimas aos meus olhos. O trio, conectado apenas com uma corda, e equipado com grampos e machados de gelo, totalmente expostos, partiu para avançar em direção à parte mais difícil da escalada.

Com corações apertados, todos nós procurávamos por eles, e esperávamos onde iriam reaparecer. Ainda nos perguntamos como eles poderiam escalar um penhasco tão íngreme quando Getulio não poderia levantar os pés. Subir neste estilo de alpinismo é difícil para qualquer pessoa em excelentes condições físicas. Esse tipo de escalada seria o equivalente a uma pessoa sem deficiência escalar o Monte Everest sem oxigênio. O rádio ficou em silêncio. Minutos se transformaram em horas. Mesmo se eles conseguissem escalar a parte íngreme e exposta, haviam outras algumas horas caminhando na neve profunda até o cume. Eles estariam exaustos da escalada. Como encontrariam energia para chegar ao topo? Talvez eles pudessem carregá-lo?

De repente, o rádio voltou. Pedro estava cansado, mas calmo, e informava que não só a equipe havia passado a parte mais complexa da escalada, mas já estavam a quinze minutos do topo! Um passo de cada vez, e Getulio, Pedro e Alessio seguiram adiante até o ponto mais alto das Dolomitas.

Nós estávamos em lágrimas e cheios de alegria! No dia 21 de abril, domingo de páscoa, e 9 horas após a partida, eles fizeram o impossível.

E nós, estávamos todos errados!

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