A história do Yosemite Decimal System: A graduação norte-americana de escalada

Da mesma maneira que falar sobre aborto para pessoas muito religiosas, intervenção do estado para economistas liberais e streaming para pessoas que tem TV a cabo, tocar no assunto de graduação de vias de escalada também causa polêmica. Uma boa prova disso é que existem vários sistemas de graduação de vias de escalada ao redor do mundo.

As mais utilizadas, ao menos as mais difundidas, são a francesa e a norte-americana. A graduação francesa, inclusive, é a mais utilizada no mundo e é a utilizada para graduar as dificuldades das vias na Copa do Mundo de Escalada, Campeonato Mundial e Olimpíadas. Nos principais centros do mundo de escalada, a graduação francesa é a utilizada sem o menor problema de “identidade nacional”.

Porém, a segunda mais utilizada, ao menos no continente americano, é a graduação norte-americana. Na América do Sul, apenas para exemplificar, Colômbia, Uruguai e alguns escaladores do Chile, utilizam este sistema.

Mas, como ele foi criado e desenvolvido?

Yosemite Decimal System

Yvon Choinard quando tinha 40 anos em Yosemite | Foto: Tom Frost

O Yosemite Decimal System (também conhecido como YDS, ou graduação norte-americana), é uma sequência de números e letras, aparentemente dispostas de maneira ilógica e anti-matemática. O sistema começa com o número 5.0 e sua parte decimal vai para o “infinito”.

Poucos sabem, mas o próprio nome já possui um erro. O sistema de classificação YDS nasceu nas paredes de granito do sul da Califórnia, mais precisamente em Tahquitz Rock. Na época os escaladores locais tentavam categorizar todas as vias que utilizavam corda em uma escala de 5.0 (o mais fácil) para 5.9 (o mais difícil).

O(A) leitor(a) já deve estar se perguntando o motivo de ser “5” o número principal. Para isso é necessário entrar nos livros de história americanos sobre montanhismo. No início do século XX, quando o tradicional Sierra Club, associação ecologista das mais importantes dos EUA, era muito mais dedicada a aventuras e excursionismo do que ecologia, a entidade procurou classificar os terrenos a serem explorados.

Desta maneira, foi classificado como:

  • 1.0 – Caminhadas simples em uma trilha ou atividades de cross-country (corrida em terreno aberto ou acidentado).
  • 2.0Caminhadas em que ocasionalmente os caminhantes podem precisar usar as mãos para se estabilizar.
  • 3.0 – Encosta inclinada e íngreme.
  • 4.0 – Terreno muito íngreme, cume atravessando, com escalada fácil na qual uma queda resultaria em morte.
  • 5.0 – Ponto em que a maioria das pessoas iria amarrar-se a uma corda e agarrar-se à parede.
  • 6.0 – Subida é tão difícil que ajuda artificial é necessária.

Como o quinto nível de caminhada e ascensão, foi necessário utilizar subdivisões para classificar a dificuldade. Porém o conceito de escalada livre não existia, muitos se apoiaram na teoria de que se estava ascendendo desde o solo, sem uma corda vinda de cima, era uma escalada.

A partir disso, durante as décadas de 1940 e 1950, grupos de escalada (incluindo o Sierra Club) começaram a graduar diferentes vias de escalada em Tahquitz. Mas as escaladas ainda eram graduadas de maneira empíricas e careciam de uma maior “precisão”.

Na época o lendário escalador Royal Robbins, que fez história em Yosemite nos anos 1960, conseguiu estabelecer de maneira mais orgânica a graduação, fazendo com que o máximo fosse um 5.9 no sistema americano (atualmente seria o equivalente a um 5º brasileiro).

Assim como muitas coisas nos EUA, a cultura da Califórnia acabou por influenciar todo o resto do país. Desta maneira o “Sistema Tahquitz” já era amplamente utilizado em todo o país. Mas como o principal consolidador dos graus mais difíceis foi para Yosemite, acabou sendo batizada por um consenso entre a comunidade como Yosemite Decimal System.

O consenso foi até relativamente fácil de conseguir, pois como Yosemite é a meca da escalada norte-americana, foi amplamente adotado como o padrão a ser seguido. Quando foi adotada em outros grandes centros de escalada como Eldorado Canyon, no estado do Colorado, e Gunks, no estado de New York, se estabeleceu como o padrão da América do Norte.

As letras

Apesar de ser amplamente adotado no território americano, ainda persistia um pequeno “problema” no sistema: a parte decimal era imprecisa e gerava muita discussão (mais do que temos hoje). Segundo relatos históricos em literatura que narra a história da escalada nos EUA, não existia consenso a respeito do que seria um 5.9.

Isso porque as escaladas estavam ficando cada vez mais difíceis. O resultado foi uma solução bem parecida com a francesa: adicionar um “+”. Além disso, rapidamente foi refutada a ideia de que havia um “limite” para a via mais difícil do mundo. Mas ainda persistia a ideia de que haveria um grau máximo, quer seria o 5.9, respeitando uma metodologia decimal (lembrando que de zero a nove, são 10 algarismos).

Com tantos escaladores talentosos quebrando barreiras todo o tempo, possuir uma noção imutável de que havia um limite para a escalada, parecia ir contra a filosofia do esporte. Assim “nasceram” também os graus 5.10, 5.11, 5.12…

Mas ainda faltavam uma “sintonia fina”, que desse mais exatidão no grau de dificuldade de uma via. Portanto, a partir de 5.9 haveria uma subdivisão que desse uma ideia maior da dificuldade. Essa sintonia fina foi proposta pelo escalador Jim Bridwell no final dos anos 1960, que percebeu que, à medida que as escaladas aumentavam em dificuldade, mais sutileza era necessária para descrevê-las.

Hoje, não pensamos nesses graus como subdivisões dentro do seu número, mas como passos significativos na dificuldade. Portanto a diferença entre 5.10c e 5.10d (6º grau e 6ºsup brasileiros) é tão significativa quanto a diferença entre 5.8 (5º grau brasileiro) e 5.9 (5ºsup brasileiro).

O limite

No final dos anos 1960 e início dos anos 1970 foram vistas muitas outras mudanças nos graus de escalada que foram além das subdivisões das letras. Provavelmente o maior deles, foi um movimento gradual no sentido de subir os graus de escalada com base na dificuldade geral de todo à volta.

Em vez de graduar apenas no único movimento mais difícil da via, como o YDS propunha originalmente, a escalada deveria ser entendida como um todo. Isso foi parcialmente causado pelas escaladas livres e escaladas limpas. Os escaladores deixaram de valorizar as vias por si só com o único objetivo de chegar ao topo, e começaram a ver mais como um “jogo” em que o objetivo era “libertar” todo o campo sem cair ou depender de ajuda.

Foto: Sender Films

Uma vez que este foco mudou para a escalada livre, ficou óbvio que algumas vias poderiam ser “irregulares” uma longa sequência de movimentos 5.9 poderia facilmente se tornar um sólido 5.10 ou mesmo 5.11. Isso porque junto da escalada livre, surgiu o conceito de encadenar uma via (escalar sem se apoiar na corda, sem descansar e segurar somente na rocha)

Hoje, as escaladas esportivas e tradicionais nos EUA levam em consideração algum tipo de esforço ou resistência na “conta” de graduar a via.

Um outro ponto importante para a consolidação da escalada norte-americana, ou YDS, é a admissão de que não há um “teto”. Podendo sempre ser atualizada a tabela de graduação à medida que alguém rompe uma barreira.

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