Dolomitas rocktrip: Como é escalar as grandes faces dos Alpes Italianos

Guia Escaladas Dolomitas

Aproximando as Torres Sella | Foto: Acervo pessoal Cissa Carvalho

Poucas coisas são tão boas como saber que você vai tirar férias, e melhor ainda se vier inesperadamente. Estava achando que ia trabalhar sem parar até novembro quando a oportunidade de tirar férias coincidiu com a visita de um dos meus melhores parceiros de escalada, que vive nos Pirineus Espanhóis mas já fez várias temporadas em Chamonix e nas Dolomitas.

Com duas semanas de tempo, tínhamos o plano ambicioso de começar pela face norte do Matterhorn e depois a norte do Piz Badile já que ele está completando seu projeto de grandes nortes dos Alpes, e depois disso iríamos paras Dolomitas, que é um lugar que eu queria muito conhecer. Uma semana de mal clima acabou despejando muita neve em ambas montanhas, mas mesmo assim conseguimos escalar um pouco de fissuras em granito no Vale de Bregaglia na Suíça antes de descer pras Dolomitas, e daí pra frente foi só alegria.

A janela de mal tempo que não nos permitiu algumas escaladas se transformou numa janela de excelente tempo na Itália,que nos proporcionou dias perfeitos de escalada, e como prêmio maior, voltamos com uma das grandes caras nortes dos Alpes: a Cima Grande de Lavaredo.

As Dolomitas

As Dolomitas são uma cadeia de montanha parte dos Alpes, localizada no norte da Itália, mas com uma mescla de cultura austríaca e italiana. É um lugar único que reúne todo tipo de escalada e de todos os estilos e éticas, com acesso bastante fácil, e vias para todos os níveis. Tanto um super novato quanto um escalador de elite não esgotariam as opções de escalada por lá.

Além disso, suas paredes estão cobertas de vias de nomes importantíssimos da escalada e alpinismo mundial, de Messner e Dimai a Ueli Steck e Alex Huber. É uma escalada em calcário geralmente sólido, atlética, com vias de difícil leitura e proteção, portanto é bom “aquecer” bem antes de se jogar nas vias mais difíceis. Talvez por eu não estar acostumada à esse calcário compacto das Dolomitas, o grau me pareceu difícil.

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MInha primeira enfiada nas Dolomitas, Segunda Torre Sella | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

O clima no geral é bastante amigável mas no verão as temperaturas podem chegar ao insuportável, mesmo nas montanhas que ultrapassam os 3 mil metros de altitude.

As Dolomitas tem uma beleza única, de rochedos contrastando com campos de grama verde contra o céu azul inigualável dos Alpes, e vale uma visita longa, ou uma temporada inteira, ou várias. É desses lugares apaixonantes que a gente namora no cartão postal, e que quando chega, vira paixão à primeira vista. Um lugar acolhedor a ser descoberto e explorado por mais brasileiros.

Segunda Torre de Sella

Num dos primeiros cols para chegar nas Dolomitas, o Passo Sella, tem 3 torres lindíssimas ao lado do Pico Ciavazes e de frente para o Sassolungo, este último com vias de mais de 1000 metros. Optamos por esquentar na segunda torre, na via Messner, uma clássica da região, mas ao chegarmos no pé da via estava bastante molhada e então partimos para via Kasnapoff (V+, 300 m), que vai por boa parte da aresta da montanha.

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Terminando a via Gross no Sass Pordoi | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

15 minutos de aproximação com pouca subida (que luxo), e lá parti eu para primeira enfiada. Guiei móvel poucas vezes em calcário (na Costa Blanca na Espanha) e o daqui era um pouco diferente. As Dolomitas são notórias por terem leitura de via difícil, e além disso é mais difícil encontrar boas proteções para quem está acostumado com o granito quase perfeito de Chamonix. Não demorou para eu perder bastante tempo me perdendo em algumas enfiadas e quebrando a cabeça para proteger mesmo uma via fácil como essa.

O destaque da via foi um lindo diedro de quase 40 metros, bastante vertical e atlético. De lá saímos para a aresta e então para o cume. E aí vem mais uma característica das Dolomitas, as descidas absolutamente nojentas: rapéis e desescaladas expostas, pedregulhos soltos na beira de precipícios, mais rapel, mais pedregulho, e enfim, tres vezes mais tempo para descer que para aproximar.

Passo Pordoi

Pordoi é outro col bastante interessante com vias de dificuldade e duração moderada. Tínhamos escolhido uma via mas acabamos entrando em outra pela dificuldade de localizar na parede.

No final fizemos a maior parte da Via Gross (V-, 300 m) com algumas variações bastante interessantes. A via tinha alguns pitons mas nas partes onde não havia fissuras era esticar e tocar para cima.

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Cume na Segunda Torre Sella | Foto: Acervo pessoal Cissa Carvalho

Começamos por um diedro que levava a um platô e logo outro diedro. Eventualmente uma travessia aqui ou ali e mais diedros. O calcário desta região tem muitas protuberâncias, o que não quer dizer que todas sejam excelentes mãos ou pés, e normalmente as fissuras são bastante irregulares. Na Costa Blanca eu escalava com dois jogos de nuts pois iam melhor que os camalots, mas aqui fui aos poucos percebendo que camalots iam melhores ainda que nem sempre em colocações perfeitas.

A via termina na estação de teleférico, onde, assim como no Rio de Janeiro, pulamos a cerca e somos rodeados de turistas tirando fotos. Organizamos o material por ali e já percebi melhor o padrão da escalada das Dolomitas, que pedia bastante criatividade para proteger com os móveis, além de ser uma escalada relativamente física e sustenida, bastante diferente do que estou acostumada aqui. Tudo isso para dizer que pro meu parceiro estava sendo um passeio, mas eu estava apanhando bastante.

Outra descida nojenta patinando em pedregulho e lá fomos nós correr atrás de wi-fi de novo para verificar a previsão do tempo.

Tre Cime de Lavaredo: Face norte da Cima Grande

A Cima Grande de Lavaredo (2.999 m), junto com Grandes Jorasses, Drus, Matterhorn, Eiger e Piz Badile, é considerada uma das grandes faces nortes dos Alpes.

De todas elas, a Cima Grande é a menos “alpinismo” e mais “escalada em rocha”, pois tem uma aproximação de 1 hora quase em plano que passa por um ou outro neveiro, mas sem necessitar cruzar glaciar, além de ser escalada em rocha pura.

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Sass Pordoi | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

Por outro lado, é a mais exigente em termos de escalada em rocha propriamente dita, sendo que a via mais fácil da parede é um 7 a em móvel. Além disso, a parede é negativa, o que torna os rapéis difíceis e não recomendados, aumentando portanto o grau de comprometimento.

Já tínhamos 3 dias seguidos de escaladas moderadas, e queríamos descansar, mas o tempo ia virar e o dia seguinte, um domingo, seria perfeito. Já aprendi que se nos Alpes a previsão é boa, tem que aproveitar e escalar. Respiramos fundo e fomos em direção a Tre Cime. Chegamos tarde no estacionamento do Refúgio Auronzo, preparamos tudo correndo e acabamos dormindo pouco para estar andando às 6h30. Escolhemos a via Comici-Dimai (VII+, 600 m), a via mais famosa das Dolomitas e mais acessível da face norte da Cima Grande.

Eu estava bastante ansiosa por estar cansada e ainda não bem adaptada a escalar em móvel nesse calcário, mas a adrenalina bateu e a energia veio sabe-se lá de onde, e antes das 7h30 já estávamos escalando, com uma dupla suíça bem atrás de nós. Eu estava bastante apreensiva pois afinal de contas, é uma das escaladas mais clássicas da Europa e seria exigente. Concentração total e escalar o mais rápido possível!

Sabíamos que a via tinha muitos pitons de várias qualidades, e nas enfiadas mais duras eram bastante próximos (ou seja, quando precisou fizemos “french free”), mas mesmo assim levamos um rack completo com algumas peças em dobro, muitos nuts e muitas costuras longas, e no final das contas, usamos muito de tudo. Levamos roupa extra também já que sendo uma face norte quase não bate sol, e pro caso de demorarmos muito para terminar, já que a descida é complexa, principalmente no escuro.

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Outras cordadas em outra via do Sass Pordoi | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

Apesar de não muita longa – mais ou menos 600 metros de escalada – a primeira metade é a que concentra as enfiadas mais difíceis, uma atrás da outra, sempre subindo o grau, e sempre negativa. No começo vamos indo bem mas logo o braço começa a tijolar, e da-lhe diedro atrás de diedro, pé alto, blocada e colocações de peça duvidosas quando não tinha piton. Em 4 horas terminamos as 9 enfiadas da parte difícil da via, chegando num platô aberto onde tomamos água pela primeira vez. Até aqui, nenhuma nuvem sequer no céu! Maravilha!

Daí a adrenalina baixa um pouco já que o mais difícil já passou, mas também bate o cansaço.  Restavam 8 enfiadas relativamente fáceis e óbvias, já que a maior parte era um diedro que começava bem fácil e depois ficava mais vertical, porém molhado. Depois dele uma travessia e duas enfiadas até o terraço do cume.  Nessa segunda metade já fomos mais lentos, e isso nos custou quase 6 horas, mas pelo menos na travessia já pegamos um pouco de sol.

Depois de 9h40 de escalada, finalmente terminamos a via, e eu em êxtase quase sem acreditar que tínhamos feito dentro do tempo médio e ainda com muita luz do sol (eram em torno das 17:00 h) para encontrar a descida. Minha primeira grande face norte dos Alpes, totalmente inesperada!

Mas é claro que tudo que sobe tem que descer, e para descer tinha que chegar na outra face da montanha por um terraço ainda com neveiros e muito pedregulho solto, ou seja, escorregou, caiu… já era! Fomos protegendo em simultâneo até chegar na parte mais larga do terraço na face sul, onde por muita sorte, encontramos um guia local que tinha solado a aresta Dibona, e nos ajudou a encontrar a descida. Por que de todas até agora, essa era a mais infernal, pois de óbvia não tinha nada. Era complexa, um labirinto, com rapéis escondidos entre desescaladas e caminhada em pedregulho, e muito fácil de se perder.

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Tre Cime de Lavaredo, visão noroeste | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

Depois de 2 horas, exaustos, chegamos finalmente à van. Normalmente tenho azar com clima, mas quando tenho sorte, tenho MUITA sorte, e neste dia, tudo tinha saído perfeito: escalamos rápido, demos sorte de encontrar alguém que conhecia a descida, e o céu foi de brigadeio na maior parte da escalada. Uma conquista maravilhosa para quem simplesmente tinha muita vontade de conhecer as Dolomitas e ambição de fazer apenas as vias moderadas.

O dia seguinte foi de descanso total e não fizemos absolutamente nada de útil, a não ser nos deslocarmos a Cinque Torri, local de escalada do próximo dia, depois de comemorar comendo uma legítima pizza, vinho e sorvetes italianos em Cortina D’Ampezzo.

Cinque Torri 

Cinque Torri é um conjunto de 8 pequenas torres e alguns blocos bem perto de Cortina, no alto de uma colina, e que oferece um pouco de tudo: vias trad, vias longas equipadas, vias esportivas e até boulder. Durante a primeira guerra mundial o local era bastante estratégico para os Italianos defenderem suas posições contras o exército austro-húngaro, e hoje existe um museu a céu aberto com as trincheiras da época.

Local muito buscado para trekkings curtos por turistas, Cinque Torri foi o lugar onde mais vimos movimento de escaladores, inclusive treino do exército italiano.

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A negatividade da parede na Cima Grande é evidente | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

Apesar de ter descansado o dia inteiro anterior, acordamos de novo arrebentamos, e a temperatura logo cedo já chegava a 32 graus. Mesmo assim optamos por uma face leste, e escolhemos escalar a Fissura Dimai (VI-, 140 m), com uma chaminé bem marcada, no meio da parede da Cima Sud. Finalmente uma via onde encontrar o caminho era tão óbvio que não perdemos tempo nos perdendo. Por outro lado de sólida a rocha não tinha nada, e na segunda enfiada escalamos tensos um diedro meio negativo que parecia que ia se soltar a qualquer minuto.

A via é praticamente toda em diedro e chaminé, com uma ou outra chapa e bastante pedra solta. Foi uma escalada bem prazerosa de muita movimentação de corpo, para descansar e aproveitar o dia de solão. Foi também a via com descida menos complicada e óbvia. Para quem vem para as Dolomitas, recomendo bastante parar por aqui antes de qualquer lugar para ir se habituando com o estilo de escalada da região.

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Travessia no sol e faltando 2 enfiadas para terminar a via Comici-Dimai | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

Dicas

O jeito mais fácil de chegar nas Dolomitas é voando até Veneza e de lá alugar um carro, ou melhor ainda uma van. A maior parte das estradas são boas porém de montanha, então muito sinuosas. Dá para estacionar sem problema nas laterais das estradas para dormir, e tem várias áreas de piquenique e fontes gratuitas pela região. Na principal cidade, Cortina D’Ampezzo, tem wi-fi gratuito da prefeitura e bons supermercados para se equipar, alpem de hotéis e restaurantes para quem quiser mais conforto.

Uma das coisas muito legais das Dolomitas é que as aproximações são muito curtas (dificilmente mais que 1 hora, em muitos casos menos de 20 minutos) e a maior parte das áreas de escalada é acessada de carro a partir das cidades chave, com estacionamento gratuito e boa infra estrutura turística.

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Torres principais de Cinque Torri. A Fissura Dimai é evidente na parte esquerda | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

A região é enorme e tem vários guias bem específicos, mas um que abrange quase tudo das Dolomitas orientais e tem um projeto gráfico excelente é o guia da Rockfax: Dolomites and Via Ferrata

, uma editoria britânica que só lança obras de arte em termos de guias de escalada. Custa em torno de 40 euros e o nosso compramos em Canazei. Vale a pena para quem vai pela primeira vez pois explica absolutamente tudo da escalada, logística, aproximações, etc.

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Guiando a primeira enfiada em sol escaldante | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

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Seguindo a segunda enfiada da Fissura Dimai | Foto: Acervo Pessoal Cissa Carvalho

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