Como medir a dificuldade de um trekking: ideias para um modelo de graduação

Como saber se um trekking é fácil ou difícil? Se devo ou não encarar determinado roteiro? Diferentemente das diversas modalidades de escalada, como a escalada em rocha, a escalada esportiva, a escalada em gelo ou a escalada em alta montanha, não existe um sistema de graduação para a definição do nível de dificuldade de roteiros de trekking que nos sirva de orientação. Qual seria a importância de um sistema desse tipo?

Certamente, para permitir que uma pessoa, de maneira objetiva, pudesse escolher qual trekking realizar baseando-se em suas habilidades e condicionamento físico. E, não menos importante, para permitir uma comparação, também objetiva, entre os inúmeros roteiros existentes.

Foto: http://www.pbase.com/

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Guias e agências também se beneficiariam, caso um sistema de graduação de trekking fosse amplamente difundido e utilizado pela comunidade dos adeptos dessa atividade, já que poderiam orientar seus clientes, de uma maneira mais adequada, sobre o nível do desafio proposto em seus programas.

O objetivo desse artigo é discutir algumas ideias gerais para a elaboração de um modelo de graduação de trekking, e não propor um sistema específico. A elaboração de um sistema de graduação de trekking deveria ser objeto de discussão entre os praticantes, para a obtenção de um consenso pela comunidade sobre o padrão a ser utilizado.

O que iremos graduar?

Inicialmente, para saber quais os critérios deveríamos usar na elaboração de um sistema de graduação, é preciso conceituar o que seria o trekking e quais atividades poderiam ser incluídas sob essa denominação, definindo-se os limites de seu escopo. Tradicionalmente, o conceito de montanhismo é utilizado em uma acepção genérica, que engloba diversas e distintas modalidades como a escalada, a alta montanha e o próprio trekking.

Apesar de não existir uma definição formal para esse conceito, muito menos um consenso sobre seu significado, uma visão moderna do montanhismo utiliza essa palavra estritamente para as atividades executadas em um ambiente de montanha. Desse modo, o termo montanhismo (mountaineering, em inglês), não é mais um “guarda-chuva” que engloba todas as modalidades, mas um conceito ortogonal aos demais conceitos. Afinal de contas, eu posso praticar trekking ou escalada em uma praia, bem longe das montanhas.

Existe, obviamente, uma interseção entre essas áreas, mas, para graduar a dificuldade de um trekking temos que levar em consideração o fato de que trekking não implica, necessariamente, em uma atividade de montanha e que nem todos praticantes de trekking são, necessariamente, montanhistas.

Também é preciso esclarecer algumas confusões a respeito do uso da palavra “trekking”. O primeiro uso não muito adequado é quando alguém menciona, por exemplo, que subir o Aconcágua por sua Rota Normal é um mero “trekking”, por não envolver nenhum tipo escalada. Realmente, se vamos ao Aconcágua pela Rota Normal, estaremos sempre realizando o ato de caminhar, nunca será necessário escalar, o que implicaria progredir com o apoio simultâneo de mãos e pés.

Foto: Lisete Florenzano

Foto: Lisete Florenzano

Porém, apesar de estarmos sempre caminhando por tal rota, não significa que tal atividade seria meramente um trekking. Nesse caso, estamos em um ambiente de alta montanha, onde é preciso utilizar técnicas específicas, como para a aclimatação à altitude ou para o trânsito em terrenos de pedra, neve e gelo, e utilizar roupas e equipamentos apropriados, como mittens, botas duplas e crampons. O ambiente de alta montanha é bastante mutável e imprevisível e mesmo na Rota Normal do Aconcágua pode haver neve e gelo, dependendo das condições climáticas, implicando na necessidade de domínio de habilidades próprias a esse ambiente.

Para a graduação desse tipo de atividade, que estaria englobada na categoria “montanhismo”, já existe um sistema próprio, o International French Adjectival System (IFAS), que iremos detalhar mais adiante. Por isso, as ascensões de alta montanha, mesmo não envolvendo escalada, estarão fora de nossa concepção de trekking e, consequentemente, não serão contempladas em nossas ideias para um modelo de graduação.

Outro uso da palavra “trekking” que deveria ser esclarecido é sua assimilação, muito comum no Brasil, ao que em espanhol é chamado de “senderismo”, termo que, aparentemente, não possui equivalente em português. A ideia de senderismo surgiu na França há mais de meio século e consiste na prática de caminhadas em trilhas bem marcadas e sinalizadas, para as quais não existe uma grande exigência do ponto de vista físico ou técnico.

É uma prática muito comum na Europa e, somente na França, no final da década de 80 já existiam mais de 40.000 km de trilhas mapeadas. O trekking, diferentemente do senderismo, seria uma atividade mais complexa, realizada em regiões naturais, não necessariamente de montanha, onde habilidades específicas, como navegação e orientação, são requeridas, exigindo um grau de comprometimento maior por parte de seus praticantes.

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Um exemplo claro de um roteiro de trekking no Brasil seria a clássica travessia de Petrópolis a Teresópolis, a Petro-Tere para os íntimos. Porém, muitos roteiros que por aqui são chamados de trekking, se estivessem na Europa talvez fossem enquadrados na categoria de senderismo, por corresponderem a trilhas em terrenos fáceis, com marcação bem definida e sinalização evidente.

Porém, respeitando a tradição e as especificidades das caminhadas realizadas em terras brasileiras, vamos assimilar os roteiros de senderismo na categoria de trekking em nossa proposta, não os retirando do modelo de graduação, como fizemos com os roteiros de alta montanha.

Como vamos graduar?

1 – A dimensão técnico-qualitativa

Vamos utilizar o já citado International French Adjetival System (IFAS) como sistema de referência para nosso modelo. O IFAS foi, originalmente, utilizado para graduação de rotas de ascensão e escalada nos Alpes e, por isso, muitas vezes é chamado de sistema de graduação alpina.

Como implícito no nome desse sistema, os graus de dificuldades são expressos por adjetivos, representados por letras que, em português, seriam os seguintes:

  • F – Fácil.
  • PD – Pouco Difícil.
  • AD – Algo Difícil.
  • D – Difícil.
  • MD – Muito Difícil.
  • ED – Extremamente Difícil.

Para cada nível existe uma especificação que define as características das rotas que poderiam ser classificadas em tal nível. Por exemplo, conforme descrito no fundamental Mountaineering: the freedom of the hills (livro que, aliás, deveria ser leitura obrigatória de todo montanhista), o grau PD é definido como “rock climbing with some technical difficulty, snow and ice slopes, serious glaciers and narrow ridges”.

O IFAS, portanto, descreve os aspectos técnicos e qualitativos de uma rota, atribuindo-lhe uma letra, conforme suas características. Por proporcionar uma interpretação mais direta e intuitiva do que os sistemas baseados em números e letras, tradicionalmente utilizados nas diversas modalidades de escalada (por exemplo, falar que uma rota é Difícil ou Muito Difícil é mais expressivo do que dizer que uma via é 7c ou 8a), sugerimos que algo semelhante seja feito para nosso modelo de graduação de trekking.

Foto: Freddy Duclerc

Foto: Freddy Duclerc

Quais adjetivos e letras utilizar é outra história. Como mencionamos anteriormente, nosso objetivo não é propor o sistema em si, mas um modelo que possa ser utilizado na concepção de um padrão. Ficaria a cargo da comunidade definir tais adjetivos e letras. O importante é que os níveis de graduação sejam descritos baseados em critérios técnicos e qualitativos, tais como: tipo e dificuldade do terreno, características da região, clima, facilidade de acesso, etc. Caso o roteiro tenha trechos que impliquem na realização de atividades de montanhismo ou escalada, tais trechos teriam sua dificuldade descrita a parte, segundo o sistema de graduação correspondente.

O grande problema do IFAS é que o mesmo enfatiza o caráter técnico da rota graduada, o que gera algumas interpretações equivocadas. Por exemplo, a Rota Normal do Aconcágua, segundo esse sistema, é graduada como F (Fácil). É fácil do ponto de vista técnico, mas muitas vezes a leitura feita pelos montanhistas é de que seria fácil em todos os aspectos, atraindo pessoas despreparadas e inexperientes, o que é agravado pelo equívoco de ser assimilada a um mero “trekking”, como já falamos antes. Os graus do IFAS para alta montanha deveriam ser complementados para contemplar outros aspectos não representados na dimensão técnico-qualitativa. O perigo da rota, por exemplo.

O Chimborazo, no Equador, ilustra bem essa questão. Não é uma montanha muito difícil do ponto de vista técnico, por isso sua rota mais escalada é graduada como PD (Pouco Difícil). Porém, tal rota é bastante perigosa, tendo ocorrido muitas fatalidades ao longo dos anos. Os perigos envolvidos na mesma não são expressos pelo grau PD. Por isso, para nosso modelo de graduação de trekking, vamos sugerir alguns complementos para o grau qualitativo geral.

Quais os demais aspectos que deveríamos graduar em um trekking?

Segundo nossa experiência, temos os seguintes critérios ortogonais, ou seja, que atuam de maneira mais ou menos independentes dos aspectos técnicos-qualitativos:

  • nível de riscos envolvidos
  • nível de preparo físico requerido
  • nível de exigência em relação à navegação e orientação

Por exemplo, poderíamos ter um trekking fácil do ponto de vista técnico-qualitativo, mas de difícil navegação por atravessar dunas de areia sem pontos de referência.

Tal trekking poderia ser muito ou pouco exigente do ponto de vista físico, dependendo da distância percorrida. Ou ser muito ou pouco arriscado, dependendo da distância da “civilização”.

2 – A dimensão dos riscos envolvidos

As metodologias de gestão de riscos, de um modo geral, adotam dois critérios para avaliar um determinado risco: probabilidade e impacto. Muitas pessoas se preocupam, principalmente, com os riscos que têm uma grande probabilidade de acontecer. Por exemplo, evitam fazer determinada caminhada porque existe uma grande incidência de algum tipo de inseto, levando a uma alta probabilidade de ser picado.

Porém, também deveríamos nos preocupar com os riscos cuja probabilidade de ocorrência é baixa, mas cujo impacto, caso o mesmo aconteça, seja alto. Para dar outro exemplo: vias de escalada fáceis, que possuem pouca probabilidade de queda por parte do escalador, mas onde uma queda pode provocar graves ferimentos ou até mesmo a morte.

Trekking a la pared sur

Foto: Lisete Florenzano

O Sistema Brasileiro de Graduação de Escalada introduziu um interessante conceito, cuja ideia vamos aproveitar em nossa proposta: o grau de exposição de uma via. O grau de exposição mede, principalmente, os riscos envolvidos em uma queda. Vias de alto grau de exposição são aquelas cujo impacto, em caso de uma queda, é elevado: ferimentos graves ou fatais.

No caso dos roteiros de trekking, seria interessante introduzir algo semelhante, como o nível de exposição a riscos do roteiro. Se estamos fazendo um trekking tecnicamente fácil, mas em um local remoto, teremos poucas possibilidades de ajuda externa em caso de imprevistos. Assim, estaríamos expostos a um nível de risco mais elevado.

Tal nível poderia ser representado numericamente, do mesmo modo que o grau de exposição nas vias de escalada: algo como R1, R2, R3, etc. Caberia à comunidade definir a quantidade de níveis a serem incluídos no padrão.

3 – A dimensão do esforço físico requerido

Outro aspecto importante a ser mensurado pelo sistema de graduação seria o esforço físico requerido para a realização do roteiro.

Para a avaliação do esforço poderiam ser utilizados critérios objetivos como a distância a ser percorrida, duração média, desníveis acumulados, etc.

Por serem aspectos essencialmente quantitativos, a dimensão do esforço também poderia ser expressa de maneira numérica, definindo-se níveis de esforço físico como F1, F2, F3, etc.

4 – A dimensão da orientação / navegação

Por fim, poderíamos definir níveis de orientação e navegação, para mensurar essa dimensão dos roteiros, começando com um nível inicial, que corresponderia aos roteiros de “senderismo”, que mantivemos no escopo das atividades de trekking e que se caracterizam por serem traçados bem marcados e sinalizados.

Os níveis subsequentes representariam roteiros mais complexos e com maiores dificuldades de orientação e navegação.

Teríamos, assim, diversos níveis, algo como O1, O2, O3, etc.

E então, vamos graduar?

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Nosso objetivo com o artigo foi lançar algumas ideias para a elaboração de um sistema de graduação de roteiros de trekking, estabelecendo um modelo que aproveitasse as concepções já utilizadas pelos sistemas de graduação das diversas modalidades de escalada e que complementasse as características desses sistemas com as especificidades relacionadas à prática de trekking.

Seria bastante interessante se, um dia, tivéssemos uma classificação objetiva para determinado roteiro de trekking, algo como D-R2-F3-O1 que nos orientasse na escolha do que fazer e nos alertasse para o que poderíamos encontrar ao longo do caminho.

There are 7 comments

  1. Orlandinho Barros

    Muito bom artigo que aborda um tema controverso e essencial para os praticantes de Trekking no Brasil. Destacaria como variáveis de graduação a duração do Trekking, a distância de áreas habitadas e a disponibilidade de água potável, todas enquadradas na classificação proposta.

  2. Waldecy Mathias Lucena

    Pessoal,
    interessante artigo. Só lembrando que em 2015 a FEMERJ revisou a metodologia de classificação de trilhas. Essa nova classificação foi validade em um seminário. Para ver o doc, acesse:

    [[Link retirado da página ]]

    Abraços a todos!
    Wal

    1. Luciano Fernandes

      Olá Waldecy. Obrigado por expandir o conteúdo. Nas mensagens deixadas no site não são permitidos links. O motivo é simples : Muitas pessoas usam este recurso para ganhar relevância no google sem colaborar com nosso conteúdo efetivamente.

      Caso queira colaborar com o conteúdo envie mensagem ao site para colaborar com artigos. Textos curtos e recheados de links não são considerados artigos.

      Abs

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